crise

Artigo | A ampliação das desigualdades raciais com a covid-19

Economista analisa os impactos da pandemia na população negra; crise aprofundou desigualdades em diversas esferas

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
No Rio de Janeiro (RJ), pessoas aguardam para serem atendidas na Caixa Econômica Federal e sacarem o auxílio emergencial, em abril de 2020 - Mauro Pimentel/AFP

No início de 2020, quando do princípio da pandemia da covid-19, escrevemos um texto sobre a cor/raça das brasileiras e brasileiros que possivelmente seriam os mais afetados pela crise a ser enfrentada, em termos sanitários e socioeconômicos.

Em torno de um ano depois, percebemos que a forma como o Brasil enfrenta a crise da covid-19 prova, mais uma vez, que o país não é uma “democracia racial” e que os negros foram e estão sendo os mais afetados pela crise.

Continua após publicidade

Para além do impacto que a crise em si trouxe para a população negra, chama a atenção a falta de respostas do poder público quanto às desigualdades raciais durante a pandemia.

Continua após publicidade

A assim como para a questão de gênero, para a questão racial não houve políticas específicas capazes de mitigar os impactos da crise. Assim, em um país profundamente marcado pelo patriarcado, em que as inserções de trabalhadores e trabalhadoras negros e negras também são marcadas pelo gênero, as mulheres negras foram “duplamente” penalizadas.

Continua após publicidade

Indicadores socioeconômicos básicos

Para iniciar, gráficos retirados da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE de 2020 ilustram a desigualdade no mercado de trabalho quanto à raça ainda antes da pandemia.

Uma divisão da sociedade brasileira em décimos de renda, como no gráfico 1, mostra que entre os 10% mais pobres, 21,9% são brancos e 77,0% são negros. Já no décimo mais rico, a proporção se inverte: 70,6% são brancos e 27,2% são negros neste grupo. Ou seja, os negros estão mais representados na fatia mais pobre da sociedade que na fatia mais rica.

Gráfico 1 – Distribuição percentual da população por cor ou raça, segundo as classes de percentual de pessoas em ordem crescente de rendimento domiciliar per capita – Brasil, 2019


Fonte: SIS IBGE (2020)

Os dados do IBGE também mostram maior presença branca na administração pública e informação/financeiras, dois grupos de atividades conhecidos por melhor remuneração e condições de trabalho.

Os negros (pretos e pardos) se fazem muito mais presentes, segundo dados de 2019, na agropecuária, na construção, no comércio, no transporte, alojamento/alimentação e nos serviços domésticos (onde em torno de 4 milhões de pretos e pardos estão empregados, contra cerca de 2 milhões de brancos).

Os setores onde há maioria negra estão entre os mais impactados com a "coronacrise" – comércio e serviços, entre eles o trabalho doméstico remunerado. E, sem cair na odiosa demonização dos funcionários públicos, é importante pontuar que os da administração pública tem sua renda relativamente mais protegida neste momento de crise.

O gráfico 2, da mesma publicação, compara os rendimentos médios reais do trabalho principal de trabalhadores brasileiros por sexo e cor/raça. Percebe-se, como comentávamos, a persistência das desigualdades de renda quanto a estes dois quesitos.

Gráfico 2 – Rendimento médio real do trabalho principal habitualmente recebido por mês pelas pessoas de 14 anos ou mais de idade, ocupadas na semana de referência, segundo características selecionadas – 2019, 2016, 2013


Fonte: SIS IBGE (2020) / Reprodução

O gráfico 3 mostra que a desigualdade racial persiste quando aumentamos a escolaridade. Pior: ela se amplia quanto maior a desigualdade.

Em outras palavras, um trabalhador branco sem instrução/com ensino fundamental incompleto tem rendimento-hora maior que o de um trabalhador negro com a mesma escolaridade, porém esse diferencial de raça é ainda maior se comparamos trabalhadores com ensino superior completo.

Se no primeiro caso o trabalhador branco tem rendimento 1,29 vezes maior que o de um negro, no último caso o trabalhador branco tem rendimento 1,44 vezes maior que o de um negro.

Este fenômeno mostra também que, apesar de ser importantíssimo ampliar a escolaridade da população negra, somente ampliar a escolaridade não resolve as desigualdades no mercado de trabalho.

Gráfico 3 – Rendimento-hora médio real do trabalho principal das pessoas ocupadas, por cor ou raça, segundo nível de instrução – Brasil, 2019


Fonte: SIS IBGE (2020) / Reprodução

O gráfico 4 desta publicação mostra as diferentes taxas de desocupação para os anos de 2019, 2016 e 2013 por sexo e cor/raça. Os desocupados, categoria já em situação de vulnerabilidade, foram duramente atingidos pela coronacrise e, entre eles, há maior participação de negros e negras.

Gráfico 4 – Taxa de desocupação das pessoas de 14 anos ou mais de idade, por sexo, cor ou raça – 2019


Fonte: SIS IBGE (2020) / Reprodução

Já dados quanto à informalidade mostram que os negros são também maioria, como mostra o gráfico 5.

Assim, a partir do momento em que se iniciou o isolamento social no país, esta categoria específica foi uma das mais afetadas em termos de renda e em termos de exposição ao vírus também. Enquanto algumas categorias puderam realizar home office, esta possibilidade é mais remota para trabalhadores informais.

Gráfico 5 – Proporção de pessoas de 16 anos ou mais de idade ocupadas na semana de referência em trabalhos informais por cor ou raça (%) – Brasil, 2004 a 2014


Fonte: SIS IBGE (2020) / Reprodução

Ainda sobre vulnerabilidades prévias à pandemia, chama a atenção a grande porcentagem de população preta e parda que reside em domicílios com inadequações domiciliares (Gráfico 6).

Sobre este aspecto, vale lembrar que, ao longo de 2020, vilas e favelas foram locais de rápida disseminação do Covid-19 devido às precárias condições de moradia e que 72% dos moradores de favelas se declara negro.

Somadas ao fato de que muitos dos que ali vivem tem inserções precárias no mercado de trabalho e ficam mais vulneráveis em momentos de crise, muitas destas deficiências em infraestrutura social, informalidade e baixa renda se conjugam com a maior prevalência de comorbidades, o que faz da população negra mais vulnerável à covid-19.

Gráfico 6 - Proporção da população residindo em domicílios com inadequações domiciliares, por cor e raça, segundo o tipo de inadequação – Brasil, 2019 (%)


Fonte: SIS IBGE (2020) / Reprodução

Para finalizar a apresentação dos principais dados do SIS IBGE 2020 quanto à raça/cor, o gráfico 7 trata da distribuição da população por raça/cor, gênero e região quanto à escolaridade. Percebe-se uma diferença entre a escolaridade da população branca e da população preta e parda.

Gráfico 7 - Distribuição percentual da população de 25 anos ou mais de idade, por nível de instrução, segundo o sexo, a cor ou raça e as Grandes Regiões - 2019


Fonte: SIS IBGE (2020) / Reprodução

Ao falar do sistema previdenciário, em especial do Regime Geral de Previdência Social, é importante destacar que negros são maioria nos postos de trabalho sem contribuição à previdência social, o que se reflete no acesso ao sistema quando da velhice ou no caso de algum problema no meio da vida laboral.

Essa é mais uma fragilidade que se expressa no mercado de trabalho e tem impactos nas trajetórias dos negros e negras, deixando-os mais vulneráveis nesse contexto de crise.

Empresários negras e negros e os impactos da "coronacrise"

Sobre donos de empresas, na publicação anterior mostramos que, em 2014, havia mais empresas cujos donos eram negros que brancos.

No entanto, ao segmentar as empresas entre empregadores e conta-própria, os negros são maioria entre os por conta-própria e os brancos maioria entre os empregadores. Já entre os Microempreendedores Individuais (MEIs), 46% se declarou branca, 42% parda, 9% preta, 2% amarela e 1% indígena em 2015.

Sobre os impactos já observados da pandemia nos empresários negros, pesquisa do Sebrae e FGV, realizada de 29 de maio a 2 de junho, mostra que os empreendedores negros foram os mais impactados pela pandemia do coronavírus, entre os donos de pequenos negócios no país.

De acordo a pesquisa, os empreendimentos mantidos por negros sofreram mais impacto porque não conseguiram funcionar, principalmente por atenderem (45%) somente de forma presencial. Ao contrário dos 40% dos empreendedores brancos que conseguiram continuar com os negócios com o auxílio de ferramentas digitais, 32% dos negros fizeram uso desse tipo de recurso.

Em relação ao uso de redes sociais, enquanto 48% dos empreendedores brancos já vendiam com auxílio da Internet antes da pandemia, o percentual era de 45% entre os negros. Dos empreendedores negros que vendem pela Internet, a maior parte utiliza o Whatsapp (88%), enquanto entre os brancos utilizam sites próprios e Facebook.

A pesquisa também mostra que era, neste período, maior a proporção de negros com empréstimos (69%). Entre os negros que têm dívidas, dois em cada três estão em atraso (relação maior que a dos brancos).

Negros e brancos pediram empréstimo em bancos em proporção semelhante, mas os negros tiveram maior recusa (61%), enquanto para os brancos foi de 55%. O valor solicitado pelos negros (R$ 28 mil) é 26% mais baixo do que o solicitado pelos brancos (R$ 37 mil).

Já outra pesquisa do Sebrae e FGV, realizada entre os dias 25 e 30 de junho, mostra que o recorte de gênero e raça/cor é muito importante para entender os impactos da pandemia entre empresários.

A pesquisa mostra que enquanto 36% das empreendedoras negras estão com a atividade interrompida temporariamente, essa proporção cai para 29% entre as empresárias brancas e 24% entre os homens brancos (entre os homens negros, essa proporção é de 30%), o que é em parte explicado pelo fato de seus negócios operarem somente de forma presencial (27%). Entre as brancas essa proporção cai para 21%, entre brancos 20% e entre negros 25%.

A pesquisa também mostra que 58% das empreendedoras negras que pediram empréstimo não conseguiram obter crédito. Esse percentual só é mais baixo que a proporção de homens negros (64%), que tiveram o pedido recusado.

Já quando analisamos as razões apresentadas pelas instituições financeiras para a recusa, as mulheres negras apresentaram a maior proporção de CPF negativados (25%), contra 24% dos negros, 17% de brancas e 15% de brancos.

O estudo também mostrou que as mulheres negras à frente de uma empresa têm a maior proporção de negócios que utilizou redução de jornada/salários (29%).

Por fim, a pesquisa monstra que a proporção dos negócios que tomou a decisão definitiva de fechar é maior entre as empreendedoras negras (5%), contra 4% no caso das mulheres brancas e homens brancos e 3% no caso dos homens negros.

Trabalhadores domésticos e o impacto da "coronacrise"

A categoria de trabalhadoras domésticas é uma das mais vulneráveis à crise, seja pelo elitismo dos que que não conseguem realizar seu trabalho doméstico mesmo infectados com o vírus e as colocam em risco, seja porque muitas perderam a renda. Uma das das primeiras mortes por covid-19 no Brasil foi de uma trabalhadora doméstica

Dados de 2018 mostram que as mulheres negras são a maioria dos trabalhadores deste setor (Tabela 1). De fato, a categoria foi fortemente afetada pela crise, não só pela doença em si, mas também pelos impactos econômicos da "coronacrise".

Tabela 1 – Trabalhadores domésticos de 18 anos ou mais de idade, segundo posse de carteira de trabalho, sexo e raça/cor – Brasil (2018)

Continua após publicidade

 

 

Com carteira

Sem carteira

Total

Homens

Negros      

119.980            

180.706            

300.686       

Brancos

82.340

95.724

178.064

Total

202.320

276.430

478.750

Mulheres     

Negros

1.071.496

2.787.614

3.859.110

Brancos       

571.970

1.272.360

1.844.330

Total

1.643.466

4.059.974

5.703.440

Fonte: Adaptado de Pinheiro, Tokarski e Vasconcelos (2020)

Populações extremamente vulneráveis

Quanto a quilombolas, vale apontar que esta população sofre de extrema vulnerabilidade em critérios socioeconômicos. Os quilombos foram fortemente impactados não só pelo vírus em si, mas pela crise econômica gerada pela pandemia, com a informalidade, a falta de infraestrutura social e o baixo acesso a informação sobre como acessar benefícios emergenciais.

Segundo o site quilombosemcovid19.org, 4.962 quilombolas foram confirmados com a covid-19 e 210 faleceram devido à doença até o dia 2 de março de 2021, com grande concentração das mortes tendo ocorrido no Norte do país.

Felizmente, por pressão do movimento negro e quilombola, os quilombolas foram incluídos como população prioritária na vacinação.

Quanto à população de rua, claramente vulnerável por estar exposta e ter fragilidades de saúde, há poucos dados em escala nacional. Estimativas de março de 2020 informam que a população de rua no Brasil excedia os 220 mil.

Uma publicação do Ministério da Saúde de 2014 aponta que 72,8% das crianças e adolescentes em situação de rua são negros. Já pesquisa de 2008 do extinto Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome mostra que 67% das pessoas em situação de rua são negras. Neste documento, alerta-se que apenas 47% da população de rua estava no Cadastro Único de Programas Sociais.

Se faltam estatísticas confiáveis sobre a quantidade de pessoas em situação de rua no Brasil, faltam também dados nacionais sobre infecções e óbitos por coronavírus desta população específica. Felizmente, moradores de rua também foram incluídos na população prioritária para a vacinação contra o coronavírus.

Por fim, no sistema carcerário, duramente atingido pelo vírus (o que levou o IDDD a pleitear a redução da população carcerária face à pandemia), a grande maioria é de negros e negras: entre os presos, 61,7% são pretos ou pardos. Os brancos são 37,22% dos presos.

Até 2 de fevereiro de 2021, segundo boletim do CNJ, foram registrados 253 óbitos por covid-19 – 112 entre servidores e 141 entre pessoas presas – e 62.351 casos confirmados – 15.450 entre servidores e 46.901 entre pessoas presas – em todo o país.

Foram realizados, até o momento, 62.459 testes em servidores e 245.465 em pessoas presas. Infelizmente, nas últimas semanas, os números de óbitos e casos confirmados estão aumentando mais aceleradamente.

Perda de renda e o impacto do Auxílio Emergencial

Fares, Oliveira, Cardoso e Nassif-Pires (2021) investigam os impactos do Auxílio Emergencial (AE) por gênero e dimensões raciais, utilizando dados da Pesquisa Domiciliar Brasileira COVID-19 (PNAD-COVID).

Usam os dados coletados em junho e setembro para comparar a renda do trabalho usual anterior à pandemia com a renda do trabalho real do mês anterior informada em junho e setembro. Os resultados se encontram no quadro 1.

Quadro 1 - Renda domiciliar per capita absoluta e relativa do trabalho e renda per capita do Auxílio Emergencial por gênero e raça do chefe da família - Brasil, 2020


Fonte: Fares, Oliveira, Cardoso e Nassif-Pires (2021) / Reprodução

À esquerda do Quadro 1, percebe-se a renda familiar per capita absoluta do trabalho anterior à pandemia, em maio, em agosto e em agosto com a adição de AE por gênero e raça do chefe da família.

Todos os grupos sofreram perda de renda do trabalho e puderam recuperar parcialmente essa perda entre maio e agosto. Exceto para famílias chefiadas por homens brancos, o AE mais do que compensou a perda de renda do trabalho.

No lado direito da Quadro 1 são representados os mesmos valores, mas em relação aos domicílios chefiados por mulheres negras e pardas. Antes da pandemia, a renda do trabalho per capita de famílias chefiadas por homens brancos era quase 2,5 vezes maior do que a de famílias chefiadas por mulheres negras.

Também pode-se ver que todos os grupos ganharam relativamente às famílias chefiadas por mulheres negras e pardas em maio e em agosto, indicando que as mulheres pretas e pardas sofreram um impacto maior da perda de renda do trabalho em maio e estão experimentando uma recuperação mais lenta do que qualquer outro grupo.

A renda do trabalho de famílias chefiadas por homens brancos, homens negros, e mulheres brancas, respectivamente, chegou a ser 2,55, 1,41 e 1,88 vezes maior que a das famílias chefiadas por pretas e pardas em agosto.

O AE, no entanto, é responsável por aproximar a renda das famílias chefiadas por mulheres negras da de todas as outras.

As dúvidas em torno à continuidade do AE e as mudanças quanto a seus valores e formatos representam uma enorme perda para as famílias chefiadas por negros (em especial mulheres negras), tanto em termos absolutos quanto relativos.

Considerações finais

As políticas sociais que poderiam dar apoio a esta população estão gravemente subfinanciadas, em especial a partir da aprovação da Emenda Constitucional 95/2016.

Assim, o Brasil chega à "coronacrise" com menos instrumentos para rebater os efeitos da crise, com o SUS subfinanciado (Guidolin, 2019) e com a população mais vulnerável.

É importante frisar que as reformas econômicas adotadas desde 2016 a partir do arcabouço da austeridade fizeram o país gastar menos com os mais vulneráveis – e aqui no texto fica claro qual é a cor/raça destes.

Continua após publicidade

Ana Luíza Matos de Oliveira é economista, doutora em Desenvolvimento Econômico (Unicamp) e professora-visitante da FLACSO Brasil

Continua após publicidade

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Poliana Dallabrida