Coluna

O julgamento da ADPF nº 881

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Retirar a religião da escolha de cada um e impor à esfera pública o ônus do risco de contágio e morte consiste num ato de imposição inaceitável - Demétrio Koch / Fotos Públicas
Desta forma é que a liberdade de crença religiosa se submete ao conjunto das normas constitucionais

Por Martonio Mont’Alverne Barreto Lima*

O substancioso voto do Ministro Gilmar Mendes, relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 881, discutida na última quarta-feira (7), é alvissareiro em todos os sentidos e merece o reconhecimento.

Com tranquilidade se pode dizer que o voto recupera importante entendimento sobre a Constituição. O mais significativo deles é o registro de que não há possibilidade do exercício de qualquer direito fora da Constituição. E essa premissa se aplica especialmente aos direitos fundamentais.

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Sempre foi um grave engano supor que direitos fundamentais encontram seu conteúdo e sua validade na abstração de reflexões dependente de idiossincrasia de quem escreve doutrina jurídica ou de quem julga. A força e validade dos direitos fundamentais está no entendimento objetivo da sistemática constitucional porque assim é que recomenda a boa razão.

Direitos fundamentais estão na normatividade pétrea constitucional do mesmo modo que estão o federalismo; o voto direto e secreto, universal e periódico; e a separação de poderes. E somente assim podem e devem ser compreendidos, articuladamente uns com os outros. Desta forma é que a liberdade de crença religiosa se submete ao conjunto das normas constitucionais, e não deve ser assimilada como “especial” ou “fora da Constituição”.

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Há outros motivos que autorizam a certeza do voto do Relator: a qualidade de sua argumentação ao longo de suas 42 páginas é baseada na força da objetividade da razão; não da fé. Desde o século XVII que Baruch de Spinoza adverte no pesado risco que incorrem os que fazem a razão serva da fé. Para Spinoza “enlouquecem: os filósofos com a razão; e os teólogos, sem a razão”.

A intenção de construir a inconstitucionalidade do Decreto nº 65.563/2021 do Estado de São Paulo, com alegação de que a necessidade cristã de partilha coletiva de sua fé encontra ilimitado apoio no direito fundamental do art. 5º, VI (liberdade religiosa), não tem como prosperar sem que se submeta este direito fundamental à “forma da lei” que o mesmo inciso menciona.

E a lei decorre da competência do pacto federativo, já decidido pelo mesmo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a atuação dos Entes Federados durante a pandemia da covid-19.

Em meio à miséria das sustentações contrárias ao Decreto paulista, nenhuma superou aquela do Advogado Geral da União. Consistiu numa tentativa de recuperar o obscurantismo pré-moderno que resistiu à separação da religião do Estado, a qual responde pelas tragédias como intolerância e perseguição religiosas.

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Retirar a religião da esfera privada, da escolha de cada um, e impor à esfera pública o ônus de suportar até o risco de contágio e morte em meio a uma pandemia, consiste num ato de imposição inaceitável numa república laica.

É precisamente com manifestações, como a do Relator, que podemos mensurar que a conquista do laicismo defende exatamente a liberdade religiosa de todos; numa radical igualdade onde não haja privilégio desta ou daquela crença.

Como tudo sempre pode piorar, o ponto alto das palavras do Advogado Geral da União expressa sua limitada visão sobre a pluralidade religiosa, num país tão rico em culturas como o Brasil.

Ao destacar que cristãos “jamais matam, mas morrem pela liberdade de religião e de culto”, e não mencionar os adeptos do budismo, hinduísmo, judaísmo, islamismo, xintoísmo, das religiões afro-brasileiras e de todas as outras, sugere ele claramente superioridade moral do cristianismo.

Novamente, Spinoza tem razão: ensandece aquele que faz a razão serva da fé. E parece querer levar a República ao seu delírio.

O voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes se revela mais importante porque adverte do prejuízo irremediável que o fundamentalismo religioso pode desencadear. Resta-nos esperar que STF acompanhe o voto do Relator em seu inteiro teor.


* Martonio Mont'Alverne Barreto Lima é professor titular da Universidade de Fortaleza, procurador do Município de Fortaleza e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Poliana Dallabrida