Paraíba

PANDEMIA DA FOME

O que nos diriam nossos ancestrais sobre o Brasil “descomandado” por Bolsonaro?

“Felicidade é poder ver o Sol, ver a Lua e comer três vezes ao dia”

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
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Crescida e formada na militância estudantil no interior do Rio Grande do Sul, em Santa Maria, que se transformou em militância comunitária e de base, desde cedo ouvia atenta à seguinte frase de um grande companheiro, que virou estrela: “felicidade é poder ver o Sol, ver a Lua e comer três vezes ao dia”. Esse foi Nei D’Ogum, um militante negro, de santo, LGBT e da luta por moradia nos confins do sul do nosso país.  Muito jovem e impressionada com tudo que ele nos mostrava, acreditei até o dia de hoje que não voltaríamos a conversar sobre esse assunto. Pois aqui estamos, anos depois, nos movimentando pra poder voltar a falar sobre um dos maiores tabus humanos: a fome coletiva. Nei era filho de dona Lila, conhecida por ser “uma senhora de Oxum”, tendo crescido cerceado pelos preconceitos de classe, de raça, de religiosidade e de orientação sexual, foi protagonista do primeiro casamento gay do estado, dirigente da Democracia Socialista do Partido dos Trabalhadores, carnavalesco e líder comunitário da ocupação da Cipriano da Rocha. Nei compreendia o que era a fome porque os seus pés, assim como os pés da Elza Soares, pisavam no chão do “Planeta Fome”. 

A fome coletiva é um fenômeno social com desdobramentos e expressões biológicas, onde a subtração de partes das dietas regionais de porções da população vão conformando situações de carência nutricional. Assim como o nosso Neizinho foi uma grande referência para toda uma geração de militantes gaúchos, antigos companheiros, que não se curvaram ao sistema econômico e ao mainstream acadêmico, também seguem conosco, e um deles é o recifense Josué de Castro. De Norte a Sul do nosso país, grandes figuras, tenham sido elas reconhecidas ou não em seu tempo, mostraram que as mazelas humanas sempre podem retornar à nossa paisagem quando não superamos totalmente alguns tabus próprios ao capitalismo.

Também vamos resgatar os escritos de uma cozinheira de mão cheia, aquela que era

“...a mulher do povo.

Bem proletária.

Bem linguaruda,

desabusada,

sem preconceitos,

de casca-grossa,

de chinelinha,

e filharada.”

...que dizia que toda cozinha boa tem:

“Pimenta e cebola.

Quitute bem feito.

Panela de barro.

Taipa de lenha.

Cozinha antiga

toda pretinha.

Bem cacheada de picumã.”

O seu nome era Cora Coralina, uma contista e escritora goiana, com profissão de doceira, que sabia que um bucho bem forradinho vale mais que um dedo de prosa furada. Através do diálogo entre essas três grandes referências, nos questionamos: Qual a atualidade do pensamento de Josué de Castro? O que ele ainda tem a nos contar sobre a história da fome humana? O que Josué, assim como Nei D’Ogum e Cora Coralina, nos falariam sobre a completa destruição da política nacional de Segurança Alimentar? O que nos falariam sobre a destruição do sonho coletivo de uma Reforma Agrária estruturante de novas relações entre o capital e o trabalho no campo brasileiro? O que nos falariam sobre as populações urbanas que vivem em áreas ocupadas completamente precárias? O que nos diriam sobre a delimitação de classe que define o acesso a cidade? O que nos falariam sobre os pedidos de socorro que ecoam nos nossos ouvidos, mentes e corações diariamente? O que Cora Coralina nos diria sobre a panela que agora está vazia e o bucho que agora não forra mais? Hoje vamos tratar de um dedo de prosa entre gerações e entre regiões.

Começaremos resgatando a história do menino que cresceu no mangue, aquele que já não discernia sobre onde começava o carangueijo e onde terminava o ser humano. Josué de Castro construiu uma vasta obra, que se inicia pensando a Geografia Humana desde uma análise a respeito do caráter da fome em todo o território nacional, com o livro “A Geografia da Fome” (1946), onde deu o pontapé ao que ele considerou chocante: o fato de que em um mundo onde se tenha tamanha capacidade de escrita e de publicação, haja tão poucos escritos a esse respeito. Estamos falando de um Josué que habitava este chão nos idos dos anos 1940, e que já começava a suscitar um grande debate a respeito do caráter moral, político e econômico a que esteve submetido até então esse debate.

Alguns anos depois escreve “Geopolítica da Fome” (1952), ao se tornar dirigente da Organização da Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO). Nesse contexto, Josué se atenta para a globalidade do tema da fome humana, o qual não era uma mazela específica dos manguezais de Recife ou da estrutura econômica e social brasileira, mas que coabitava o nosso planeta todo. Para Josué existem fomeS parciais que, ao se somarem, se transformam em um problema crônico de fome epidêmica ou pandêmica, a qual se torna fome coletiva. Isso se dá quando determinados produtos da cesta básica alimentar vão sendo retirados, até que os sujeitos começam a suprimir refeições, ao ponto em que a capacidade nutricional desse tipo de alimentação se transforma em um fator de adoecimento. O que as populações viveram nos anos 1940 foi considerado por este autor como uma pandemia da fome, e hoje, o que estamos vivendo? De que forma podemos definir o momento atual?

Estamos vivendo a pandemia da Covid-19, mas também estamos vivendo a pandemia da fome, a qual nossos três interlocutores compreendiam. Estamos de volta ao triste Mapa da Fome, marca que havíamos deixado oficialmente para trás em 2014. Hoje, com o corte do Auxílio Emergencial de R$ 600,00, passamos de 9,5 milhões de brasileiras(os) (4,5% da população) em situação de extrema probreza em Agosto de 2020, para 27 milhões de pessoas (12,2% da população) em fevereiro de 2021 (FGV). Viver na extrema pobreza significa sobreviver com R$ 246,00 por mês (R$ 8,20 por dia). Segundo o IBGE, o aumento nos preços dos alimentos em 12 meses de pandemia foi de 15%, o que é quase o triplo da inflação, que foi de 5,2% no mesmo período. Ainda segundo o IBGE, a taxa de desemprego atual é de 14,2%, a maior registrada em sua série histórica, o que nos leva ao montante de 14,3 milhões de desempregados. Como é possível travarmos a batalha ideológica das ideias nesse contexto?

Segundo Josué, “Nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e num sentido tão nocivo quanto a fome, quando atinge os limites da verdadeira inanição. Excitados pela imperiosa necessidade de se alimentar, os instintos primários são despertados e o homem, como qualquer outro animal faminto, demonstra uma conduta mental que pode parecer das mais desconcertantes.” (Fome como força social: fome e paz (1967)). Estamos falando da fome como fator desagregador da personalidade humana, fator de geração de um estado de calamidade.

Quando trouxemos esses dados para o contexto paraibano, onde os nossos pés pisam, a situação se repete. Ouvimos diariamente os gritos de socorro da população paraibana, que está clamando por comida na mesa e por uma consequente geração de segurança pública. Não podemos de forma nenhuma dissociar tais elementos, uma vez que encontram-se imbricados. Estamos falando da fome como fator de insegurança alimentar e insegurança pública.

Ouvimos os gritos de mães que estão vendo os seus filhos pedir socorro, de famílias inteiras que estão reduzindo a quantidade de refeições diárias para que a comida “dê pra todos”, de coordenações comunitárias que já esgotaram as suas possibilidades para lutar pelos direitos de suas comunidades. Estamos falando da fome que Josué, Nei e Cora se referiam. É a partir desse contexto que devemos pensar nas alternativas e nas nossas bandeiras de luta: o retorno imediato de um Auxílio Emergencial digno que garanta o isolamento social e construa uma política nacional da Renda Básica, na quebra de patentes e na ampla aplicação das vacinas em nossa população e na saída mais importante, a retirada imediata do governo Bolsonaro. Na nossa história não podemos deixar nos posicionarmos, e nesse momento, os movimentos sociais estão agindo, reafirmando diariamente que estamos falando de um governo nacional genocida.

A partir desse local de fala, estamos construindo cozinhas comunitárias, farmácias vivas, padarias comunitárias, saboarias, possibilidades de geração de trabalho e renda, realizando doações de alimentos frutos da reforma agrária, dialogando com a população a respeito dos seus problemas concretos, organizando a luta contra os despejos irregulares durante a pandemia, fazendo formação de militantes capazes de dialogar e construir força social em nosso país. Força social é força política, é força de organização popular, e assim como nos fala Josué de Castro, é força de buscarmos alternativas e saídas em contextos de extremo acirramento das desigualdades sociais. Como nos disse Cora:

Estavam ali parados. Marido e mulher.

Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça

tímida, humilde, sofrida.

Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,

e tudo que tinha dentro.

Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar

novo rancho e comprar suas pobrezinhas.

O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,

entregou sem palavra.

A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,

se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar

E não abriu a bolsa.

Qual dos dois ajudou mais?

Donde se infere que o homem ajuda sem participar

e a mulher participa sem ajudar.

Da mesma forma aquela sentença:

“A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar.”

Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada,

o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso

e ensinar a paciência do pescador.

Você faria isso, Leitor?

Antes que tudo isso se fizesse

o desvalido não morreria de fome?

Conclusão:

Na prática, a teoria é outra.”

Na prática, mais uma vez, a teoria é outra. É por isso que hoje viemos trazer esse diálogo entre gerações, entre regiões e entre seres humanos que constróem e refletem sobre a situação do nosso povo há muito tempo. Estamos entre companheiras e companheiros, lutamos para que a Periferia permaneça Viva, e para que a solidariedade volte a ser um valor do nosso tempo. Para que a panela volte a estar cheia para o nosso povo poder pensar e refletir sobre as escolhas que tomou no último período. A nossa linha política é a da solidariedade ativa, aquela que enxerga no combate à fome não uma bandeira assistencialista, mas uma bandeira de luta, primordialmente, pela vida. Lênin foi um revolucionário russo que também nos fala sobre a abertura de janelas históricas quando da piora significativa e repentina de vida da população, a qual avaliamos que possa estar acontecendo, e que pode nos permitir construir novos horizontes, onde a fome coletiva volte para o lugar civilizatório de onde nunca deveria ter saído. 

Convidamos toda a população paraibana a se somar nesta luta, a construir conosco as alternativas, somos O POVO CUIDANDO DO POVO! Por isso, hoje relançamos a nossa campanha de solidariedade do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos na Paraíba (MTD-PB), a qual vem sendo organizada por nossa militância em todo o país desde o início da pandemia, chamada Quarentena com Direitos, buscando garantir que todos os sujeitos tenham os seus direitos garantidos e para que possamos fazer a construção real de força social.  

Assim como nossos ancestrais nos mostraram, a nossa força é a riqueza contida em meio ao nosso povo, povo que de bucho forrado, pensa melhor e consegue construir a resistência. Foi por esse caminho que o nosso gaúcho Nei D’Ogum, o nosso pernambucano Josué de Castro e a nossa goiana Cora Coralina construíram as suas contribuições que continuam nos referenciando, os quais nutriam um profundo afeto e esperança pelos gerações futuras. A crença na humanidade é um valor inviolável que carregamos conosco:  

                       

Ofertas de Aninha

(aos moços)

Eu sou aquela mulher

a quem o tempo

muito ensinou.

Ensinou a amar a vida.

Não desistir da luta.

Recomeçar na derrota.

Renunciar a palavras e pensamentos negativos.

Acreditar nos valores humanos.

Ser otimista.

Creio numa força imanente

que vai ligando a família humana

numa corrente luminosa

de fraternidade universal.

Creio na solidariedade humana.

Creio na superação dos erros

e angústias do presente.

Acredito nos moços.

Exalto sua confiança,

generosidade e idealismo.

Creio nos milagres da ciência

e na descoberta de uma profilaxia

futura dos erros e violências

do presente.

Aprendi que mais vale lutar

do que recolher dinheiro fácil.

Antes acreditar do que duvidar.

(Cora Coralina)

 

*Economista e militante do Movimento das Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD).

Edição: Heloisa de Sousa