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Legado do caso George Floyd para política nos EUA é incerto, diz jornalista americano

Ativista afro estadunidense analisa o panorama do país depois da sentença contra policial branco que assassinou Floyd

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |

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Terrence Floyd, irmão de George Floyd, durante protesto contra o assassinato cometido pela polícia - Foto: Timothy A. Clary

“Papai mudou o mundo” comentou Gianna Floyd, filha de apenas 6 anos de idade, de George Floyd. Suas palavras resumiram o sentimento de muitos ao se confirmar o veredito que considerou o policial Derek Chauvin culpado pelo assassinato do afroestadunidense, com pena de 40 anos de prisão.

O assassinato de George Floyd, no dia 25 de maio de 2020, em Minneapolis impactou de maneira permanente a história dos Estados Unidos. “Eu não consigo respirar” foi a frase que deu volta ao mundo, expressando denúncias do racismo e da brutalidade policial que são realidade para população negra em todo o planeta.

No entanto, além da justiça, ainda há um sabor agridoce sobre as mudanças reais que o caso pode gerar na realidade dos Estados Unidos.

No mesmo dia em que o movimento negro organizado celebrou o desfecho do caso, uma adolescente negra de apenas 16 anos foi morta por um agente policial em Columbus, Ohio. A polícia afirma que atuou para impedir que Ma'Khia Bryant tentasse “apunhalar” outra pessoa. No entanto, o médico que atendeu a jovem ainda com vida assegurou que há indícios de que os policiais fizeram uso da força além do que permitiria a lei.

Somente em 2020, 241 negros foram mortos pela polícia dos Estados Unidos, segundo levantamentos independentes.

 


Ativistas protestam nas ruas de Londres, no Reino Unido, contra o racismo das instituições policiais / Foto: Daniel Leal Olivas/AFP


“É muito raro que um policial seja condenado por assassinato. Desde 2015, somente sete foram considerados culpados e milhares de afro estadunidenses foram mortos nesse período. Acho que é um exemplo que mostra como é profunda a relação de impunidade dos policiais nos Estados Unido. Foi necessário uma mobilização gigante para que um policial fosse considerado culpado numa situação como essa”, comenta o jornalista Eugene Puryear, editor do portal Breakthrought News. 

Segundo ele, é muito cedo para dizer que o caso abre um precedente na justiça estadunidense. “A polícia matou 64 pessoas negras durante a tramitação do processo do caso George Floyd”, aponta.

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Na noite da última terça-feira (20), tanto o presidente Joe Biden como sua vice, Kamala Harris, ofereceram um discurso logo após a sentença, destacando que “há muito mais por fazer” e este seria apenas um primeiro passo.

Harris, que desta vez discursou primeiro, assegurou que irão trabalhar para aprovar o mais rápido possível a lei George Floyd, enviada ao Congresso em junho do ano passado, que propõe uma reforma policial nos Estados Unidos.

Puryear, no entanto, destaca que a lei prevê mais recursos para a instituição, ao invés de atender os reais motivos que geram aumento da criminalidade nas periferias do país.

“Esse tipo de programa já foi aplicado durante anos e a polícia não mudou. Então ao invés de combater a pobreza, desemprego, déficit habitacional, que são os principais causadores de distúrbios nessas comunidades, eles tentam entregar mais dinheiro para a polícia e esperar que o problema se resolva”, denuncia.

Em 2014, durante a gestão Obama - Biden, foi criada uma força tarefa que estabelecia que as investigações relacionadas à violência policial deveriam ser lideradas por procuradores e promotores independentes. O operativo foi criado como uma resposta ao assassinato de Michael Brown, no estado Missouri, nesse mesmo ano. Os dados mais recentes comprovam que a situação não mudou. 


Nos dias do julgamento do policial Derek Chauvin, o movimento Black Lives Matter convocou manifestações em todo o país para pressionar pelo veredito / Reprodução / Twitter

Por outro lado, para o analista, a Casa Branca tenta tirar vantagem política do caso, utilizando uma dupla narrativa.  Sinalizam que atenderiam as demandas da comunidade negra, ao mesmo tempo que fortalecem a imagem do sistema judiciário como um árbitro adequado para julgar casos de violência, e da polícia como instituição chave para diminuir a criminalidade.

Kamala Harris era conhecida como funcionária “linha dura” na guerra antidrogas, no período em que foi procuradora do estado da Califórnia, contribuindo para a prisão de dezenas de jovens negros. Obama foi o primeiro presidente a visitar um presídio federal na história dos Estados Unidos, no entanto o encarceramento da população negra não diminuiu no seu governo. Durante sua administração, apenas 5% dos pedidos de indulto foram concedidos. 

Além disso, apesar das promessas de diminuir a desigualdade social, a cada dólar investido em famílias brancas, apenas 0,59 centavos eram direcionados a atender famílias negras, entre 2009 e 2017. A disparidade salarial entre brancos e negros também se manteve a mesma durante todo mandato de Barack Obama e Joe Biden. 


A nomeação de Kamala Harris como vice de Joe Biden foi vista por analistas como uma tentativa do partido Democrata de ampliar sua votação entre a população negra dos EUA. / OLIVIER DOULIERY / AFP

Desde 2020, Biden e Harris utilizaram um discurso de apoio ao movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) para aumentar sua votação entre a comunidade afro estadunidense na corrida eleitoral contra Donald Trump. Agora, a dupla teria outra eleição na mira.

“Se eles conseguem posicionar a ideia de que são representantes autênticos dos trabalhadores e desse setor oprimido, certamente irá contribuir para que eles consigam consolidar sua agenda para as eleições de metade do mandato em 2022”, analisa o jornalista afro estadunidense.

Apesar das manobras, Eugene Puryear considera que o julgamento é uma vitória para o movimento negro.

“Acho que esse é um dos exemplos dos frutos, que um movimento como Black Lives Matter, pode colher. Não quero dizer que isso irá mudar a conjuntura. Mas é um sinal poderoso de que o movimento negro pode definir como a justiça deve operar e não apenas reagir às distintas situações de violência”, conclui.

Edição: Vinícius Segalla