Direitos Indígenas

Indígenas Mbyá-Guarani de Porto Alegre são ameaçados por loteamento ilegal

Homens foram flagrados desmatando e marcando lotes no local onde oito famílias vivem há mais de quatro décadas

Brasil de Fato | Porto Alegre |
A suspeita é de que sejam pessoas contratadas por alguém que deseja esbulhar a área para depois tomar posse definitiva - Cimi Sul

Além das preocupações causadas pela pandemia do novo coronavírus, como a impossibilidade de vender seu artesanato, oito famílias indígenas da comunidade indígena Mbyá-Guarani Pindó Poty, localizada no bairro Lami, em Porto Alegre, há cerca de um mês convivem com ameaça de invasão.

As ameaças são frequentes e, apesar de não ser a primeira vez que acontece, as famílias que habitam a região há no mínimo quatro décadas sentem-se mais inseguras com essa nova invasão, que acontece à luz do dia.

“Meus parentes estão sendo ameaçados. Há um mês os invasores entraram, cercaram, fizeram barracos dentro da área indígena. É uma situação ameaçadora que vem acontecendo aqui”, conta Hélio Gimenez Fernandes, coordenador da Comissão Guarani Yvirupa que está acompanhando de perto esse novo processo de invasão da comunidade Pindó Poty, do Lami em Porto Alegre

Assim como Hélio, Roberto Liebgott, que é coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi-Sul), vem desde a semana passada acompanhando a situação.

Ambos foram informados pelo cacique Roberto Ramires sobre o loteamento ilegal das terras, mesmo estando a área já com procedimento de demarcação iniciado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2012.

“Tomei a decisão de fotografar o local invadido e informar ao Ministério Público Federal acerca da continuidade do esbulho na área indígena”, escreveu, em relato publicado no Portal Desacato

Roberto conta que além de perceber que o desmatamento da área aumentou, deparou-se com pessoas que roçavam e fincavam estacas para marcação dos lotes.

“Um dos homens ao me ver, se aproximou e de imediato o indaguei se ele sabia que aquela terra era indígena. Calmamente me respondeu que sabia. Eu então, em sequência, o questionei: Se sabe que a área é particular por que a estão loteando? Ele, muito mais calmamente ainda, como que sussurrando, disse que estavam cuidando do lugar.”

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As invasões nesta área ocorrem de forma sistemática, explica Roberto. A surpresa é que o fato ocorre “à luz do dia e diante dos olhos de todos”.

Segundo ele, a comunidade apresentou várias denúncias das invasões ao Ministério Público Federal (MPF), mas o procurador informou que acionou a Funai e que o representante do órgão indigenista alegou não poder fazer nada porque a terra não foi demarcada.

“Ou seja, servidor da Funai lavou as mãos e, com esse gesto, mantém os Guarani submetidos a uma violência cotidiana”, avalia Roberto.

“Penso que o movimento indígena, as entidades indigenistas, as demais organizações de apoio e os Conselhos Estaduais dos Povos Indígenas e dos Direitos Humanos precisarão agir firmemente para impedir o loteamento do restante da área e exigir a imediata retirada dos invasores para, com isso, evitar a violência contra a vida dos Mbya Guarani", afirma o indigenista.

"As famílias da comunidade, que lá vivem, estão em situação de absoluta vulnerabilidade, dado que a aldeia se encontra nas margens da estrada”.

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Roberto salienta que o processo de loteamento ilegal “tem vínculo com interesses econômicos que transcendem as pessoas pobres que lá estão instalando barracos improvisados”.

Ele aponta que há um grande fluxo de pessoas e veículos no local e que, bem em frente à área indígena, instalou-se um enorme empreendimento econômico, com supermercado, agropecuária, madeireira e lojas comerciais das mais diversas. 

A suspeita, segundo Roberto é de que sejam pessoas contratadas, tipo laranjas, por  alguém que deseja esbulhar a área para depois tomar posse definitiva.

“Ou os órgãos responsáveis atuam, de modo urgente, ou as famílias da comunidade serão expulsas, pelos invasores, de dentro de suas próprias casas”, critica. “Já se fez três denúncias ao MPF e Funai, mas, por incrível que possa parecer, a invasão persiste e agora de modo escancarado. Talvez, se esperar mais uma semana, seja tarde demais”, conclui.

Resposta do MPF

O Brasil de Fato entrou em contato com a Procuradoria da República no Rio Grande do Sul, que afirmou que, em 5 de setembro de 2019, ajuizou a
Ação Civil Pública nº 5059077-76.2019.4.04.7100 referente ao tema.

O objetivo era conseguir uma decisão judicial para determinar que a União e a Funai realizassem procedimentos administrativos de identificação e delimitação das áreas de ocupação tradicional indígena daquela comunidade.

Ainda segundo a Procuradoria, o MPF foi informado em 9 de julho de 2020 que uma pessoa não-indígena teria instalado um casebre na Aldeia Guarani do Lami/Flor do Coqueiro (Tekoá Pindó Poty). Em razão disso, instaurou-se o Inquérito Civil nº 1.29.000.002504/2020-42, para “apurar suposta invasão, por não-indígena, de área da comunidade indígena Mbyá-Guarani do Lami (aldeia Flor do Coqueiro/Tekoá Pindó Poty), localizada em Porto Alegre/RS, ocasionando desmatamento no local.”

O MPF, então, expediu uma recomendação ao coordenador da Regional Litoral Sul da Funai, "para que este tomasse as medidas cabíveis para conter, isolar e retirar os invasores de terras indígenas com o fim de evitar a propagação da COVID-19 nos territórios indígenas."

A Funai respondeu a essa recomendação no dia 28 de janeiro, afirmando que "a área denominada Tekoá Pindó Poty sequer teve os seus
estudos concluídos e aprovados pela Presidência da Funai, não tendo sido, até o momento, delimitada, ou mesmo percorrido as demais etapas inerentes à formalização do território indígena (delimitação, declaração, homologação, regularização), o que restringe o alcance da atuação deste órgão indigenista no local."

"Não resta dúvidas, entretanto, da proximidade dos danos relatados pelo Ibama com as casas dos indígenas", acrescentou a Funai. O órgão alegou, no entanto, que sua atuação era limitada "em consequência de os estudos não estarem finalizados e aprovados (...) e além disso, considerando-se que esta área não conta com processo demarcatório homologado, tal área não está formalmente sob propriedade da União."

Dadas as negativas da Funai, o procurador Jorge Irajá Louro Sodré informou à reportagem que "o MPF ajuizará a devida ação de reintegração de posse, tendo, neste momento, solicitado à divisão interna diligência para identificação e fotografias da quantidade de habitações construídas sem a autorização da liderança indígena e qualificação dos esbulhadores."

Brasil de Fato entrou em contato com a Funai e com a imobiliária Bom Lami, mas não houve retorno.

Resistência

A comunidade Mbya Guarani Pindó Poty, em articulação com a Comissão Guarani Yvyrupa, realizam ao longo desta quinta-feira (22) a ação cultural Teko Porã Tenondeve rã (O futuro do nosso Bem Viver), aberta ao público, com exposição de artesanato e apresentação do coral.

Cumprindo as regras de distanciamento para os visitantes, a ideia é difundir a história de luta da comunidade pela demarcação das terras e denunciar as ameaças recentes.

O evento ocorre na própria comunidade, na estrada do Varejão, bairro Lami.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Marcelo Ferreira