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Aumenta pressão pela suspensão de patentes das vacinas contra covid-19

Só 27 países têm 40% das doses aplicadas; mais de 100 países pedem quebra de patentes

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Desigualdade: 36% dos norte-americanos foram vacinados; na África, só 1% - Reprodução / Twitter

Uğur Şahin é CEO e cofundador da empresa de biotecnologia alemã BioNTech, e detém 17% das ações da companhia que se associou à Pfizer para produzir a primeira vacina contra a covid-19 aprovada nos Estados Unidos. Hoje, sua fortuna é avaliada em US$ 6,8 bilhões. Já Stéphane Bancel é o CEO da Moderna, empresa de biotecnologia sediada em Cambridge, Massachusetts, e possui cerca de 8% das ações da empresa que conseguiu aprovar, em dezembro de 2020, o uso emergencial de sua vacina contra a doença provocada pelo coronavírus também nos Estados Unidos. Seu patrimônio é avaliado em US$ 5,7 bilhões.

Em comum, ambos viram suas fortunas aumentarem, enquanto a economia mundial patinava e dezenas de milhões de pessoas se viram às voltas com o desemprego e a fome. No ano passado, grandes farmacêuticas distribuíram bilhões para acionistas. A Aztrazeneca deu aos seus US$ 3,6 bilhões e a Pfizer, US$ 8,44 bilhões. A Johnson & Johnson distribuiu US$ 13,7 bilhões.

Saúde pública

“Esta é uma emergência de saúde pública, não uma oportunidade de lucro privado”, disse Anna Marriott, gerente de políticas de saúde da Oxfam, ao site da federação sindical Internacional de Serviços Públicos, que representa 20 milhões de trabalhadores em 163 países. “Não devemos permitir que as empresas decidam quem vive e quem morre enquanto aumentam seus lucros. Precisamos de uma vacina para a população, não de uma vacina lucrativa.”

Assim, a entidade afirma que quase 40% de todas as doses de vacinas administradas contra a covid-19 em todo o mundo estão concentradas em 27 países, todos no Hemisfério Norte, representando apenas 11% da população global. A distribuição desigual da imunização, orientada pelo lucro, se reflete ainda no fato de que 36% das pessoas na América do Norte já receberam ao menos uma dose da vacina. Assim, esse percentual alcança 22% na Europa. Já na África, somente 1% receberam o imunizante.

Propriedade intelectual

Diante da situação, centenas de entidades de todo o mundo promovem uma campanha em prol da suspensão das patentes, com isenção de obrigações do Trips, acordo que regula a propriedade intelectual. O que poderia permitir que empresas de medicamentos genéricos começassem a produzir vacinas.

No âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), já existe uma proposta formal, liderada pelos governos da África do Sul e da Índia e com o apoio de mais de uma centena de países. Isso para que as farmacêuticas renunciem temporariamente às regras de propriedade intelectual relacionadas às vacinas e tratamentos contra a covid-19.

Dinheiro público banca as vacinas

Parte da oposição das grandes companhias farmacêuticas contra a suspensão das patentes se baseia na argumentação de que isso diminuiria a busca pela inovação. No entanto, a justificativa não se sustenta quando se verifica que € 93 bilhões de financiamento público foram destinados ao desenvolvimento das vacinas. A vacina Oxford/AstraZeneca, por exemplo, foi 97% financiada publicamente. A despeito disso, algumas empresas, que sempre contaram com significativo apoio financeiro e tecnológico dos governos, agora podem faturar enormes quantias, lucrando com a pandemia.

Moderna, Pfizer/BioNtech, Johnson & Johnson, Novovax e Oxford/AstraZeneca não apenas receberam bilhões em financiamento público e pré-encomendas garantidas de diversos países, incluindo US$ 12 bilhões do governo americano, como ainda fizeram uso de anos de pesquisas e descobertas que contaram com o financiamento estatal. Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Sciente, Technology and Innovation Outlook 2021 – Times of Crisis and Opportunity, 72% de financiamento para P&D foram dos governos no mundo inteiro. É o que destaca em artigo o professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Uallace Moreira.

Financiamento de pesquisa

“As principais iniciativas de financiamento de pesquisa em todo o mundo apontam que mais de US$ 7 bilhões de recursos novos ou redirecionados foram desbloqueados em 2020. Desse total, US$ 5 bilhões foram dos governos, ou seja, quase 72% foi financiamento público em P&D”, pontua o economista. “Isso inclui cerca de US$ 300 milhões para a região da Ásia-Pacífico (excluindo a República Popular da China), mais de US$ 850 milhões para a Europa e mais de US$ 3,5 bilhões para a América do Norte.”

Em 14 de abril, 175 ex-chefes de Estado e vencedores do Prêmio Nobel, como o ex-primeiro-ministro do Reino Unido Gordon Brown, o ex-presidente da Colômbia Juan Manuel Santos, a ex-presidenta da Libéria Ellen Johnson Sirleaf, o ex-presidente da França François Hollande e o professor e economista Joseph Stiglitz escreveram ao presidente Joe Biden. Buscam apoio à proposta dos governos da África do Sul e da Índia na OMC.

“Embora os Estados Unidos tenham feito um enorme progresso na vacinação de sua própria população, graças aos esforços do governo Biden, isso por si só, infelizmente, não é suficiente”, destaca Joseph Stiglitz. “Novas mutações do vírus continuarão a custar vidas e derrubar nossa economia global interconectada até que todos, em todos os lugares, tenham acesso a uma vacina segura e eficaz. A propriedade intelectual é a maior barreira artificial para o fornecimento global de vacinas. Nós, como nação, devemos liderar com nossos aliados para apoiar a renúncia da África do Sul e Índia na OMC, insistir na transferência de tecnologia e investir estrategicamente na produção.” Agora, o Conselho Geral da OMC vai realizar uma reunião formal na primeira semana de maio e pode debater a proposta.

Brasil: oposição pede suspensão das patentes

O governo Bolsonaro já se posicionou de forma contrária à suspensão das patentes relacionadas às vacinas contra a covid-19. Mas parlamentares da oposição enviaram nesta semana uma carta à diretora-geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala, apoiando a proposta de África do Sul e Índia.

“Enquanto existem países no mundo que ainda não aplicaram nenhuma dose, 16% da população mundial já reservaram 70% das vacinas disponíveis. No ritmo atual, mais de 85 países só alcançarão níveis razoáveis de vacinação em 2023. Esta desigualdade coloca o mundo todo em risco por proporcionar a continuidade da pandemia e o surgimento de novas variantes”, destaca a carta, assinada por parlamentares de PCdoB, PDT, PSB, Psol e PT.