Pandemia

A tragédia da covid-19 na Índia que não aparece nos números oficiais

Especialistas apontam que precariedade no sistema de registro de óbitos sugere que realidade é ainda mais dramática

|
A Índia superou nesta quarta-feira (28) a marca de 200 mil mortos por covid-19, após registrar mais de 3 mil óbitos em 24 h pela primeira vez - Punit Paranjpe/AFP

Na semana entre 18 e 25 de abril, a Índia relatou 2,24 milhões de novos casos de coronavírus, o maior número computado por qualquer país em um período de sete dias.

Também registrou 16.257 mortes, quase o dobro das 8.588 mortes contabilizadas na semana anterior, segundo dados do Ministério da Saúde indiano. A Índia superou nesta quarta-feira (28) a marca de 200 mil mortos por covid-19, após registrar mais de 3 mil óbitos em 24 horas pela primeira vez.

O país tem apresentado taxas diárias de mais de 300 mil casos nos últimos dias. Nesta quarta-feira, foram 360.960 novas infecções. Ao todo, quase 18 milhões de pessoas foram infectadas com o vírus na Índia, segundo dados da Universidade Johns Hopkins, dos EUA.

"Tragédia é muito maior"

As cifras impressionam, mas especialistas acreditam que o número real de mortes por covid-19 pode ser muito maior do que os das autoridades sanitárias do país.

"As cenas angustiantes de pacientes morrendo em ambulâncias e corpos queimando em piras fora dos crematórios e até mesmo nas calçadas das cidades mostram claramente que a tragédia é muito maior", diz o médico particular Anoop Saraya.

:: Últimas notícias da vacina: Rússia deixará de atuar para exportar Sputnik V ao Brasil ::

A taxa de mortalidade relativamente baixa da Índia não conta toda a história e há suspeitas de que há uma subnotificação substancial em vários estados do país. Casos suspeitos não estão sendo incluídos na contagem final, e as mortes pela infecção estão sendo creditadas a problemas de saúde subjacentes, dizem observadores.

"Parece haver uma grande discrepância entre os registros oficiais de mortes atribuídas à covid-19 e os relatos de cremações e enterros, que são muito diferentes do que o que normalmente seria esperado", afirma Gautam Menon, professor de física e biologia da Universidade Ashoka.

"Essas discrepâncias sugerem que os números verdadeiros estão sendo suprimidos", avalia o especialista em saúde.

"O número real de mortes por covid-19 pode ser de 5 a 10 vezes os números oficiais. Junto com a subnotificação de casos e as altas taxas de infecções que estamos vendo em todo o país, a verdadeira escala da pandemia pode ser muito pior do que os números sugerem", acrescenta.

:: Covid: com piora dos números, 20 países restringem entrada de brasileiros; veja lista ::

Atrasos em testes Shahid Jameel, virologista e diretor da Escola de Biociências Trivedi da Universidade Ashoka, também afirma que o número real de mortos é maior do que o registrado, com base em relatórios de cremações e de cemitérios.

Ele destaca que o aumento da demanda por testes de covid-19 criou atrasos, fazendo com que os laboratórios que emitiam resultados em horas passassem a demorar dias para um diagnóstico. "Um problema que está acontecendo é que os resultados dos testes estão demorando muito para chegar. Aconteceu com meu primo em Uttar Pradesh. Ele foi testado em 13 de abril, e o resultado do teste ainda não chegou", relata Jameel.

"E ele não será relatado como morte por covid-19, embora ele tivesse todos os sintomas, incluindo uma pontuação muito alta de infecção pulmonar e indícios de de inflamação elevados no sangue. Existem milhares de casos como esse."

Precário registro de mortes

Em cidades menores como Surat, Kanpur e Ghaziabad, que têm relatado um alto número de mortes pelo vírus, cremações em massa têm ocorrido em espaços abertos por causa da escassez de espaços para crematórios e mortes em cifras muito superiores aos números oficiais.

Embora muitos países tenham lutado para registrar o número preciso de mortes pelo coronavírus, na Índia, o problema foi agravado pela falta de um sistema de registro de óbitos eficaz em muitas partes do país.

A causa da maioria das mortes no país não é atestada por um profissional médico treinado, tornando os dados sobre a taxa de letalidade pouco confiáveis. "Como o registro de óbitos é precário na Índia, o governo terá poucos dados para responder ao impacto da covid-19 em grandes partes da população que vive em áreas rurais", explica o renomado virologista Jacob John.

Se essas mortes tivessem sido monitoradas por um sistema de registro, elas poderiam ter sido usadas para um direcionamento melhor das medidas de socorro do governo, assim como das respostas do sistema de saúde.

"Infelizmente, não temos sistema de saúde público neste país. A causa das mortes raramente é registrada", lamenta John.

Mortes fora dos hospitais Na ausência de um sistema confiável de registro de óbitos, o Programa de Vigilância Integrada de Doenças (IDSP) do governo tem coletado dados sobre casos de covid-19 e óbitos em laboratórios de teste e em hospitais.

No entanto, a principal limitação do IDSP é que ele não tem como rastrear as mortes fora dos hospitais. "No cenário atual, a crescente contagem oficial de casos na Índia pode representar apenas a ponta de um iceberg. Por causa das baixas taxas de testes fora das grandes cidades, o número de casos reais e as mortes podem ser de 10 a 30 vezes maiores", afirma Vikas Bajpai, do Progressive Medicos and Scientists Forum.