Massacre

Colômbia: por que os protestos continuam mesmo após recuo do governo Iván Duque

Presidente retirou proposta de reforma tributária e convocou mesa de diálogo para dia 10, mas a repressão se mantém

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Em Cali, familiares e amigos homenageiam manifestantes assassinados pelo Estado colombiano na última semana - Luis ROBAYO / AFP

Milhares de trabalhadores protestam nas ruas da Colômbia desde 28 de abril contra uma proposta de reforma tributária apresentada pelo governo Iván Duque. O informe mais atualizado da Defensoria Pública do país sobre a repressão aos manifestantes aponta que 24 pessoas foram mortas e 89 desapareceram durante a mobilizações. Organizações de direitos humanos apresentam números ainda maiores.

As manifestações são convocadas por sindicatos, estudantes, indígenas, políticos de oposição e movimentos sociais. As maiores mobilizações ocorrem em Medellín, Cali e na capital Bogotá.

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A exemplo de Jair Bolsonaro (sem partido), Duque lidera um governo de direita, de orientação neoliberal, aliado dos Estados Unidos, e tinha cerca de 33% de aprovação ao início dos protestos.

O presidente prometeu retirar a proposta de reforma tributária no último dia 2, mas os protestos continuam, deixando claro que essa medida foi apenas a gota d’água em um contexto de crescente insatisfação popular.

Guerra sem fim

A Colômbia vive um conflito armado há mais de 60 anos. De um lado, estão guerrilhas que lutam pelo direito à terra aos camponeses. Do outro, narcotraficantes que precisam de terrenos férteis para manter a produção de drogas ilícitas, como a cocaína – fornecida principalmente aos EUA. Como componente adicional, está a violência de Estado.

Se na cidade a repressão fica por conta da Polícia Nacional, no campo a tarefa fica à cargo do Exército Nacional e de grupos paramilitares. Desde 1964, 215 mil civis já foram mortos nesses conflitos.

O Acordo de Paz firmado em 2016 pelo antecessor de Duque, Juan Manuel Santos, junto às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (Farc-EP), estabelecia como condições para o armistício uma reforma agrária e o fim do paramilitarismo e das perseguições políticas à oposição.

A Unidade de Planificação Rural Agropecuária da Colômbia, organismo vinculado às Nações Unidas, aponta que 82% das terras produtivas do país estão nas mãos de 10% da população.

O governo colombiano nunca honrou seu compromisso. Quatro anos e meio após o Acordo de Paz, mais de mil líderes sociais foram assassinados no país.

Em seus discursos, Duque culpa o narcotráfico pela violência que assola o país. Para o partido Farc, legalizado após o Acordo de Paz, tanto paramilitares quanto paramilitares devem assumir sua responsabilidade pelos assassinatos.

O processo de paz entre o governo nacional e o grupo guerrilheiro Exército da Liberação Nacional (ELN) foi interrompido oficialmente em 2019, no primeiro ano de governo Duque.

Crise econômica e desigualdade

O Produto Interno Bruto (PIB) colombiano caiu 6,8% em 2020. O governo investiu cerca de 4,1% do PIB em medidas de ajuda emergencial e financiamento para os grupos mais vulneráveis durante a pandemia, de acordo com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Essas medidas foram insuficientes para frear o avanço da pobreza e da desigualdade, que cresceram 10 pontos percentuais na pandemia.

O percentual de colombianos em situação de pobreza chegou a 42,5%. Quase 3 milhões de pessoas passaram à extrema pobreza durante 2020.

“Enquanto o povo colombiano clama por comida, saúde e educação, o governo responde com a única coisa que tem: a bala”, afirmou o Conselho Regional Indígena do Estado do Cauca, em nota divulgada no dia 4.

A Colômbia registra 76 mil mortes em decorrência de coronavírus, de um total de 2,93 milhões de casos confirmados.

Rastilho de pólvora

Financiar gastos públicos por meio do aumento do imposto por valor agregado, que incide em mercadorias e serviços. Esse era o objetivo da proposta de reforma tributária apresentada pelo governo Duque ao Congresso no dia 15 de abril.

A reforma é considerada impopular, uma vez que a classe média e os trabalhadores já pagam mais impostos sobre consumo do que os ricos – proporcionalmente a seus ganhos. Para se ter uma ideia, serviços públicos como gás e energia seriam tributados em 19%. Além disso, Duque propunha reduzir a parcela de cidadãos isentos do imposto de renda.

A jornada de manifestações, iniciada no dia 28, coincidiram com o Dia do Trabalhador. Com protestos em todas as regiões do país, o governo foi obrigado a ceder.

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Um dia após o recuo de Duque sobre essa proposta, o ministro da Fazenda, Alberto Carrasquilla, renunciou ao cargo. Na última terça (4), a Organização das Nações Unidas (ONU) se pronunciou condenando as forças policiais “uso excessivo da força” nos protestos.


Manifestantes fazem barricadas em protesto contra política econômica e militarização do Estado sob comando de Iván Duque / Congreso de los Pueblos

Desde então, entre as principais demandas dos protestos estão o direito universal a um salário mínimo, a revogação de um “pacotaço” neoliberal que dificulta o acesso à saúde pública e à Previdência Social, e a dissolução do Esquadrão Móvel Antidistúrbios (Esmad), uma polícia especializada em combater manifestantes.

Além do respeito ao Acordo de Paz de 2016 e da responsabilização pelos assassinatos da última semana, a população mobilizada exige que o governo aumente o investimento público para preservar empregos, sobretaxando apenas a parcela mais rica.

Sobre as disputas com o narcotráfico, os manifestantes se posicionam contra a pulverização com veneno glifosato em cultivos de folha de coca. Desde 2015, esse procedimento está vetado por recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Duque vê na pulverização uma forma de desmantelar guerrilhas e grupos armados que seriam financiados pelo comércio ilegal de cocaína.

O governo diz estar aberto ao diálogo e responsabiliza a oposição por incitar a violência.

Perseguição avança

As principais forças de esquerda no país denunciaram já em setembro de 2020, por meio de nota, “um processo de alta militarização dos territórios e da vida que se acentua com a pandemia e se constituiu através de um governo autoritário, fascista, genocida, repressivo e criminoso.”

A nota foi divulgada dias após a Força Aérea Colombiana (FAC) iniciar exercícios militares conjuntos com os EUA – ainda sob governo Donald Trump. A operação “Poseidon" durou quatro dias e pretendia “afinar a capacidade de resposta dos dois países contra o narcotráfico.”

Em 2009, o então presidente colombiano Álvaro Uribe assinou um acordo com o então chefe da Casa Branca, Barack Obama, para instalar sete bases militares dos EUA no país.

Para representantes do partido Farc e do ELN, a insatisfação popular só será contida com uma sinalização clara do governo de que cumprirá os termos do Acordo de Paz.

Segundo essas organizações, a repressão que se observa nas ruas contra opositores reflete a militarização de um Estado que vê a população como inimiga.

A ONG Temblores, que compila denúncias de abuso policial, registra 1,5 mil atos de violência cometidos pelas forças de segurança do país desde o dia 28. Foram mais de 800 detenções arbitrárias, 77 disparos de arma de fogo contra civis, mais de 20 lesões oculares e quase 900 feridos.

Perspectivas

Na manhã desta quinta (6), Duque convocou uma mesa de diálogo com o Comité Nacional del Paro, organização que se propõe a representar o conjunto dos manifestantes. O governo pretende colocar um ponto final nas manifestações em uma reunião na próxima segunda-feira (10).

A Coordenação Nacional Agrária (CNA), que reúne camponeses de todas as regiões do país, e o Congreso de los Pueblos, que congrega vários setores do movimento social colombiano, são contrários a essa mesa de diálogo. Para eles, Duque não merece a confiança da população e busca apenas desmobilizar os trabalhadores, estudantes e indígenas.

Organizações que não fazem parte do Comitê Nacional e trabalhadores não vinculados a sindicatos ou movimentos sociais continuam nas ruas com o slogan “que caia o mau governo”, pedindo o impeachment ou a renúncia de Duque.

Edição: Vinícius Segalla