Polícia sem controle

Jovens batem moto em carro de delegada em SP e são acusados de tentativa de roubo

Familiares contam que três rapazes brincavam de empinar motos e causaram acidente: polícia resolveu levar todos presos

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Por empinar moto e “darem fuga” em delegada, jovens são presos acusados de suposta tentativa de roubo - Arquivo pessoal

Por Beatriz Dragues Ramos



No último sábado, feriado de 1º de maio, quatro amigos saíram do Rio Pequeno e da região do Butantã, ambos na zona oeste da cidade de São Paulo, com suas motocicletas em direção a um condomínio em Vargem Grande Paulista (Grande SP). 

A intenção do atendente de pizzaria Alex Vinícius Medeiro da Silva, de 18 anos e seu irmão motoboy, Pedro Henrique Ferreira da Silva, de 19 anos, junto aos amigos que também trabalham como motoboys Matheus Leal de Carvalho, 21 anos e Gustavo Alcantara Lacerda, 21 anos, era “conhecer uma pista de barro, justamente para andar de moto”, uma paixão compartilhada entre eles, explica a jornalista Vitória Guilhermina Alves Moreira, 21 anos, prima de Alex e Pedro. 

A volta do passeio, entretanto, ficará marcada na vida dos quatro. Ao adentrarem em uma rotatória, Pedro, que pilotava uma das motos, se chocou com o carro de uma delegada. Ela agora os acusa de tentativa de roubo, e os jovens estão presos preventivamente no Centro de Detenção Provisória Chácara Belém ll. Apesar das acusações, nenhum dos rapazes estava armado durante o acontecimento.  

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O boletim de ocorrência, assinado pelo delegado Fillipe William Arco Verde Me, da Delegacia de Polícia de Cotia, acusa todos os meninos de tentativa de roubo, cuja a pena pode ser de 1 ano e 4 meses a 2 anos e 8 meses de prisão, e de posse de drogas para consumo pessoal, que pode gerar prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Também atribuiu aos jovens infração ao artigo 308 do Código de Trânsito Brasileiro, que prevê 6 meses a 3 anos de prisão, multa e suspensão da carteira de habilitação por participar de corridas de rua, os populares “rachas”. No caso dos jovens presos, nenhuma das penas resultaria em prisão, pois todos são acusados primários.

O documento policial relata que era por volta de 12h50 da tarde quando a vítima, uma delegada, acompanhada de uma amiga que estava no passageiro do carro percebeu que duas pessoas a bordo de uma motocicleta parcialmente azul entraram em uma curva de forma “colada” ao seu veículo. Nesse momento os motociclistas tentaram alcançar o vidro da motorista, segundo ela. O endereço da curva, no entanto, não é citado no documento policial. 

De acordo com o relato da vítima feito na delegacia, um dos jovens que estavam na outra moto surgiu no vidro ao lado da passageira do carro e uma terceira motocicleta ficou atrás do veículo, que segundo elas tentava impedir qualquer manobra do carro. 

A delegada diz que ouviu um dos motociclistas dizer “perdeu”, sugerindo, para ela, uma suposta tentativa de roubo. Ela então afirma que lançou o carro em cima da moto, fazendo com que Pedro se desequilibrasse, depois ela diz que os quatro meninos fugiram pela rodovia Raposo Tavares e que ela os perseguiu. 

O documento aponta que a vítima conseguiu ver uma parte da placa da moto de um dos meninos, uma vez que um dos rapazes que estava na garupa tampou com a mão. Também diz que o capacete de um dos jovens era azul espelhado. Mas não indica quais meninos estavam na motocicleta.

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Durante a suposta perseguição, às vítimas afirmam que viram os jovens parados em frente a uma academia de ginástica, mas que ao verem seu carro, continuaram a fuga pela Raposo Tavares, sentido São Paulo, enquanto ambas as vítimas comunicaram o ocorrido por telefone aos seus respectivos maridos, que são policiais, descrevendo a rota que faziam. Em seguida, avistaram os jovens entrando para a direita na altura do quilômetro 36 da rodovia.

Minutos depois, segundo o BO, os policiais civis Marcos Ferreira Luz, condutor, e Jorge Alexandre Barbosa de Miranda, que é marido de uma das vítimas, encontraram os quatro motociclistas parados em um posto de gasolina na rua Índia, no município de Cotia (Grande SP).

A testemunha, segurança do posto, informou que os jovens acusados chegaram rindo ao local, um deles teria retirado uma fita isolante da placa e ficaram falando entre eles que “deram fuga”. Além disso, foi encontrada uma pequena quantidade de maconha para uso pessoal com Matheus e Gustavo, segundo o boletim de ocorrência. 

Todos foram levados para a delegacia. Pedro e Alex foram algemados, segundo o BO eles teriam resistido à detenção. O delegado ouviu os depoimentos sem a presença de advogados e decretou a prisão em flagrante no final da tarde. 

Na segunda-feira (2/5), sem audiência de custódia, a prisão em flagrante foi convertida em preventiva pela juíza Carolina Conti Reed, da comarca de Itapecerica da Serra, do Tribunal de Justiça de São Paulo. Em sua decisão, ela diz que o crime de roubo tentado é grave, além de que as condutas de “utilizarem entorpecentes e realizarem manobras perigosas e proibidas em via pública colocam em risco a segurança social, posto que poderiam atingir pedestres ou outros veículos, ocasionando acidentes”.

Família e defesa apontam contradições nas acusações

Intimidações, ameaças e inconsistências no BO são apontadas pela família de Alex e Pedro, além das respectivas defesas de cada um dos quatro jovens. Segundo o advogado Mário Augusto Pires, 35 anos, que está ajudando a família e que foi à delegacia verificar o estado dos jovens, o marido de uma das vítimas que foi acionado durante a ocorrência teria “acompanhado a escritura do BO e ditado para o delegado o que ele deveria escrever”. 

Ele ainda relata que houve uma ameaça aos garotos. “A vítima teria aparecido acompanhada do seu marido e nesse momento os meninos foram ameaçados: ‘vamos acabar com a vida de vocês”’, teria dito o homem no posto de gasolina. Além disso, segundo ele, “os meninos relataram que ela teria dito que ‘não sairia prejudicada sozinha’”. 

Na visão de Mário, essas novas acusações feitas pelos rapazes mostram que a prisão deles pode ter sido “um tipo de retaliação por um acidente de trânsito. Ao menos é uma leitura possível”. 

Outra contradição trazida pelo advogado está no fato de que, segundo os rapazes, a vítima parou o carro enquanto os jovens estavam próximos dela, e ajudavam um deles a se levantar. Nesse momento ela teria falado sobre danos em seu carro. “Foi quando eles se assustaram e teriam corrido, depois pararam em um posto de gasolina próximo e aí surge a vítima e o policial. Ela diz que pediu ajuda por medo de uma emboscada. Emboscada em posto de gasolina? Sem armas? Com câmeras de vídeo? Isso não é uma emboscada”, argumenta.

O documento policial também não aponta onde ocorreu a suposta violação ao código de trânsito, ademais nos depoimentos dos rapazes é unânime a versão de que na verdade o que houve foi um acidente de trânsito e não um crime. 

Segundo os depoimentos, Pedro perdeu o controle de sua moto e bateu na traseira da moto de Gustavo, e em seguida Pedro bateu no carro da vítima, momento em que ela jogou seu carro sobre o motociclista. Depois disso Alex ajudou seu irmão Pedro a levantar a moto e todos saíram para evitar de pagar o prejuízo.

Mário ainda lembra que, para provar que houve colisão entre as motos, bastaria checar o “amassado no escapamento”. “Ora, se bateram na traseira da moto, não estavam cercando ela.” O advogado critica o fato de que não houve audiência de custódia e que “eles não foram assistidos por advogados nos interrogatórios”.


Carta escrita por Pedro e Alex que ficaram presos na delegacia municipal de Cotia até esta quarta-feira (5) / Arquivo Pessoal

Vitória, prima de Alex e Pedro, relata que quando foi ver os rapazes na delegacia foi recebida com intimidações. “Tivemos que ouvir de diversos policiais na delegacia que eles só não estavam mortos porque a delegada saiu sem sua arma. Não tem nenhuma prova concreta contra eles, estão os acusando de tentativa de roubo com um flagrante, mas não houve um flagrante”, diz.

Ela também conta que tem uma relação muito próxima com os primos e diz que ambos começaram a trabalhar cedo para conquistar independência e ajudar em casa. “Eles são dois jovens que buscam a independência deles através do trabalho, não tem porque manterem eles presos, eles são trabalhadores, têm carteira assinada, residência fixa, não têm antecedência, por que manter quatro jovens presos?”, reitera Vitória.

A jornalista ainda questiona a falta de provas. “A única coisa que ela disse ouvir foi ‘perdeu’, perdeu o que? Isso é a violência que está enquadrando eles no crime? Eles estão presos por baterem no carro de uma delegada, de uma autoridade. Essa prisão é uma grande injustiça, é mais uma vez a prova de que o nosso sistema de justiça é parcial sim e está do lado de quem tem mais poder. Estamos querendo apenas justiça e liberdade para os nossos, que o Estado faça o mínimo do seu trabalho e devolva esses jovens para suas famílias”.

Assim como Vitória, a atendente de mercado, Isabela Ferreira Da Silva, 24 anos, também sofre com a prisão de seus irmãos, Alex e Pedro. “Estamos nos sentindo muito tristes  e impotentes com esse abuso de autoridade, porque eles estão lá por algo que não fizeram. O coração dói muito sabendo que eles são inocentes e estão lá presos”.

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Segundo ela, a prisão dos dois provocou uma desestruturação na família, já enlutada pela perda da mãe tempos atrás. “Perdemos nossa mãe há pouco  tempo, agora eles presos que ajudam meu pai na parte financeira, meu pai vai ter que se virar com tudo. A família toda está muito abalada, sofrendo pela saudade e esse abuso de autoridade é horrível, isso tem que mudar”.

Apesar das contradições expostas pela família, o promotor Guilherme Silva de Deus se manifestou no domingo (2/5) a favor da decretação da prisão preventiva. Segundo ele, os supostos crimes praticados exigem a privação dos indiciados do convívio social, “sob pena de comprometer a própria higidez e integridade da ordem pública”.

No mesmo dia, a advogada Tatiana Pina solicitou a liberdade provisória de Gustavo, que não tem antecedentes criminais. Ela sugere que não existe qualquer indício de que os rapazes iriam praticar o crime de roubo contra a vítima, até mesmo porque sequer foi localizado qualquer tipo de arma com eles.

Ela ainda argumenta nos autos do processo que a testemunha que trabalha no posto de gasolina ouviu quando os jovens falaram: “agora era só esperar a multa vir”, “conseguimos dar fuga”. O que demonstra que eles fugiram por medo de arcar com o prejuízo da batida no carro da vítima. A reportagem tentou entrar em contato com a advogada, mas ela não quis se manifestar.

Já Alex, Pedro e Matheus tiveram seu pedido de revogação da prisão preventiva feito pelo advogado Sidvan de Brito, que em sua defesa diz que o “Estado Democrático de Direito que resguarda a presunção de inocência, a regra é que o processo transcorra com o acusado em liberdade”. 

À Ponte ele afirmou que todos possuem bons antecedentes, além de que houve uma interpretação equivocada por parte do delegado e da juíza que os manteve presos, pois não houve nenhuma ameaça. Agora ele pretende aguardar o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público para requerer novamente a liberdade dos jovens. “Caberia um pedido de liberdade provisória e no caso de negativa, um outro pedido de habeas corpus ao Tribunal de Justiça”.

A advogada da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio Fernanda Peron avalia que houve um flagrante forjado, porque na verdade se trata de um “flagrante inexistente, imaginado”. 

Ela vê com estranheza as acusações de crime de corrida de automóveis e ao mesmo tempo de tentativa de roubo. “As versões são claramente incompatíveis. Isso indica que já havia sinais desde a delegacia de que eles estavam apenas tirando racha, mas prevaleceu a versão da suposta vítima, uma Delegada de Polícia. Ela disse apenas que teria ouvido alguém dizer ‘perdeu’, o que evidentemente não pode servir como único fiapo de indício de que tenha ocorrido uma tentativa de roubo”, aponta.

Fernanda lembra que a Polícia Civil precisa fazer uma apuração preliminar para ver se existe prova de que o crime de fato existiu. “Nesse caso não tem materialidade, ou seja, não tem evidência de roubo, a única evidência é de que houve um acidente de trânsito, uma confusão muito rápida. E depois disso os rapazes saíram correndo, mais um indício de que não estavam tentando roubar ninguém. Resta saber se o Judiciário vai servir para constatar essa ilegalidade ou apenas chancelar o absurdo que já está no processo”.

No mesmo sentido, Juliana de Almeida Valente, advogada criminalista e membra da Comissão de Direitos
Humanos da OAB-SP, diz que há inconsistências. “Como o fato da mulher que estava na carona não ter relatado nenhuma abordagem que indicasse a tentativa de roubo, só o desespero da condutora/vítima com receio de ser roubada e a colisão.”

Caio Patricio de Almeida, advogado criminalista, mestre em Criminologia e Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor de Direito Penal e Criminologia. alega que caso comprovado a versão dos investigados a própria delegada poderá responder pelos crimes de “denunciação caluniosa e seu marido que efetuou a prisão por abuso de autoridade”.

Outro lado

Em nota, a In Press, assessoria terceirizada da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), informou que “todos foram reconhecidos pelas vítimas na Delegacia de Cotia, que instaurou inquérito policial. A prisão dos quatro foi apreciada pelo Poder Judiciário, que também aceitou a conversão da prisão em flagrante em preventiva”.

A pasta não respondeu qual foi a prova encontrada pelo delegado para prender os meninos em flagrante, se é procedimento comum na delegacia a vítima acompanhar e ditar a lavratura do BO e nem porque o endereço do acidente não é mencionado no BO, bem como onde de fato ocorreu o acidente.

A reportagem questionou o Ministério Público e o Tribunal de Justiça sobre qual foi a prova do suposto crime encontrada pelo promotor e a juíza para se manifestarem a favor da prisão dos meninos, por que os quatro meninos que não estavam armados apresentam perigo à ordem pública e por que os quatro meninos que possuem residência fixa, trabalho fixo e não são reincidentes, devem permanecer presos. Nenhuma das questões foram respondidas.

O Tribunal de Justiça informou que não se manifesta sobre questões jurisdicionais pois os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. “Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente”.

Ponte solicitou uma entrevista com o promotor Guilherme Silva de Deus e com o delegado Fillipe William Arco Verde Me, os pedidos não foram respondidos até a publicação da reportagem.