ORIENTE MÉDIO

Os Estados Unidos vão se retirar do Afeganistão? Mais ou menos.

Noam Chomsky e Vijay Prashad explicam os custos do fim da guerra de duas décadas e de uma vida pacífica para os Afegãos

Tradução: Julia Abdalla

People's Dispatch* |
Soldados estadunidenses na província de Kunar, Afeganistão. - Wikimedia Commons

A invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos em outubro de 2001 foi criminosa. Deve ser entendida assim dada a força descomunal empregada para implodir a infraestrutura física do país e dilacerar seus laços sociais. 

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Em 11 de outubro de 2001, o líder afegão Abdul Haq foi entrevistado pelo jornalista Anatol Lieven em Pexauar, no Paquistão. À época, o líder da resistência contra o Talibã se preparava para retornar ao Afeganistão sob a proteção dos bombardeios aéreos estadunidenses. Contudo, ele não estava satisfeito com o modo como os Estados Unidos haviam decidido conduzir a situação: “Nas atuais circunstâncias, focalizar ações militares só torna as coisas mais difíceis, especialmente se essa guerra continuar por muito tempo e muitos cidadãos forem mortos”, ele disse a Lieven. A guerra ainda continuaria por 20 anos e pelo menos 71.344 civis perderiam suas vidas nesse período.  

Segundo Haq, “seria melhor se os Estados Unidos trabalhassem em uma solução política unificada, que envolvesse todos os grupos afegãos. Proceder de outra maneira incentivaria as divisões profundas entre os grupos, apoiadas por vários países, que afligem muito toda a região”. Essas foram palavras proféticas, mas Haq sabia que ninguém estava ouvindo. “Provavelmente”, ele disse a Lieven, “os Estados Unidos já decidiram o que vão fazer, e qualquer recomendação da minha parte já é tardia”. 

Depois de vinte anos de destruição descomunal causada por essa guerra e de inflamar a hostilidade entre “todos os grupos afegãos”, os Estados Unidos retomam a prescrição política de Abdul Haq: diálogo político. 

Em 26 de outubro de 2001, Abdul Haq retornou ao Afeganistão e foi assassinado pelo Talibã. Seus conselhos se tornaram obsoletos. Em setembro de 2001, os vários protagonistas da situação no país, inclusive o Talibã, estavam dispostos a conversar, em parte porque temiam que os iminentes aviões de guerra norte-americanos abrissem as portas para que o Afeganistão vivesse um inferno. Vinte anos depois, o fosso entre o Talibã e os outros grupos é ainda mais profundo. O espaço para negociações simplesmente não existe mais.

Guerra civil 

Em 14 de abril de 2021, o presidente do parlamento do Afeganistão, Mir Rahman Rahmani, avisou que o país está a um passo de uma guerra civil. Nos círculos políticos de Cabul, são abundantes as conversas sobre essa possibilidade uma vez que os Estados Unidos tenham se retirado, o que deve ocorrer até 11 de setembro. Por isso, em uma coletiva de imprensa na Embaixada dos Estados Unidos em Cabul em 15 de abril, Sharif Amiry, da TOLOnews, questionou o Secretário de Estado Antony Blinken a esse respeito. Blinken respondeu o seguinte: “Não acho que seja do interesse de ninguém, para dizer o mínimo, que o Afeganistão entre em uma guerra civil, em uma guerra longa. Até onde sabemos, nem o Talibã tem interesse nisso”.

Na verdade, o Afeganistão está em guerra civil há meio século, pelo menos desde a criação do Mujahidin, que incluía Abdul Haq, para lutar contra o Partido Democrático do Povo do Afeganistão (1978-1992). Essa guerra se intensificou com o apoio dado pelos Estados Unidos aos elementos mais conservadores e de extrema direita no país, grupos que se tornaram parte da Al Qaeda, do Talibã e de outras facções islâmicas. Em nenhum momento durante esse período os Estados Unidos ofereceram um caminho para a paz; ao contrário, sempre demonstraram-se ávidos para usar seu gigantesco poderio militar para controlar os acontecimentos em Cabul. 

Retirada? 

Mesmo essa retirada, anunciada no fim de abril de 2021 e iniciada em 1o de maio, não é simples e inequívoca, como pode parecer. Em 14 de abril, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou que “é hora de as tropas americanas voltarem para casa” e o Departamento de Defesa do país explicou que as 2500 tropas estadunidenses deixariam o Afeganistão até 11 de setembro. Entretanto, um artigo do New York Times datado de 14 de março, um mês antes, já observava que, “embora afirme-se publicamente que há 2500 tropas no país, 3500 tropas dos Estados Unidos estão presentes no Afeganistão”. A subnotificação por parte do Pentágono é obscura. Além disso, um relatório do Gabinete do Secretário-Adjunto de Defesa para Sustentação, notou que há cerca de 16000 empreiteiras estadunidenses no Afeganistão. Elas realizam uma série de serviços, que provavelmente incluem suporte militar. Nenhum desses empreiteiros tem planos de se retirar do país. O mesmo vale para as 1000 tropas ocultas, para os bombardeios aéreos, inclusive ataques com drones, e para as missões de forças especiais. 

Em abril, Blinken afirmou que os Estados Unidos concederiam aproximadamente 300 milhões de dólares para o governo afegão de Ashraf Ghani. Ghani, que, da mesma forma que seu precursor Hamid Karzai, mais parece o prefeito de Cabul do que o presidente do Afeganistão, está sendo encurralado por seus rivais. Em Cabul, fervilham conversas sobre possíveis governos após a retirada, incluindo uma proposta do líder do partido Hezb-e-Islami, Gulbuddin Hekmatyar, de formar um governo liderado por ele e sem o Talibã. Enquanto isso, os Estados Unidos aceitaram a ideia de que o Talibã deve ter um papel no governo; agora, diz-se abertamente que o governo Biden acredita que o Talibã “governaria de forma mais amena” do que entre 1996 e 2001. 

Ao que tudo indica, os Estados Unidos estão dispostos a permitir que o Talibã retorne ao poder com duas advertências: primeiro, que a presença estadunidense seja mantida e, segundo, que os principais rivais dos Estados Unidos – a Rússia e a China – não tenham nenhum papel em Cabul. Em 2011, a Secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, discursou em Chennai, na Índia, propondo a criação de uma Nova Rota da Seda que ligaria a Ásia Central e o Afeganistão através dos portos indianos. O propósito da iniciativa era cortar as ligações da Rússia com Ásia Central e impedir o estabelecimento da Iniciativa do Cinturão e Rota Chinesa (Belt and Road Initiative), que atualmente chega até a Turquia.

A estabilidade está fora das previsões para o Afeganistão. Em janeiro, o ex ministro do exterior do Uzbequistão e atual Secretário-Geral da Organização para Cooperação de Xangai (SCO), Vladimir Norov, participou de um webinar organizado pelo Instituto de Pesquisa de Políticas de Islamabade (Islamad Policy Research Institute, IPRI). Norov disse que o ISIS e o Daesh têm se movido da Síria para o norte do Afeganistão, o que é preocupante não apenas para o próprio Afeganistão, mas também para a Ásia Central e para a China. Em 2020, o Washington Post revelou que o Exército norte-americano vinha fornecendo apoio aéreo ao Talibã conforme ele obtinha ganhos contra o ISIS. Mesmo que um acordo de paz seja firmado com o Talibã, o ISIS vai desestabilizá-lo. 

Possibilidades esquecidas 

As palavras de preocupação com as mulheres afegãs, que legitimaram a invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos em outubro de 2001, foram esquecidas. Rasil Basu, oficial da Organização das Nações Unidas, trabalhou no governo do Afeganistão como conselheira sênior para o desenvolvimento das mulheres entre 1986 e 1988. A Constituição Afegã de 1987 garantia direitos iguais às mulheres, permitindo que elas lutassem contra normas patriarcais e pela igualdade no mundo do trabalho e na esfera doméstica. Segundo Basu, como muitos homens haviam morrido na guerra, as mulheres passaram a participar de diversas ocupações. Houve ganhos significativos de direitos, inclusive um crescimento nas taxas de alfabetização. Todos esses avanços foram praticamente aniquilados ao longo das duas décadas de guerra com os Estados Unidos. 

Mesmo antes da União Soviética sair do Afeganistão, em 1988-1989, homens que agora brigam pelo poder – como Gulbuddin Hekmatyar – afirmavam que desmantelariam esses avanços. Basu se lembra das shabanamas, avisos que circulavam entre as mulheres e as orientavam a obedecer às normas patriarcais. Ela chegou a enviar um artigo de opinião sobre essa catástrofe potencial ao New York Times, ao Washington Post e à Ms. Magazine, que o rejeitaram. 

O último chefe de governo comunista, Mohammed Najibullah (1987-1992), redigiu uma Política Nacional de Reconciliação, na qual os direitos das mulheres tinham prioridade máxima. Essa política foi rejeitada por islamistas apoiados pelos Estados Unidos, muitos dos quais estão em posições de poder até hoje. 

Nenhuma lição foi aprendida com essa história. Os Estados Unidos “se retirarão”, mas deixarão para trás seus ativos para confrontar a China e a Rússia. Essas considerações geopolíticas ofuscam qualquer preocupação com o povo afegão.  

 

Noam Chomsky é um linguista lendário, filósofo e ativista político. Ele é também um professor laureado de linguística na Universidade do Arizona. Seu último livro, Crise climática e o Green New Deal global: a Economia Política para Salvar o Planeta, foi escrito em parceria com Robert Pollin e C. J. Polychroniou. 

Vijay Prashad é um historiador, editor e jornalista indiano. Ele escreve para o Globetrotter, onde é correspondente-chefe, e é editor-chefe na LeftWord Books e diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. É especialista não-residente no Instituto Chongyang de Estudos Financeiros, na Universidade Renmin da China. Escreveu mais de 20 livros, incluindo The Darker Nations: A people’s history of the third world e The Poorer Nations: A possible history of the Global South. Seu livro mais recente é Balas de Washington: uma história da CIA, golpes e assassinatos, traduzido para o português e com uma introdução escrita por Evo Morales Ayma. 

*Esse artigo foi produzido pelo Globetrotter e publicado no People's Dispatch.

Edição: Peoples Dispatch