Pernambuco

LGBTfobia

Violência contra pessoas LGBTQIA+ dispara em Pernambuco

Ao todo, foram 1.854 vítimas de crimes como ameaça, agressão, estupro e homicídio, 860 a mais do que em 2019

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Ao todo, foram 1.854 vítimas de crimes como ameaça, agressão, estupro e homicídio, em 2020, 850 a mais do que no ano anterior - Filipe Costa

No dia 21 de janeiro de 2020, Pernambuco amanheceu com a notícia de que Henrique Antônio Alves de Deus, homem gay de 24 anos, foi encontrado morto, decapitado e com o pênis mutilado. O episódio, marcado por requintes de crueldade, em Moreno, região metropolitana do Recife, foi na verdade um prenúncio do ano mais violento no estado para a população LGBTQIA+. Ao todo, foram 1.854 vítimas de crimes como ameaça, agressão, estupro e homicídio, 860 a mais do que em 2019.

Se a história de Henrique rapidamente ganhou visibilidade, o mesmo não aconteceu com praticamente todos os demais casos de violência contra pessoas não-heterossexuais, sobretudo, porque a maioria aconteceu dentro do ambiente familiar. Pelo menos 46% das vítimas LGBTQIA+, ou seja 869 pessoas, foram violadas dentro de casa por parentes ou pessoas muito próximas. Em 2019, haviam sido 333 cidadãos e cidadãs.

Os dados da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco (SDS), que a Marco Zero Conteúdo teve acesso, revelam ainda que mais do que dobraram as ocorrências de estupros no ano passado em relação ao ano anterior, saindo de 23 para 48 registros. Um salto nos números também foi observado nos Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs), que incluem homicídio doloso, lesão corporal seguida de morte e roubo com resultado morte, passando de 30 em 2019 para 45 vidas perdidas em 2020.

Embora a SDS, há 15 anos, seja obrigada por lei a contabilizar os dados de violência contra membros da comunidade LGBTQIA+ e disponibilizá-los a toda população, a pasta só passou a fazer o balanço anualmente a partir de 2018, após pressão dos movimentos sociais. Na curta série histórica de levantamento dessas informações, 2020 desponta como o ano mais violento, revelando uma tendência de crescimento de casos.

Esse aumento elevado da violência contra o grupo LGBTQIA+ segue em 2021. Só nos primeiros três meses, foram registrados 604 crimes contra essa comunidade. Esse, portanto, é o pior trimestre considerado o mesmo período desde 2018. Informação que preocupa ainda mais os movimentos sociais neste mês em que se comemora o Dia Internacional contra a Homofobia.

Procurada pela reportagem, a SDS não quis comentar os dados nem explicar qual a análise da pasta para o aumento de casos de violência contra pessoas LGBTQIA+, muito menos informar se alguma medida será tomada para reverter o cenário em 2021.

“Por várias pesquisas e pela nossa própria experiência imaginávamos que os casos de violência dentro de casa iriam aumentar durante a pandemia de coronavírus, porque o isolamento forçou a vítima a ficar presa com o agressor, mas mesmo assim foi um número muito alto e nos surpreendeu”, afirma o presidente do Conselho Estadual de Direitos da População LGBT de Pernambuco, Glauber Stringlini.

A presidente do Comitê institucional pró-lésbicas e mulheres bissexuais, vinculado à Secretaria Estadual da Mulher, Íris Silva, avalia que os números reforçam o aumento da vulnerabilidade que se acentuou em meio à crise sanitária. “As mulheres lésbicas e bissexuais historicamente enfrentam a dificuldade de se pronunciar e expor as violências que sofrem, principalmente, dentro de casa. Faltou campanha para sensibilizar essas famílias e empoderar essas mulheres para quebrarem o silêncio”

A coordenadora estadual da política LGBT, Poliny Aguiar, também disse ter sido surpreendida pelos números, mas afirmou que eles alertam para a necessidade das prefeituras – não o governo do estado – assumirem a responsabilidade pelo atendimento à população LGBTQIA+. A reportagem tentou aprofundar o tema, mas a coordenadora não atendeu mais as ligações.

SDS omite dados e descumpre lei
Há pelo menos cinco anos, os movimentos de luta pela defesa dos direitos das pessoas LGBTQIA+ reivindicam ao Governo de Pernambuco a atualização do programa de registro dos boletins de ocorrência. As entidades pedem a inclusão dos campos “nome social”, “orientação sexual” e “identidade de gênero” no sistema em todas as delegacias do estado, mas até hoje a demanda não foi atendida. A nova promessa é de que o formulário esteja atualizado em 100% das unidades policiais até o mês que vem.

O presidente do Movimento Leões do Norte, Rildo Véras, afirma que ainda mais preocupante é a mudança anual da SDS na metodologia de computação e disponibilização dos dados de violência contra a comunidade LGBTQIA+.

No relatório deste ano, que tem apenas quatro páginas, sendo uma a capa e outra a contracapa, a pasta só informa os meses e o quantitativo de ocorrências, não se sabe nenhum detalhe sobre a vítima ou município onde ocorreu o crime, por exemplo. Também não há dados sobre etnia e faixa etária, como acontece com outros levantamentos da SDS. A omissão dos dados por parte da secretaria infringe a lei estadual 12.876 de 2005.

Queda de investimento na rede de apoio
A Gestão Paulo Câmara algumas vezes já se vangloriou por Pernambuco, supostamente, ser o estado com mais ações e equipamentos voltados à população LGBTQIA+, entre eles o Centro Estadual de Combate à Homofobia e a Coordenadoria de Saúde Integral LGBT. No entanto, em 2020, quando os episódios de violência contra essa comunidade explodiram, os recursos para essa rede de apoio e prevenção despencaram.

De acordo com o Portal da Transparência, o orçamento para operacionalização e expansão da rede de apoio e atenção à população LGBT caiu de R$ 176.500, em 2019, para R$ 5.000 no ano passado. Além disso, a Secretaria Executiva de Segmentos Sociais, que em 2019 teve um orçamento de R$ 21.312 não recebeu nenhum centavo em 2020.

A secretaria executiva, criada em 2015 e vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude de Pernambuco, é responsável por “promover, coordenar, acompanhar e fortalecer as políticas públicas afirmativas”, visando “a prevenção e o enfrentamento de todas as formas de preconceito, discriminação e violação dos direitos”.

“Nosso maior problema é a falta de investimentos, nós não temos, por exemplo, um carro para irmos até uma cidade do interior para fiscalizar algum caso de violação de direitos. Não temos nem recursos para diárias ou para fazer um lanche. A conta não fecha e acredito que a falta do orçamento reflete diretamente nesses números de violência”, avalia Stringlini.

Para tentar suprir a falta de investimento do Poder Executivo, Stringlini que também é secretário-executivo do Fórum LGBT de Pernambuco, diz que a estratégia será, a partir de julho, buscar recursos de emendas parlamentares.

A Marco Zero procurou a Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude para saber o porquê da redução drástica do orçamento voltado para as políticas públicas à comunidade LGBTQIA+. Também foi perguntado quais as estratégias para este ano, mas até a publicação desta reportagem a pasta não respondeu aos questionamentos.