Feminismo

Sirma Bilge e o desafio de encontrar a nós mesmos nas opressões que nos dividem

Teórica da interseccionalidade fala sobre o conceito na prática e as semelhanças na luta pela igualdade em todo o mundo

Interseccionalidade: conceito está nas universidades, mas é fruto da militância nas ruas - Nelson Almeida/ AFP
É importante compartilharmos nossas experiências que são diferentes, mas interconectadas.

Quando ligou a câmera para a entrevista que faria com o Brasil de Fato sobre o lançamento do livro Interseccionalidade em edição especial, a socióloga Sirma Bilge pediu desculpa pelo estado de ânimo, fruto da uma perda recente. A única consideração possível, diante do pedido, era a solidariedade. Em um mundo mergulhado na maior crise sanitária do século, a melancolia é um sentimento coletivo.

A sensação compartilhada globalmente não deixa de ser uma espécie de comprovação das conclusões que Sirma tira de seus estudos sobre a interseccionalidade: “É complicado e é muito doloroso, mas é importante compartilharmos nossas experiências, que são diferentes, mas interconectadas. Nós somos íntimos. Em nossa distância, somos íntimos”.

Sirma defende que o termo é, fundamentalmente, destinado a sair das barreiras da academia e ser usado na prática, para a criação de ações, políticas e meios de combate à desigualdade.

No livro, escrito a quatro mãos com a socióloga estadunidense Patricia Hill Collins, as relações de poder não são vistas como “entidades distintas e mutuamente excludentes”, mas como categorias que se sobrepõem. “Apesar de geralmente invisíveis, essas relações interseccionais de poder afetam todos os aspectos do convívio social”, afirma.

Na conversa com o BdF, Sirma falou sobre a admiração pelas escritoras brasileiras Sueli Carneiro e Lélia Gonzalez. "É uma honra imensa estar aqui com vocês e falar do nosso trabalho coletivo, meu e da Patricia Hill Collins, para uma audiência brasileira", completa.

Em uma transmissão posterior sobre o tema, promovida pela editora Boitempo, a colega Hill Collins afirmou que fica "animada quando tenho a oportunidade de falar com as pessoas do Brasil. Vocês não imaginam quão importantes vocês são para o mundo".

Confira a entrevista com Sirma na íntegra:

Brasil de Fato: Vamos começar com o básico: como podemos explicar a interseccionalidade?

Quando eu ensino meus alunos na universidade sobre interseccionalidade, sempre começo dizendo que ela não é uma teoria da identidade nem uma teoria sobre identidades múltiplas. A interseccionalidade é analítica, um enquadramento para compreender como o poder opera na sociedade. Então, é uma ferramenta para analisar o poder. Essa questão nem sempre é entendida dessa forma na literatura, entre cientistas sociais e entre militantes, mas o que eu e Patricia desenvolvemos é uma espécie de modelo duplo, que concebe o poder em duas chaves.

Uma delas é o que chamamos de categorias de poder – a habitual lista de raça, classe, gênero, indigenismo, sexualidade, deficiência etc. Termina com um “etc.” e talvez daqui a pouco eu fale dele. O segundo conjunto de análise se concentra na forma como a sociedade é segmentada e estruturada, que chamamos de modelo dos domínios do poder. No domínio estrutural estão, por exemplo, o mercado, a constituição, as leis etc. O domínio cultural inclui as representações, a ideologia e o simbólico. [Há ainda] o institucional, o disciplinar e o interpessoal.

Talvez seja um pouco específico demais, mas isso é muito importante para vermos que a interseccionalidade como nós a entendemos oferece uma visão alargada do poder, permite pensá-lo não apenas por meio das categorias de raça, gênero, classe etc., mas também por meio dessas esferas, os domínios de poder estrutural, ideológico, institucional e interpessoal, e mesmo por dimensões corpóreas e psicológicas. É assim que eu explicaria a interseccionalidade de início.

Também é muito importante para nós não apenas para entendermos como o poder opera em uma sociedade, mas também para podermos intervir, mudar o modo como as coisas são. Então, há também essa segunda dimensão: não é só um instrumento de análise, também uma práxis. 

Há várias outras pessoas fazendo e pensando a interseccionalidade de outras formas, e não estamos dizendo que só há uma maneira de fazer isso. Não somos a polícia da interseccionalidade. Nossa compreensão se dá a partir desse modelo duplo, que traz uma riqueza analítica, mas, ao mesmo tempo, não se limita a compreender, mas procura intervir e provocar mudanças emancipatórias tendo em vista a justiça social.

Há uma percepção de que essa palavra “interseccionalidade” começou a ser usada entre minorias no espaço acadêmico. Ao mesmo tempo, é um termo que tem muito diálogo com a realidade e com as opressões cotidianas, que vivenciamos no nosso dia-a-dia. É possível levar esse debate para fora do espaço acadêmico?

A palavra "interseccionalidade" foi cunhada por Kimberle Crenshaw em 1989, em um artigo produzido na academia. Nele, ela mostra que essa ideia foi desenvolvida no contexto de um grupo de teoria racial crítica: estudantes negros e jovens professores e pesquisadores negros pensando sobre como transformar o direito para que ele levasse em conta discriminações múltiplas e entrecruzadas.

Então, veio da academia, mas de uma academia ativista. Mesmo lá esse pensamento não ocupava o centro, mas as margens, que não eram bem vindas naquele espaço e que eram criticadas por não fazer ciência, mas ideologia, por produzir trabalhos muito militantes. 

Mas, se você prestar atenção, há contextos em que a palavra não foi empregada, mas a realidade, o pensamento, estavam lá. É o caso do manifesto do Coletivo Combahee River, de 1977, que fala de relações de poder interligadas. Ele não usa a palavra “interseccionalidade”, mas outra muito semelhante. Esse coletivo é uma organização lésbica, marxista e feminista negra, claramente sem origens acadêmicas.

Eu quero ensinar e ensino a interseccionalidade de uma forma que impulsiona os alunos a pensar para além dos muros da universidade e a investigar a relevância em suas próprias vidas. Todo o tempo em que interajo com eles, quando preciso dar notas, designar trabalhos etc., tento fazer isso sem ficar presa exclusivamente à academia.

Acho que precisamos ser coerentes. Se queremos que a interseccionalidade mantenha sua orientação para a práxis, para a transformação social, não podemos empregá-la apenas como uma ferramenta analítica e buscar apenas elevar a teoria. Há essa tendência, mas acho que a forma mais relevante de continuarmos desenvolvendo a interseccionalidade é por meio das operações conjuntas da teoria e das lutas sociais.

Nisso também me inspiro muito em Stuart Hall, um pensador jamaicano dos estudos culturais que fez sua carreira na Inglaterra e que sempre falou sobre a teoria partir dos movimentos sociais, quer dizer, do momento da teoria. Esse momento em que a teoria é produzida não se dá com acadêmicos debatendo enquanto tomam um chá na torre de marfim. O momento da teoria acontece, especialmente para teorias voltadas à emancipação, porque os movimentos sociais, as pessoas nas ruas, fizeram com que acontecesse.

É muito importante entender que a interseccionalidade não surgiu de debates acadêmicos, mas por causa das pessoas nas ruas. Esse é o meu entendimento dessa história.

O contexto do Brasil é radicalmente diferente da realidade da opressão de lugares como o Canadá e os Estados Unidos, mas parece que há algo em comum que explica por que estamos tão interessados em debater isso aqui atualmente, que é a inclusão de minorias no ensino superior e na produção acadêmica, no ambiente das universidades. Na sua percepção, esse momento no Brasil e em outros países que estão vivendo uma conjuntura semelhante pode ser relacionado a essa edição do livro em português e ao grande interesse recente no tema? Você acredita que a inclusão das minorias tem um papel relevante nesse debate?

Essa é uma questão muito importante e que traz à tona algumas realidades um pouco desagradáveis. Essa inclusão pode ser muito cosmética, muito superficial em alguns casos e acabar beneficiando principalmente os grupos dominantes. A interseccionalidade se tornou um tema muito difundido, muito na moda, e isso gerou algumas apropriações que não promovem os interesses dos grupos realmente marginalizados.

Com frequência, usar palavras como “interseccionalidade” – no Canadá também temos usado muito as palavras “decolonial” e “decolonialidade” – pode ampliar as chances de conseguir financiamentos, de obter dinheiro e reconhecimento. Com isso, temos o risco de criar departamentos de estudos indígenas e não contratar professores indígenas, dizer que vamos incluí-los, mas apenas como tópicos de estudo, não as pessoas reais.

Dizemos que vamos criar um departamento de estudos negros, claro, mas sem contratações. Ou contratamos professores negros, mas não de forma permanente, só como temporários, e depois contratamos especialistas brancos daquela área. Por isso, temos que ser muito críticos sobre quem usa nossas ferramentas e para fazer o quê.

Outra notícia ruim é que, nos movimentos sociais, a inclusão da interseccionalidade também não leva a mais emancipação. Movimentos feministas podem incluir a interseccionalidade de formas que contribuam para a marginalização dos grupos minoritários. A interseccionalidade pode se tornar um tipo de álibi para dizermos que estamos fazendo algo bom, que somos inclusivos, enquanto, na verdade, continuamos fazendo o que já fazíamos antes, mas com uma fachada interseccional.

O mesmo acontece com a ideia de diversidade, como diz a [professora de raça e estudos culturais britânico-australiana] Sara Ahmed: colocar as caras felizes da diversidade no website, mas não modificar a estrutura de poder nas instituições. Esse risco existe e devemos estar atentos a quem usa a interseccionalidade para fazer o quê.

Perceber que o mundo acadêmica lida com esses problemas em todos os lugares, até mesmo naqueles em que esperaríamos um debate mais avançado, não deixa de ser decepcionante.

É triste, mas também estamos gerando diálogos. Eu não colocaria nesses termos de que estamos mais adiantados no debate, porque não falamos português, pelo menos eu não falo português, então não posso ler a [Sueli] Carneiro, a [Lélia] Gonzalez e outras na língua em que escreveram. Sabemos que isso é por conta de um tipo de hegemonia linguística e de uma estrutura imperial de conhecimento.

Recentemente morreu Nawal al-Sa'dawi, grande feminista materialista histórica e socialista egípcia. Se olharmos sua obra e o feminismo egípcio, tenho certeza que encontraremos muitos elementos da interseccionalidade, porque elas se posicionavam contra o patriarcado, mas também contra o capitalismo e o colonialismo. Essas lutas existem há muito tempo e por todos os lugares do mundo.

Assim como a supremacia branca, o capitalismo e o heteropatriarcado são problemas globais de opressão, a colonialidade do poder também é. Acredito que precisamos falar várias línguas e trocar, para percebermos que esse mesmo debate foi articulado de várias formas em contextos e períodos históricos diferentes.

Temos tanto a aprender com outros contextos, e eu quero muito aprender o português do Brasil. Quanto mais eu falo sobre esses temas, mais percebo que preciso aprender português e ler as feministas afro-brasileiras em sua própria língua. Seria maravilhoso poder fazer isso e começar conversas em vários idiomas.

Você percebe como esse conceito está nas nossas mentes? Quer dizer, estou conversando com você, leio sobre feminismo e me considero uma pessoa minimamente informada sobre isso e sobre colonialismo e, ainda assim, na minha cabeça, não deixo de esperar que vocês estejam à frente nesse debate ou em outros aspectos. É algo muito profundo em nossas mentes.

Arraigado. Isso é a hegemonia, né? É todo o poder voltado a nos convencer a internalizá-lo. Eu sou da Turquia, então entendo muito bem esse apelo do Ocidente. Somos socializados desde a infância dessa forma. Mesmo que nossas famílias não sejam assim, na escola, somos escolarizados com essa ideia de que [o Ocidente] é o modelo e que eles estão na nossa frente e temos que alcançá-los.

É sempre como se estivéssemos correndo atrás de um trem. E é um processo tão longo descolonizar nossas mentes. Acho que esse é o nível mais difícil da descolonização, o que diz respeito ao ambiente que nos formou e nos deu algum tipo de identidade. Para mim, uma grande revelação nesse sentido foi o livro de Edward Said, Orientalismo. Minha reação a ele foi “meu deus! Tem uma palavra para isso!”. É como se fosse um orientalismo internalizado, [em que pensamos] “o Ocidente é isso” e “nós somos aquilo”.

É complicado e é muito doloroso, mas é importante compartilharmos nossas experiências, que são diferentes, mas interconectadas. Nós somos íntimos. Em nossa distância, somos íntimos. A Turquia é muito longe do Brasil, mas eu sinto uma conexão tão íntima, especialmente em termos políticos – [temos] governos populistas de extrema direta, as lutas populares – sinto uma conexão, uma intimidade com o Brasil. Precisamos criar essas intimidades.

Por fim, nesse contexto de uma pandemia em que desigualdades são reafirmadas e vemos o aprofundamento do conservadorismo em várias partes do mundo, em que temos uma realidade tão frágil, de que forma o debate sobre a interseccionalidade pode contribuir?

Acho que esse mundo pós-covid é uma questão central. Mas, quando digo pós-covid, não estou pensando em “pós” como após, mas como além. É como o “pós” em “pós-colonial”, é algo que vai continuar existindo. A covid continuará presente mesmo depois do fim da pandemia. Mais controle, tecnologias [de controle]. A universidade já foi transformada de forma irreversível, nunca voltaremos completamente ao modelo de aulas presenciais.

É a esse tipo de mundo pós-covid que me refiro. Com as vidas póstumas da covid, acho que a interseccionalidade não poderá ser evitada, porque, quando olhamos para a covid, vemos quem morreu. Quando olhamos para a vacina, a África do Sul e a Índia tentaram pressionar os países ricos a remover as patentes para salvar vidas no sul global, nos países que não são ricos.

E eles perderam. Então, a covid tem efeitos sobre as desigualdades que já existiam, mas também cria novas formas de desigualdade: por exemplo, entre quem é vacinado e quem não é. Por isso eu falava sobre o “etc.” depois de raça, gênero... Esse “etc.” é importante porque já temos, nesse momento, uma nova categoria de dominação, privilégios e desvantagens.

A interseccionalidade é inevitável, mas, ao mesmo tempo, na minha perspectiva, ela pode ser insuficiente para enfrentar a questão do fascismo e do autoritarismo que também se consolidaram na Turquia, por exemplo, com as medidas relativas à pandemia. Esses líderes políticos usaram a pandemia para sufocar as divergências, banir os protestos e consolidar seu próprio poder.

A interseccionalidade precisa colaborar com uma conversa entre todas as pesquisas e ativismos contra o populismo de extrema direita e o fascismo, com a expertise, e precisamos entender melhor como a interseccionalidade é usada por esses grupos e partidos de extrema direita.

Porque tenho certeza que, mesmo que ele não use essa palavra ou que odeie essa palavra, o Bolsonaro é interseccional, porque líderes como ele estão lutando para preservar privilégios interseccionados, formas de dominação interseccionadas. O Trump era bastante interseccional em seu nacionalismo branco. Eles odeiam a palavra, mas dependem desse tipo de agregação e intersecção de poder e privilégio.

A interseccionalidade também não é necessariamente parte de uma política progressista e emancipatória. Ela pode ser usada por grupos reacionários, conservadores, e é usada por eles. Precisamos de pesquisas sobre isso também, e não só pesquisas, mas que os coletivos que trabalham com essa questão compreendam que não estamos seguros porque usamos essa palavra, que ela não é progressista por mágica.

::Com colaboração da filósofa Ana Claudia Lopes, pesquisadora no programa de pós-doutorado do Departamento de Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) e doutora em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)::

Edição: Cris Rodrigues