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Escalada de guerra na Europa pode levar a novo conflito mundial

As novas repúblicas de Lugansk e Donestk são apontadas como um possível estopim de uma nova guerra mundial

Brasil de Fato | Porto Alegre |
A guerra em Donbass dura sete anos e já custa mais de 14 mil vidas - AFP 2021/Anatolii Stepanov

Com boa parte de sua população de origem russa, Donetsk e Lugansk declararam independência da Ucrânia há sete anos. O governo ucraniano, porém, não aceitou a separação. Com bombardeios, a Ucrânia aumentou a pressão na região que não possui forças armadas regulares e apenas milícias. Do lado da Ucrânia estão os Estados Unidos. De outro, a Rússia.

Na imprensa ocidental, o enfoque dominante costuma ser anti-Rússia. O advogado e militante político gaúcho Humberto Carvalho tem outra visão. Ele visitou Lugansk três vezes (*) como observador internacional do processo de confirmação da independência e da eleição do presidente da nova república. Desde então, mantém contato frequente com a região conflagrada. Nesta entrevista, ele dá sua versão sobre o conflito travado no coração da Europa e que ameaça o mundo.

Brasil de Fato RS - As novas repúblicas de Lugansk e Donestk são apontadas como um possível estopim de uma nova guerra mundial. Por quê?

Humberto Carvalho - A guerra em Donbass (subbacia do rio Don), que dura sete anos e já custa mais de 14 mil vidas, ocorre num quadro complexo, envolvendo aspectos históricos, culturais, políticos, econômicos e geoestratégicos. Basta lembrar que a Rússia nasce, lá pelo século IX, como país, em Kiev, hoje capital da Ucrânia. Mas, esses laços, ao longo do tempo, ora unem e ora desatam. O próprio golpe de 2014 que derrubou o presidente Viktor Yanukovich representa um momento de rompimento desses laços. Yanukovich preferia estabelecer ligações da Ucrânia com a União Aduaneira Eurasiática e a Rússia, ao invés de fazê-lo com a União Europeia porque temia um efeito negativo na economia do seu país devido às políticas de austeridade da União Europeia que causaram a paralisação econômica da Grécia.

O movimento que derrubou Yanukovich foi denominado de “Euromaidan” para expressar a vontade de uma ligação com a Europa, em detrimento da Rússia. Mas, assumia, também, uma espécie de “russofobia” que queria banir não só o idioma russo da Ucrânia, como todos os aspectos culturais, econômicos, etc., da recíproca influência russo-ucraniana e, ainda, reprimir os cidadãos de etnia russa ou favoráveis a uma maior ligação com a Federação Russa. O incêndio da Casa dos Sindicatos, ocorrido em Odessa, em 2 de maio de 2014, e o massacre em 9 de maio daquele ano em Mariupol (1) representam, num formato trágico, essa repressão.

Diante da ameaça à integridade de cidadãos de etnia russa, a Federação Russa não poderia se calar porque essa situação constituía uma ameaça à Rússia. Por outro lado, a declaração de independência de Donestk e Lugansk levou a Ucrânia a tentar reconquistar militarmente esses territórios. E a guerra em Donbass é uma guerra nas fronteiras da Rússia. Ora, se pensarmos num eventual choque entre as forças da OTAN e as da Federação Russa, estaremos pensando, realmente, numa guerra mundial.

As tentativas de estabelecer a paz como os acordos de Minsk, um em 2014 e o segundo em 2015, resultaram infrutíferas porque a Ucrânia rompeu, seguidamente, o cessar-fogo.

BdFRS - Como descreve, ideologicamente, o governo da Ucrânia hoje?

Humberto - Em 2019, Volodymyr Zelensky foi eleito presidente da Ucrânia. No seu histórico está o apoio ao Euromaidan. É um governo de direita que permite ações dos movimentos e paramilitares de extrema direita, como o Batalhão Azov e partidos como a União Pan-Ucraniana e o Pravyi Sektor. A campanha de Zelensky baseou-se na luta contra a corrupção. É uma característica retórica comum a todos os partidos de direita do mundo, inclusive no Brasil...

Não há diferenças significativas, em termos de política externa principalmente, do governo anterior, de (Peter) Poroshenko. Assim como Poroshenko decretou a retomada, pela força, dos territórios de Donbass, Zelensky, em março deste ano, expediu o Decreto 117/2021 que determina a retomada da Criméia e consiste numa verdadeira declaração de guerra à Rússia.

Por quê? Porque a população da Criméia, em 2014, em referendo, decidiu que a Criméia voltasse a se reintegrar à Rússia. O que permite o controle, pelos russos, do estreito de Kersch, que é a passagem marítima obrigatória do mar de Azov para o mar Negro e daí, passando pelo estreito de Bósforo, em Istambul, maior cidade da Turquia, entrar no mar de Mármara e através do estreito de Dardanelos seguir para o Mediterrâneo e o oceano Atlântico. Então, a península da Criméia é um ponto estratégico e tudo indica que a Rússia não permitirá qualquer alteração na sua soberania sobre a Criméia.


Parede traz retratos em homenagem às vítimas da guerra em Lugansk / Reprodução

BdFRS - As duas repúblicas declararam sua independência em 2014. Desde então, um e outro lado têm proclamado avanços nos combates. Qual o quadro atual?

Humberto - O quadro militar tem se modificado ao longo do tempo. No início da guerra, os combates se davam com milícias, as ucranianas e as das repúblicas populares. Com o governo Obama começou uma ajuda militar à Ucrânia, fornecendo equipamentos como rádios, óculos de visão noturna, etc. Poroshenko dizia, então, que com esse tipo de material não poderia ganhar a guerra e clamava por armamentos.

Já na gestão Trump, em 2019, foi aprovada a venda de 39 milhões de dólares de armas letais “defensivas” à Ucrânia. Aprovou-se, também, 400 milhões de dólares em assistência militar. Faziam parte do pacote armas anti-tanques Javalin, 150 mísseis e duas plataformas de lançamento de mísseis. A Ucrânia também comprou drones da Turquia. Em 3 de março deste ano, já no governo Biden, o Pentágono aprovou uma ajuda militar de 125 milhões de dólares. O que permitiu a escalada da guerra no mês passado. No dia 17 de abril, por exemplo, a Ucrânia bombardeou Donestk e arredores durante cinco horas.

Diante disso, a Rússia realizou manobras militares na fronteira com Donbass, demonstrando que, em pouco tempo, pode deslocar grande quantidade de tropas. Os EUA, por sua vez, iniciaram o envio ao mar Negro de dois navios com mísseis que poderiam atingir Donbass. Mas o eventual lançamento de mísseis implicaria atravessar o espaço aéreo da Criméia que é território russo. Para evitar um confronto com a Rússia, foi cancelado o envio. O que querem os EUA? Querem uma guerra com a Rússia, mas não envolvendo diretamente os EUA. E sim aquilo que os americanos chamam de “proxy war”, guerra por procuração, onde o “procurador” dos EUA, nessa guerra, é a Ucrânia.

BdFRS - A Rússia de Putin percebe hoje a Ucrânia como uma ameaça a seu território e vice-versa. Como está a situação hoje?

Humberto - Sim, a Rússia percebe como uma ameaça a seu território e a cidadãos de etnia russa porque a Ucrânia considera a retomada da Criméia como política oficial básica e, ainda, quer a retomada de Donbass. Embora a região não faça parte do território russo, existem lá cidadãos de etnia russa, com passaporte russo, e fazer a guerra em Donbass é fazer guerra na fronteira sudeste da Rússia, o que leva os russos a acreditarem na eventualidade de uma invasão.

BdFRS - O que você viu quando esteve em Lugansk e Donestk? Como se mantém informado sobre o panorama na região?

Humberto - Perto da linha de combate, vimos muita destruição. Mas senti, também, a disposição do povo de Lugansk, o seu estado de espírito. Para mim, as pessoas de Lugansk são, verdadeiramente, heróicas. Participamos como observadores internacionais dos preparativos para as eleições em Lugansk que ocorreram em 2018. E podemos assegurar a lisura e a festa de democracia popular que foram essas eleições.

Procuramos informações de agências de notícias, de sítios como Donbass Insider, o lug-info.com, de uma associação que trata de política internacional, onde se reúnem pessoas dos EUA, da Alemanha, da Itália, da Grécia, da Rússia, da Ucrânia e nós, do Brasil, todos militantes da paz. Trocamos informações, fazemos análises e debates. E buscamos informações de Lugansk com Janus Putkonen, diretor e editor-chefe da agência de notícias Doni, de Andrey Kochetov, que faz o trabalho de relações internacionais do seu sindicato que integra o governo de Lugansk, e outros.

BdFRS - O fato de Joe Biden ter vencido as eleições nos EUA de que maneira afeta a situação?

Humberto - A administração Biden continuará e incrementará o que Putin chama de política de “contenção da Rússia”. Visa não só desacelerar o desenvolvimento econômico russo, através de sanções, mas também evitar a melhoria das relações com a Europa. Ao mesmo tempo, incita a Ucrânia ao confronto.

A Rússia construiu, em 2015, o Nord Stream, um gasoduto que atravessa, submerso, o mar Báltico, chega à Alemanha e dali (o gás) pode ser distribuído. O fornecimento de gás é vital para os países europeus. A Rússia está concluindo o Nord Stream 2, faltando 6% para finalizar a obra. O temor de Washington é a melhoria das relações dos países europeus com a Rússia, o que implicaria a cooperação com o Kremlin em assuntos estratégicos, como também energéticos com o debate sobre o futuro uso do gás natural e fontes menos poluentes. Agrava, ainda, as relações comerciais já difíceis entre EUA e Rússia.

A empresa pública russa Gazprom fez um consórcio com cinco empresas europeias para a construção do Nord Stream 2. A obra deveria ter sido concluída em 2019. Mas os EUA impuseram sanções às empresas participantes. A pressão americana contra o Nord Stream 2 é enorme e fez com que o Parlamento Europeu pedisse a paralisação da obra. Mas a Alemanha não concordou.

BdFRS - O fato do filho do presidente, Hunter Biden, presidir a Burisma, maior empresa de petróleo e gás da Ucrânia, de que maneira pode impactar as relações entre EUA-Ucrânia e EUA-Rússia?

Humberto - Esse fato foi muito explorado por Trump na campanha eleitoral, visando demonstrar que a família Biden estava envolvida em negócios escusos na Ucrânia. A Burisma foi criada, em 2002, pelo empresário Mykola Zlochevski. Mais tarde, Mykola elegeu-se deputado pela Partido das Regiões, um partido pró Rússia e foi ministro do governo de Yanukovich, este considerado corrupto pelo regime de extrema-direita, bem como seus ministros. Por ocasião do golpe, tanto Yanukovich quanto Mykola se refugiaram na Rússia. A Burisma, para melhorar a sua imagem perante o novo governo ucraniano, convidou Hunter Biden para participar da administração da empresa, quando o pai de Hunter, Joe Biden, era vice-presidente dos EUA, demonstrando que Burisma havia mudado de lado e apoiava o Euromaidan.

Mas, o que impacta as relações EUA, Ucrânia e Rússia, com sobras para Donbass, é a disposição dos norte-americanos ingressarem no mercado do gás europeu. Os EUA se tornaram o primeiro produtor mundial de gás natural produzido pelo método chamado fracking. E querem exportar sua produção para a Europa.

Também a Ucrânia tem interesse nessa questão. A Rússia paga uma fortuna à Ucrânia para permitir a passagem do gás da Gazprom por seu território, através dos dutos da empresa ucraniana Naftogaz. Com o término da Nord Stream 2, essa passagem pela Ucrânia será desnecessária e a Ucrânia poderá perder os bilhões de dólares que recebe pelos direitos de passagem. Grande produtora de carvão, a Polônia também é contrária à Nord Stream 2, devido à substituição que ocorrerá do uso do carvão pelo gás russo.

Para os EUA, uma guerra entre Ucrânia e Rússia poria um fim ao Nord Stream. Então, o Nord Stream, mais do que um projeto energético, é um objetivo estratégico e nele reside a causa principal do conflito EUA contra a Rússia, via Ucrânia.

BdFSRS - Sabe-se que os bolsonaristas – ou parte deles – inspiram-se na Ucrânia. Extremistas como Sara Winter e o deputado Daniel Silveira (PSL/RJ), hoje sendo processado, já proclamaram a necessidade de “ucranizar” o Brasil. O que seria “ucranizar”?

Humberto – “Ucranizar” seria, penso, transformar o Brasil democrático num país, como a Ucrânia, dominado por forças de extrema direita, dependente dos EUA, com uma economia, no Brasil, reduzida à exportação de grãos e minérios, exatamente como ocorria quando nosso país era uma colônia de Portugal. E isso ocorreria para evitar o “comunismo” no Brasil, o que lembra o paradoxo apontado pelo cientista político argentino Andrés Malamud, professor na Universidade de Lisboa, que fala do “paradoxo brasileiro: eleger um fascista de verdade, pensando que é de mentira, por medo a um comunismo de mentira que acreditam ser de verdade”.  Se não fosse trágico, seria visto como piada.

BdFRS - Em manifestações bolsonaristas na  avenida Paulista, em São Paulo, apareceram bandeiras vermelhas e pretas do Pravyi  Sector. O que é exatamente o Pravyi Sector e o que prega?

Humberto - O Setor Direita é um movimento de extrema-direita e paramilitar da Ucrânia. Transformou-se em partido político em 2014. Tem inegável inspiração nazista, na medida em que coloca em suas bandeiras vermelhas e pretas a imagem de Stepan Bandera, um fanático da direita religiosa da Ucrânia, totalmente favorável aos nazistas durante a II Guerra Mundial. Nas eleições parlamentares de 2014, um dos seus dirigentes, Dmytro Yarosh, que se proclama seguidor de Bandera, elegeu-se deputado. Em 2015, Yarosh tornou-se conselheiro das forças armadas e o setor paramilitar do Pravyi Sektor passou a integrar o exército ucraniano.

(*) Carvalho esteve em Lugansk três vezes com mais dois brasileiros, Nubem Medeiros e Cláudio Ribeiro.

(1) Na cidade de Mariupol, sudeste da Ucrânia, a polícia teria atirado contra a multidão desarmada. Extraoficialmente, os mortos teriam sido sete e mais de 40 os feridos graves.


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Edição: Katia Marko