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Artigo | Chile: o berço do neoliberalismo pode enterrá-lo, por Gilberto Maringoni

Ainda é cedo para dizer se a América do Sul vive um novo ciclo progressista, mas sinais são animadores

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Iraci Hassler é a nova prefeita de Santiago, capital do Chile - Marcelo Hernandez / AFP

Cinquenta anos após a posse de Salvador Allende e trinta anos depois do final da ditadura, o Chile finalmente abre caminho para a derrubada da última muralha do pinochetismo, a Constituição de 1980.

As eleições para a Assembleia Constituinte, realizadas neste final de semana, representaram um claro rechaço popular à direita, com a vitória de candidatos de esquerda, centroesquerda, independentes e representantes de povos originários.

Juntos, alcançaram 75% das cadeiras, o que ultrapassa com folga os 2/3 necessários à aprovação de qualquer matéria.

A Carta chilena de 1980 – que revogou a de 1925 - não contou com participação popular. Ela foi gestada no interior da ditadura por grupos de trabalho compostos por juristas, chefes militares, cientistas políticos e técnicos de vários ministérios.

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A dinâmica foi estabelecida ainda no final de 1973, logo após o golpe de Estado e visava não apenas institucionalizar a exceção, como fincar raízes profundas da primeira experiência neoliberal do mundo.

A palavra e a lei

Em seu texto, o substantivo “democracia” faz uma única aparição, ao longo de 120 artigos. O adjetivo é grafado secamente no artigo 4º.: “Chile é uma república democrática”. Ponto final, não se discute. A palavra “participação” é repetida dez vezes, nenhuma associada a “povo” ou a “popular”.

Em outros termos, como assegura a página da biblioteca do Congresso Nacional do Chile, na Constituição se estabelece um modelo de “democracia protegida”.

Esta era garantida, por exemplo, pela figura dos senadores vitalícios, definidos pelo artigo 45. Poderiam exercer mandatos biônicos ex-presidentes da República, dois ex-ministros da Corte Suprema, um ex-procurador-geral da República, ex-comandantes das três Armas (Exército, Marinha e Aeronáutica), um ex-general-comandante dos Carabineiros (polícia militar), um ex-reitor de Universidade estatal ou privada e um ex-ministro de Estado.

O artigo 8º. era explícito sobre os limites da liberdade: “Qualquer ato de pessoa ou grupo destinado a propagar doutrinas que ameaçam a família, advogar violência ou uma concepção de sociedade, de Estado ou de ordem jurídica, de natureza totalitária ou fundada na luta classe, é ilegal e contrário à ordem institucional de a República”.

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A Carta pinochetista era composta por uma sucessão de arbitrariedades que configurava uma concepção ultraliberal de Estado “subsidiário”. Este não seria o responsável direto pelo provimento de serviços públicos, mas atuaria o contratante desses junto à iniciativa privada.

Reformas democratizantes

Duas reformas alteraram bastante os rumos da Lei maior. A primeira, ainda em 1989, acabou com as restrições associativas e impeditivas da livre organização política. A segunda, em 2005, suprimiu parte dos constrangimentos eleitorais, como os senadores nomeados e a modalidade de voto distrital que bloqueava eleitoralmente os partidos de esquerda.

Embora bastante mitigado, o poder das Forças Armadas continuou a ter proeminência sobre a institucionalidade e o artigo que tipifica o crime de terrorismo – que pode ser usado contra movimentos populares, a exemplo da lei brasileira sancionada em 2015 – não sofreu alterações.

Diferentemente de outros países da América do Sul, que elegeram governos de centroesquerda entre 1998 e 2015, o Chile vivenciou uma dança de cadeiras entre as agremiações da chamada Concertação, estabelecida no final da ditadura.

A aliança era composta por dois partidos tradicionais. Eram eles, a Democracia Cristã (1957), uma direita não-pinochetista, e o Partido Socialista (1933), ao qual pertenceu Salvador Allende, que se transformara de organização de esquerda em legenda de centro-liberal.

Por vinte anos, a partir de 1990, a Concertação governou o país, alternando entre a DC e o PS a cabeça da chapa.
As reformas constitucionais patrocinadas pela dupla suprimiram aspectos arbitrários da Constituição, mas não tocaram em seus preceitos liberais.

As ruas mudam as regras

O atual governo Sebastián Piñera sempre se opôs a qualquer mudança na Constituição. Comandando uma administração apoiada por personalidades e setores que se aliaram à ditadura, o máximo que se poderia admitir seriam emendas pontuais que não desfigurassem mais o texto.

No entanto, as surpreendentes manifestações de massa de 2020, apesar de duramente reprimidas, obrigaram o governo a realizar um plebiscito e a eleição da Constituinte. Piñera estabeleceu uma série de salvaguardas malandras para buscar desidratar o processo.

A mais importante era só aprovar temas que contassem com apoio de pelo menos 2/3 dos eleitos. Os operadores oficiais estavam certos de que, mesmo na pior das hipóteses para a direita, cláusulas pétreas da Carta de 1980 estariam garantidas.

Abertas as urnas, o pior dos piores cenários para a direita se confirmou, apesar de haver um comparecimento menor do que o esperado (41%), motivado em boa parte pela pandemia.

De um total de 155 cadeiras, a esquerda terá 28, a centroesquerda 25, e os independentes alcançarão 47. Os povos originários conquistaram 17 postos. No total, esses setores somarão 117 votos. A direita elegeu apenas 38 constituintes. Serão 83 mulheres e 72 homens (pense na Câmara dos Deputados do Brasil, na qual há 436 homens e 77 mulheres)!

Ainda que não se saiba exatamente o rumo a ser tomado pelos independentes – não formam um conjunto unitário – a possibilidade maior é seu alinhamento com a oposição a Piñera.

Pela primeira vez, os 16 governos regionais, até aqui indicados pelo Executivo nacional, são eleitos pelo voto popular. Na ampla maioria, as forças progressistas estão na frente para disputas em segundo turno. Santiago terá uma prefeita comunista e a direita perde em cidades importantes, como Viña del Mar, Valparaíso e Maipu.

O modelo pode acabar?

Em 1995, Perry Anderson escreveu um admirável artigo, intitulado Balanço do neoliberalismo Entre outras coisas, ele afirmava:

“[A ditadura chilena] exibe a honra de ter sido a verdadeira pioneira do ciclo neoliberal na história contemporânea. O Chile de Pinochet começou seus programas de maneira dura: desregulação, desemprego maciço, repressão sindical, redistribuição de renda em favor dos ricos e privatização de bens públicos. (...) O neoliberalismo chileno, bem entendido, pressupunha a abolição da democracia e a instalação de uma das mais cruéis ditaduras militares do pós-guerra”.

É bem possível que o berço mundial do neoliberalismo seja também pioneiro ao promover seu fim.
É difícil afirmar se a América do Sul, em seu conjunto, vive uma nova onda rosa, como nos primeiros anos do século. O principal país, o Brasil, com 2/3 do PIB e 50% da população regional, é governado vocês sabem por quem.

Há uma disputa em andamento no Peru. No Equador, uma divisão do progressismo abriu caminho para a continuidade do conservadorismo ultraliberal. A esquerda retomou posições na Argentina e na Bolívia e Nicolás Maduro sobrevive aos trancos e barrancos na Venezuela.

Na Colômbia, impressionantes protestos levam multidões às ruas, em oposição à políticas pró-mercado de Ivan Duque. Feitas as contas, é difícil negar o crescente rechaço à direita na região. Ainda há muito jogo pela frente.

 

* Gilberto Maringoni é jornalista, cartunista, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC e integrante do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB) da UFABC. 

 

 

Edição: Leandro Melito