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Artigo | MC Kevin foi traído… pela monogamia, mas vamos falar de música?

Debate sobre adultério, álcool e drogas ofuscou divulgação da potência artística do músico na cobertura de sua morte

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
MC Kevin deixou uma música impactante do ponto de vista de uma visão política atual e sobre a criminalização do funk - Reprodução

A morte de MC Kevin no último dia 16 foi um prato cheio para despertar discursos moralizantes. História cheia de ingredientes considerados nocivos aos valores morais mais tradicionais. Em ordem alfabética: amizades, adultério, álcool, drogas e prostituta. Acho que Kevin merece uma análise à sua altura. 

O moleque era zika, novão, cheio de energia, habilidade e potência pra fazer muita coisa. Mas, a vida é assim: não é fácil e a morte é, talvez, a única certeza da vida. Vai com Deus, paizão! Eu estou aqui hoje para falar de música, uma das razões que fez Kevin Nascimento ser o MC Kevin, mas fica difícil abordar este tema quando temos tantas outras questões. Então, vamos por partes...


Em primeiro lugar, vamos falar sobre o músico Kevin. Aliás, Kevin era músico?

Vamos voltar um pouco no tempo, vamos para a idade média, para falar da origem de um pré-conceito musical que ainda habita o mundo de hoje. 

Em uma conferência dada à Universidade de Salamanca em 2016, o musicólogo espanhol Juan Carlos Asensio fala das "graças e desgraças de um músico na idade média" e constata que ser músico nunca foi fácil e talvez nunca seja. Além de passar perrengue de grana, são desmerecidos socialmente. 

No período medieval da história europeia, havia uma treta entre os músicos "de verdade" e os músicos que não eram vistos como "músicos de verdade", os intérpretes, gente que cantava, tocava, como Kevin. 

Quem eram os músicos "de verdade"? Músicos mesmo eram Severino Boécio (viveu por volta dos anos 480-526), Aurelianus Reomensis (por volta do ano 800) e Guido d’Arezzo (990-1050), por exemplo. Esses caras, eram teóricos, tratadistas, escreviam sobre música. 

A invenção dos nomes das sete notas musicais (Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá e Si) é atribuída a Guido d'Arezzo. Ou seja, músicos "de verdade" eram os que conheciam e faziam teoria, liam e escreviam música. Os músicos que faziam música mas não faziam ou não conheciam a teoria eram menosprezados. 

Guido chegou a dizer, no tratado Regulae Rhytmicae, que cantor que "faz o que não sabe é definido como uma besta". A mesma opinião ainda circula hoje. Quando Kevin se desentendeu com MC Livinho, no começo deste ano, o mesmo aconteceu. 

Explico: Livinho desmereceu o trabalho de Kevin, pois deu a entender que Kevin não tinha a menor ideia do que cantava, não conhecia as notas e não sabia tocar nenhum instrumento. Já ele, Livinho, disse dele mesmo: "nóis é estudante, nóis sabe as notas". 

Tanto na idade média, quanto na treta de Kevin com Livinho, parece que a prática musical não importa quando o assunto é discutir legitimidade musical. Livinho se apresentou como músico e apresentou um Kevin que não sabe de nada. 

Ainda hoje temos esta ideia besta (parafraseando Guido) de que só é músico quem estudou música. Não! Inclusive, muitas vezes quem vai mais longe é quem "não sabe as notas que canta". 

Esta ideia medieval tem impactos fortes ainda hoje. Se você quer entrar para a Ordem dos Músicos do Brasil, você tem que fazer provas se não estudou música, mas se tem o diploma de faculdade de música, não é preciso fazer nada! Louco, né? 

Outro impacto desta ideia de que só tem valor músico estudado está nos próprios MC's e DJ's que muitas vezes não veem uma importância real e legítima na Arte que fazem. Muitos compram essa ideia de que fazem uma música sem valor. 

Quando vou em várias favelas conversar com produtores musicais, eles ficam até com vergonha, pois acham que eu sei e eles não, afinal, eu sou o doutorando em música pela Universidade de São Paulo (USP)… Não, gente, eu aprendo com vocês. O conhecimento acadêmico é de segunda mão. Vocês, DJ's e MC's que fazem e sabem o jeito de fazer. Eu nada sei!

Músico é quem faz música! E Kevin Nascimento fez e fez muito bem. Por isso, ele saiu da Vila Ede, "encantou as quebrada" e foi longe. Não foi a teoria de Kevin. 

Tivesse o MC escolhido (ou podido escolher) o caminho da teoria, estaria lascado: um desperdício da sua habilidade musical e estaria pobre. Ninguém liga pra teoria musical. Isso não melhora a vida material de quem tá na favela como o funk faz, em muitos casos. 

A habilidade musical e vocal de Kevin contrariando as ideias de Livinho, Kevin tinha uma consciência prática do que cantava. Moleque era diferenciado! 

Fiz algumas análises dos vídeos em que o MC cantava a capella, isto é, sem acompanhamento de um DJ, alí no ao vivo, longe de qualquer estúdio e seus autotunes (recurso computacional para corrigir a afinação). 

Vídeo de análise da voz de Kevin:

Analisando Kevin cantando a capella com sua voz médio-aguda, desconfiei que o MC tivesse uma habilidade chamada ouvido absoluto. Ouvido absoluto, algo que já foi associado à genialidade musical, é uma capacidade que a memória de algumas pessoas têm em gravar as notas musicais. 

Grosso modo, o cara grava as frequências exatas e não consegue fugir delas. Os músicos que conhecem os nomes das notas e que têm ouvido absoluto ouvem qualquer buzina na rua e sabem dizer se é um Dó um Si ou um Ré bemol meio baixo. 

Suspeito que muitos MC's tenham ouvido absoluto, como o MC Pikachu, por exemplo. No caso de Kevin, a suspeita veio porque ele, nas ruas, canta no exato tom das gravações originais, fugindo muito pouco da afinação. 

É comum que muitos MC's oscilem o tom de suas melodias em diferentes ocasiões. Quando o moleque Kevin aparece cantando em um vídeo de 2014, sem camisa e com um boné para trás da marca Quicksilver, os intervalos musicais ali são extremamente definidos. 

Moleque de quebrada, vida precária, sem a oportunidade de estudar música cantando lindamente. Ver esse vídeo me fez pensar no mistério da música no mundo: a habilidade musical, como as virtudes, aparece em terreno hostil. 

Quer dizer, pode tirar a moradia, a comida, a roupa e até a dignidade da favela, mas a música ninguém tira. Kevin estava alí, fazendo uma música foda! 

 

E além de cantar melodias com os intervalos musicais bem definidos, Kevin conseguia ao mesmo tempo e com facilidade bater o ritmo do funk precisamente nas palmas das mãos. Parece algo fácil, mas não é tão simples assim. 

Vejo muitos MC's com dificuldades em manter o ritmo corretamente nas palmas das mãos enquanto cantam. 

Moleque Dionísio, estourou na putaria 

Um dos primeiros estouros de Kevin foi a música Prepara Novinha lançada em 2014 em parceria com o MC Pedrinho e produção de DJ Perera. A música se inicia com um sons de uma flauta de pã, no vídeo clipe, Pedrinho e Kevin simulam estarem tocando uma flauta doce com as mãos. 

Curiosamente, os instrumentos de sopros eram usados no culto ao deus grego Dionísio, conhecido pelos romanos como Baco, daí a palavra "bacanal". Bacanal é, grosso modo, uma suruba que celebra o deus grego da revoada. 

Dionísio é o deus do vinho, do teatro e está associado aos ciclos vitais do nascimento e da morte. Kevin era um Dionísio. Em 2014, Kevin também lançou Mamada Legal e Meu Piru tá Sniper, ambas produzidas igualmente por Perera. 

Deste mesmo período, Kevin aparece chamando a atenção no videoclipe da Música Baile de Favela do MC João, que na época foi um dos primeiros recordes de número de visualizações do canal KondZilla

"Kevin sumiu um tempo até reestourar", disse meu parceiro Renan R5, que encontrou Kevin nesta época de menos visibilidade até lançar os sucesso Vera Cruz (2015) e Amassa a Placa (2016). 

Quando Kevin reestoura, volta renovado e com uma estética mais suave, o MC associa a mudança estética ao fato de ter sido pai de uma menina, chamada Soraya. Para ele, uma filha mulher o fez repensar as letras de putaria. 

A partir daí, Kevin vai crescendo e atualizando seu trabalho constantemente e conseguindo mais sucesso e visibilidade com uma série de sucessos. 

"Parei de Cantar" 

Em entrevista dada ao comediante Alê Oliveira há pouco mais de um mês, MC Kevin conta que o Parei de Cantar (que ficou conhecida como A Última, depois da morte do cantor), foi uma lorota, uma jogada de marketing. 

Kevin deu a entender que não pararia, apenas daria um tempo. Planejava viajar para o Estados Unidos e lá estudaria música, para elevar ainda mais a sua carreira. Infelizmente Kevin não pode realizar seus planos. 

Mas, deixou uma música muito impactante do ponto de vista de uma visão política atual e sobre a criminalização do funk.

Fernanda Souza, funkeira de quebrada e professora de literatura, costuma dizer que a favela sabe de política organicamente, na prática. Um entendimento empírico, tanto da música como da política está nesta que foi uma das últimas músicas de Kevin. 

E que também traz algumas pistas do futuro musical do funk, do Trap: o futuro (que já é presente) parece ser uma mistura dos dois. 

Ousadia e alegria 

Ser pobre favelado não é fácil, ser músico não é fácil, ser funkeiro, pior ainda. Para todas estas dificuldades somadas, a felicidade de Kevin era uma resiliência diante da vida. Em uma de suas últimas entrevistas a Matheus Mazzafera, Kevin se definiu como "ousadia e alegria". 

Perguntei ao meu parceiro Renan R5 o que ele achou de pessoa Kevin quando se encontraram e R5 me respondeu: "ele era feliz, parça". 

Impressões da cobertura midiática

Quando começo a rever a trajetória de Kevin, tenho que driblar a cobertura sensacionalista da mídia, para conseguir chegar na questão musical.

A impressão que eu tive ao ver diversas reportagens sobre o MC foi: Sabe aquelas pessoas que adorariam cair na gandaia, fazer suruba e encher a cara, mas não conseguem? 

Seja porque não estão à altura do próprio desejo ou porque têm medo mesmo, essas pessoas adoram se apegar a discursos moralizantes e muitas mídias fizeram bem este papel. 

Para pessoas assim, o caso de MC Kevin serviu para provar ao mundo que suas ideias estão corretas: "tá vendo, gandaia não dá futuro". 

Temos que separar um pouco as coisas aí, o que foi lamentável em todo caso foi a morte, principalmente de alguém tão jovem… Não se negocia com a morte. Todas as outras coisas envolvidas poderiam ter seu caminho revertido, a morte não. E isso nos revolta. 

"Ah, mas ele fez merda! Estava traindo", foi o que muitos disseram. Mas, por que o adultério é colocado como problema e não a monogamia? Talvez a maior traição de todas. 

Uma auto-traição, autossabotagem, é acreditar na monogamia como caminho de felicidade… "Tanto a cultura do homem é trair quanto o medo de ser descoberto" disse, Deolane, a noiva de MC Kevin, em entrevista dada ao Cidade Alerta em 20 de maio. 

Concordo com Deolane, e me pergunto: "por que as coisas precisam ser assim?". Isso é reversível, podemos repensar as formas como acontecem as relações humanas. Kevin, em vida, poderia ser perdoado por Deolane, poderia se casar ou não, parar as revoadas ou não... Enfim, mas, infelizmente, com a morte isso é irreversível.

Obrigado pela leitura. "Tô dando tchau" porque eu já tô "falando demais". Viva a memória de Mc Kevin!

 

*Thiagson é musicólogo, professor de música, doutorando em Música pela USP, youtuber, defensor das músicas periféricas e escritor de livros sobre música.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

 

Edição: Vivian Virissimo