ECOCÍDIO

"Antes vítimas, hoje somos reféns", diz atingido por esgoto da Casan em Florianópolis

Quatro meses após maior desastre ambiental do município, famílias ainda lutam por serviços médicos e indenizações justas

Brasil de Fato | Florianópolis (SC) |
Rompimento de estrutura da Casan deixou casas destruídas e contaminou a tradicional Lagoa da Conceição - Corpo de Bombeiros/ Divulgação

“Me jogou aqui, aqui transformou um redemoinho, eu fiquei aqui girando, peguei minha esposa e consegui colocar em cima do muro e joguei para o outro lado, daí saímos pelo meio da mata. Quando chegamos no topo, reparei a pousada do vizinho, as casas sendo levadas, a minha garagem, o meu carro”, relembra o aposentado Édson Moraes.

Ele é um dos moradores da Servidão Manoel Luiz Duarte, que foi acordado perto das 6 da manhã, do dia  25 de janeiro de 2021, submerso no esgoto sanitário da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan), em Florianópolis (SC). 

Nesta data, que marcou os dois anos do crime da Vale, em Brumadinho (MG), cerca de 60 famílias do bairro da Lagoa da Conceição viram suas casas serem destruídas, após o rompimento de uma lagoa artificial de infiltração da Estação de Tratamento de Esgotos da Lagoa da Conceição (ETE), com mais de 130 milhões de litros de matéria orgânica. 

O maior desastre ambiental de Florianópolis

Quatro meses após o vazamento, considerado o maior desastre ambiental da história do município, as famílias ainda lutam por uma reparação integral junto à empresa pública - responsável pelas indenizações e pelo Plano de Recuperação de Áreas Degradadas (PRAD).

Além dos desabrigados, o episódio deixou as águas da tradicional Lagoa da Conceição com nível de oxigênio perto de zero - conforme monitoramentos do Laboratório de Ficologia, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Em fevereiro, centenas de peixes e crustáceos apareceram mortos na Costa da Lagoa, reduto da pesca na região. 

De acordo com a Casan, o rompimento da barragem foi um acidente provocado pelo excesso de chuvas. Dias antes do desastre, técnicos da empresa visitaram o local, após denúncias de rompimento parcial da estrutura por parte de moradores. As providências, no entanto, não foram tomadas.

Hoje, a empresa estabiliza a estrutura de forma emergencial, com sacos de areia, mas não há medidas de segurança - como sirenes ou planos de evacuação - no caso de um novo rompimento.  

Com pelo menos o dobro do tamanho, uma segunda Lagoa de Evapoinfiltração (LEI) da Casan se mantém logo acima do local do desastre. Dentro da ETE, a estrutura recebe o efluente depois de tratado, que retorna à natureza alimentando o lençol freático.

“Aqui, a gente tinha uma barragem que 90% das pessoas não sabia que tinha, essa estação de tratamento de esgoto nas dunas da Lagoa da Conceição”, afirma Ubirajara Camargo Júnior, que viu sua pousada com 10 hóspedes ser engolida pelo material, que alcançou de 1,80 a 2,5m de altura


Indenizações dos bens materiais por parte da Casan é contestada pelas famílias / Acervo pessoal dos atingidos da Servidão Manoel Luiz Duarte

Falta de reparação da Casan

O jovem considera que é a Casan quem dita os rumos do processo de reparação, negando o direito de participação dos atingidos. Hoje, segundo ele, a estatal exige a comprovação dos bens destruídos para efetuar as indenizações. 

“Eles deveriam ter vindo com médico, com psicólogo, com vacinas, porque todos tiveram contato com água de uma estação de tratamento de esgoto, mas não foi isso que ocorreu. Eles vieram com 60 trabalhadores terceirizados para esconder o cadáver, para fazer a limpeza e limpar as casas. Jogaram todas as nossas coisas fora. No dia 28, eles lançam um edital falando assim: se você perdeu alguma coisa, eu preciso que você prove para que eu possa te ressarcir”, aponta Ubirajara.

“Antes, nós fomos vítimas de um alagamento, de um descaso, de uma irresponsabilidade, tanto do poder público, como da Casan. E hoje, nós somos reféns, porque quem vai falar se nós temos direito ou não é quem causou o dano, é o criminoso”, completa. 

A denúncia também é levantada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que acompanha as famílias desde o primeiro dia do desastre. 

“Primeiro, ter todo o trabalho de levantar os seus bens, fazer orçamentos, fazer pesquisa de preço, para depois isso ser objeto de análise da Casan, para ver se ela vai reconhecer ou não aquele pontos, ela está dando contraproposta de 50%, 60% da relação de bens que o atingido faz”, aponta Rodrigo Timm, da coordenação estadual do MAB no estado.


A represa de esgotamento sanitário da Casan após o rompimento / Acervo pessoal dos atingidos da Servidão Manoel Luiz Duarte

Atuação do MAB

Rodrigo, que é advogado, afirma que a estatal, ainda hoje, se nega a negociar as pautas coletivas. Desde 8 de março, a Casan não dá respostas sobre a oferta de tratamento médico e psicológico a Comissão de Atingidos da rua Manoel Luís Duarte. O pedido foi feito pelas famílias por meio de um requerimento com mais de 70 assinaturas.

A liderança do MAB considera que a reparação da Casan adere a uma lógica de economia de custo, que prioriza acordos individuais e desconsidera a dimensão integral do impacto - lógica que se assemelha à adotada pela Vale e pela Samarco nos crimes de Brumadinho e Mariana.

“É uma questão contraditória. Ao mesmo tempo que a Casan é uma empresa pública, ela está administrada hoje por uma política gerencial privatista”, afirma Timm, destacando o lobby empresarial que está por trás do projeto de instalação do emissário submarino do Sul da Ilha, alternativa para o saneamento da região que, segundo ele, beneficia empreendimentos imobiliários que atuam no Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição.

Até o momento, cerca de 160 mil reais foram destinados pela Casan para o pagamento do auxílio emergencial para 55 famílias. A conquista se deu após a pressão dos atingidos, com assessoria do MAB, que realizaram manifestações no bairro e em frente à sede da empresa, ao longo dos últimos meses. 

“O MAB mudou a história dos atingidos aqui na Lagoa da Conceição", destaca Ubirajara.

Segundo a Casan, até agora foram pagos R$ 3 milhões em indenizações, e aproximadamente 60% das famílias já fecharam acordo com a empresa. Os números foram apresentados ontem (24), em audiência pública virtual realizada em conjunto com a Câmara de Vereadores de Florianópolis. 


Manifestação dos atingidos na Avenida das Rendeiras, a principal via do bairro da Lagoa da Conceição / Acervo pessoal dos atingidos da Servidão Manoel Luiz Duarte

Dano ambiental

Segundo o vereador Marcos José de Abreu (PSOL-SC), o modelo de governança é altamente responsável pelo rompimento, o que inclui a atuação dos órgãos de licenciamento, como a Fundação Municipal do Meio Ambiente (Floram) e o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA). 

“Aqui não poderia ter um tratamento secundário. A estação de tratamento está dentro de uma unidade de conservação”, aponta. 

O parlamentar lamenta a contaminação da Lagoa da Conceição, um símbolo do município que vive no “imaginário, na poesia e no cotidiano” das pessoas.

“A gente vê a lagoa com um outro cheiro, uma outra coloração, essa mortandade de peixes, uma tristeza envolvida nesse processo, e a gente não os agentes públicos se responsabilizando”, lamenta o vereador. 

Logo no início de fevereiro, o monitoramento da qualidade da água, feito pela Casan e fiscalizado pela Floram, indicaram níveis de oxigênio adequados para a vida marinha.

Os resultados foram questionados por pesquisadores do Laboratório de Ficologia (Lafic) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que identificaram a caracterização de uma chamada “zona morta”, com níveis de oxigênio próximos de zero e excesso de fósforo e nitrogênio nas águas. 

O projeto Ecoando Sustentabilidade chegou a detectar a presença de uma alga tóxica nas águas da Lagoa da Conceição, que seria responsável pela alta mortandade dos peixes. 


O efluente chegou à Lagoa da Conceição e formou uma "zona morta" , por conta do baixo nível de oxigênio nas águas / Acervo pessoal dos atingidos da Servidão Manoel Luiz Duarte

"Boiada"

A restrição ao banho e à pesca, no entanto, foi retirada pelos órgãos ambientais estadual e municipal, no dia 3 de março. Até mesmo o ponto 61, o mais próximo da Servidão Manoel Luiz Duarte, onde vivem as famílias, foi liberado.

 “Hoje a lagoa da Conceição continua próxima do seu limite. Vez ou outra, os moradores nos enviam vídeos de animais agonizando, próximos da superfície, em diferentes lugares. Infelizmente, até agora, para efetivamente resolver o problema da Lagoa, nada foi feito”, afirma Paulo Horta, um dos docentes da UFSC que monitora as águas. 

O professor enxerga a “boiada” do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, muito bem estruturada quando observa a atuação de órgãos ambientais em Santa Catarina, que deveriam ser “técnicos” e, hoje, atuam para servir a “grandes corporações”. 

“Essas barbaridades que estão acontecendo, Brumadinho, Mariana, e, claro, falando no nosso caso aqui da Lagoa da Conceição, isso não pode ser esquecido. Isso tem que fazer parte da nossa história, porque representa um pouco do ecocídio que a gente está promovendo”, opina Horta.

Alternativas

Uma proposta de nova governança para a gestão socioambiental da Lagoa da Conceição foi protocolada no dia 19 de maio, em Ação Civil Pública Estrutural (ACP). A ação defende que diversos sujeitos da comunidade devem atuar conjuntamente com os órgãos ambientais no trabalho para o manejo do ecossistema da Lagoa.

Hoje, apenas 46% do esgoto que é coletado em Florianópolis passa por tratamento, segundo último levantamento do Instituto Trata Brasil.

“Florianópolis, o seu território é 97.3% dentro da Ilha de Santa Catarina, e é uma Ilha que é composta por lagoas, dunas, restingas, manguezais, rios, áreas alagadas, áreas que funcionam como esponja para a captação de água, que não podem ser ocupadas como uma cidade qualquer, que cresce de forma infinita. O tratamento básico e o saneamento falam muito sobre o projeto de desenvolvimento dessa cidade”, finaliza o vereador Marcos José de Abreu.

Outro lado

O Brasil de Fato entrou em contato com a Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan) e com o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina, mas não obteve retorno até o fechamento da reportagem.

 

Edição: Isa Chedid