Em 12 de junho de 2221, o Território Livre do Brasil comemora meio século da instituição da Declaração Brasileira do Amor-Coragem. A Declaração foi resultado de um longo processo de assembleia iniciado no primeiro ano da Grande Transformação Popular. Na verdade, podemos entender que esse processo foi semeado ainda antes, no seio das movimentações populares que antecederam o Processo Transformador.
A Frente do Projeto Popular, uma unificação de várias organizações que, à época, lutavam por um projeto que colocasse o ser humano no centro da produção e reprodução da vida, criou uma Comissão do Amor Ético onde se discutiam as questões do coração. Entendendo a importância de boas relações fundamentadas em princípios e valores entre aquelas¹ que impulsionariam o Processo Transformador, essa Comissão cuidava de refletir, conjuntamente com as lutadoras, sobre as melhores saídas para o enfrentamento da mercantilização das relações humanas.
O primeiro documento formulado por essa Comissão foi o Estatuto de Valores e Princípios do Amor, onde algumas orientações foram formuladas para orientar aquelas que começavam a traçar o caminho da Grande Transformação. O Estatuto não era uma imposição nas relações, pois se sabia que sua verdadeira modificação apenas se daria com a materialização do Projeto Popular. Para aquele momento inicial, o Estatuto servia de guia prático para melhorar os nossos relacionamentos afetivos. Mas, olhando para o futuro (que hoje é presente), servia como horizonte estratégico para esse processo de libertação que previa maior liberdade também neste âmbito da vida.
O ciúme, sentimento que há muito já não se vê por aqui, era desculpa para a reprodução da posse e do controle
Essa discussão se tornou necessária porque percebemos que a forma como o Sistema Anti-Povo, baseado na desigualdade, moldava nossos comportamentos afetivos interferia diretamente na capacidade de dedicação de nosso povo à árdua luta pelo poder popular. Ora, as lutadoras da Frente eram, em sua absoluta maioria, trabalhadoras no Sistema Anti-Povo e, por isso, seus corpos padeciam pela exploração que os donos do dinheiro impunham a seus servos. Ainda, suas mentes também tinham sido moldadas para valorizar as relações como transações mercadológicas: o ciúme, sentimento que há muito já não se vê por aqui, era desculpa para a reprodução da posse e do controle.
Todas sofriam por Amor, com Amor, sem Amor. Mas tinham aquelas que sofriam ainda mais. Faziam parte da população que tinham sua força de trabalho ainda mais explorada: as mulheres, as pessoas negras, as pessoas com identidades de gênero e orientações sexuais não aceitas pela sociedade da época. Essas pessoas tinham que trabalhar ainda mais duro para colocar comida no prato – pois viviam também outras contradições – e, quando chegavam em casa, não encontravam acolhimento de suas companheiras.
Entre as relações da época, não havia autonomia, respeito ou liberdade, embora o Sistema criasse uma falsa ideia de perseguição a esses objetivos. Esses valores foram aclamados na nova Declaração e regem, como princípios, as novas relações que estão sendo construídas. Valores que determinam uma nova forma de amar, o que exige das lutadoras uma nova postura corajosa. O Amor-coragem não surgiu do nada. Ele advém do Amor-Camarada de que falava uma grande lutadora do povo que ousou, ainda no século XX, questionar as relações entre companheiras de luta.
A forma como nos relacionamos e como sentimos e manifestamos o Amor, dizia ela, é espelho dos interesses dos que estão no poder em cada momento histórico. Se, no Sistema Anti-Povo, é a exploração do ser humano por outro ser humano que produz tudo o que precisamos para viver, o Amor assim será. A lógica da escassez que regia o Sistema Anti-Povo era reproduzida no âmbito superestrutural para a vida afetiva de forma cruel. Mas a Grande Transformação possibilitou outra forma de organização do Povo, em que não há exploração nem excessos e o Amor deixou de ser uma ponte da economia.
O Amor-coragem não surgiu do nada, ele veio do Amor-Camarada
As leis econômicas não servem mais para o Amor. Agora, quanto mais se dá, mais se recebe. Não trabalhamos mais com uma quantidade finita de Amor. Assim, não precisamos prendê-lo por medo ou insegurança. Com tantas possibilidades de crescimento existencial e com tempo para nos dedicarmos a esse cuidado de si e do outro – afinal, trabalhamos apenas oito horas mensais- o Amor se tornou, finalmente, aquele rio que alimenta a árvore e recebe suas flores em profunda gratidão, mas segue dançando².
O Amor-coragem precisou de longos anos para deixar de ser idealização e passar a ser realidade na vida das novas pessoas. A paciência regeu esse processo de transformação de valores, já que, como se confirmou na experiência do Processo Transformador, a gente vai mudando enquanto muda o mundo. Essa é a dialética do Amor-Coragem.
1. No decorrer desta crônica futurista, busquei evitar as flexões no gênero masculino, generalizando, sempre que necessário, para o feminino, entendendo a importância de uma utilização não sexista da linguagem.
2. Referência ao texto de Osho: “O rio passa ao lado de uma árvore, cumprimenta-a, alimenta-a, dá-lhe água… E vai em frente, dançando. Ele não se prende à árvore. A árvore deixa cair suas flores sobre o rio em profunda gratidão, e o rio segue em frente. O vento chega, dança ao redor da árvore e segue em frente. E a árvore empresta o seu perfume ao vento… Se a humanidade crescesse, amadurecesse, essa seria a maneira de amar”.
