Coluna

Sobre a militância, organização, grupo social e aparelho

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Uma organização se mantém em função de uma história, princípios, tradição e, sobretudo, de um projeto - Marcello Casal Jr/ Agência Brasil
Uma corrente política de esquerda é, entre muitas outras coisas, um tipo de grupo social

Respeito se merece. Honestidade se valoriza.

Confiança se conquista. Lealdade se devolve.

Sabedoria popular inglesa

 

Precisamos refletir sobre as dificuldades da militância em nossas organizações. Nem tudo é somente política. Uma corrente política de esquerda é, entre muitas outras coisas, um tipo de grupo social. Uma das frustrações mais frequentes entre ex-militantes é o desamparo, e até solidão humana em que se descobrem quando se afastam do coletivo em que participavam.

O problema é ainda maior se o militante era membro do aparelho de sua corrente, portanto, funcionário da organização. Além do desligamento emocional surgem os desafios da reinserção econômico-social. O momento da desprofissionalização pode ser muito duro, até dramático, em função da insegurança material, depois de anos de dedicação.

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Um grupo social é uma associação voluntária de pessoas que mantém relações estáveis entre si. Aqueles que participam de um grupo social têm algo em comum que os une. Compartilham uma experiência. Há variados tipos de grupo sociais.

Família, colegas de trabalho, amizades de infância, vizinhos, grupo de torcedores são muitas as formas dos grupos sociais que unem pessoas por diversas razões e interesses. Temos necessidades emocionais de pertencimento e interação subjetiva. A coesão de um grupo social será tanto maior na medida em que estas necessidades são atendidas.

Um partido ou uma tendência é, também, um grupo social. Mas seu lugar, existência, papel não pode responder, em primeiro lugar, às necessidades afetivas dos seus membros. Deve se construir em torno da defesa de um programa. Uma organização se mantém em função de uma história, princípios, tradição e, sobretudo, de um projeto. Sua coesão interna não deve ter como alicerce os sentimentos que unem seus militantes.

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Mas é natural que aqueles que militam juntos, correm riscos juntos, se sacrificam juntos, estabeleçam vínculos pessoais intensos. Muito intensos. Aqui reside uma força e uma fraqueza. Esses laços protegem e ameaçam uma organização. Um projeto é uma aposta. Toda aposta tem margens de incerteza.

O problema surge quando um militante descobre que já não acredita no projeto. Em situações defensivas de longa duração as pressões do desalento, do desânimo, do desgaste são muito poderosas. Não é difícil perder a confiança quando a perspectiva de vitórias imediatas é remota.

Uma corrente política não se estrutura, somente, pela adesão a ideias. Ela depende de relações de confiança. E, sobretudo, confiança na direção. Confiança é algo complicado de conquistar, e muito fácil de perder. Toda organização de esquerda desenvolve uma cultura e depende da construção de uma direção.

É essencial a formação de uma liderança. Quanto mais madura for a corrente, a direção será menos dependente do papel de indivíduos. Uma direção mais coletiva repousa em relações de confiança que só o senso de responsabilidade dos seus membros pode preservar.

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Senso de responsabilidade é uma qualidade muito mais rara do que se pensa. Impessoalidade nas discussões é essencial. Discordar de alguém não é o mesmo que diminuir, desqualificar ou pior, desmoralizar a pessoa com quem debatemos. Somos mais complexos que uma ou outra ideia que defendemos. A chave da preservação da confiança é o respeito.

As relações de confiança repousam em laços de mútua solidariedade e, sobretudo, honestidade. Não há confiança política possível em relações envenenadas pela mentira. Na vida social há uma margem muito elevada de tolerância para a dissimulação. Na militância, não. Dizer o que pensa não é somente um direito, é um dever.

A confiança é um sentimento delicado porque a maioria das pessoas pensa, primeiro, em si própria. É assim, porque a pressão dos valores embutidos nas relações sociais que dominam a sociedade capitalista, como rivalidade e competição, são os estímulos dominantes. As lealdades pessoais prevalecem e são muito poderosas e mais importantes que a lealdade a ideias, princípios, programas, orientações políticas.

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Que uma corrente de esquerda seja, também, um grupo social tem consequências. As amizades, amores e paixões entre os membros potencializam uma coesão impermeável à luta de ideias, e a tendência à acomodação de rotinas. A coesão subjetiva é mais fácil, mas menos estável que a coesão de ideias.

O perigo não ameaça somente correntes pequenas. Uma organização pode ser, relativamente, grande, mas se for muito encerrada sobre si própria, fechada, endurecida, o isolamento favorece relações endogâmicas, enviezamento rígido, unilateralidade, fracionalismo crônico, linguagem própria de clichês, imitação de comportamento, mania de superioridade, intolerância às diferenças e, no limite, culto de liderança messiânica e ideologias estranhas.

O caminho do monolitismo degenera em marginalidade social e sectarismo político. A distância da vida das pessoas comuns culmina em indiferença pelas suas opiniões. Uma longa diáspora social favorece adaptações bizarras.

A dinâmica da vertigem é mais intensa na direção e na coluna de quadros profissionalizados. Portanto, ainda que o aparelho seja a coluna vertebral de uma organização, não deve nunca controlá-la.

 

*Valerio Arcary é professor titular no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), militante da Resistência/PSol, e autor de O Martelo da história, entre outros livros. Leia outras colunas.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo