memória

Artigo | Marta Harnecker e a formação teórica de trabalhadores e militantes

Seu exemplo e suas ideias, contudo, seguem presentes na vida de movimentos populares e organizações de esquerda

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Harnecker é conhecida por seus mais de 80 livros publicados, alguns deles se tornaram manuais de formação política - Reprodução

Há dois anos desapareceu fisicamente Marta Harnecker, aos 82 anos de idade. Seu exemplo e suas ideias, contudo, seguem presentes na vida de movimentos populares e organizações de esquerda, sobretudo na América Latina e no Caribe. 

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Seu exemplo é o de uma militante presente em cada batalha importante do continente, de Cuba socialista, passando pelo Chile da Unidad Popular, à Venezuela bolivariana. Sua obra: a síntese pedagógica do marxismo como arma revolucionária. 

:: Artigo | Todos começamos com Marta Harnecker ::

Militava na Ação Universitária Católica chilena quando, em visita a Cuba, tomou contato imediato com o protagonismo popular no processo de transformação social e com a solidariedade internacional que a Revolução Cubana havia impulsionado. 

Recordo sempre minha visita a um quartel transformado em escola na Sierra Maestra. Ao saberem que eu vinha de Chile — país recentemente afetado por um forte terremoto que havia destruído muitas casas —, aquelas crianças camponesas de pouca idade, para meu assombro, me perguntaram pelo terremoto e me disseram que em sua escola eles estavam esperando a chegada das crianças chilenas enquanto se reconstruíam suas casas. As seis semanas em que percorremos a ilha de ponta a ponta nos permitiram vibrar com esse povo e seus múltiplos esforços para começar a sair da pobreza e encontrar uma vida digna. [...]. 

Após formar-se em psicologia, obteve uma bolsa de estudos em Paris, oferecida pela embaixada francesa. Era o ano de 1963 e Marta Harnecker se preocupava filosoficamente com a questão da liberdade humana. 

:: Morre, aos 82 anos, a educadora marxista chilena Marta Harnecker ::

O embate entre cristãos e marxistas estimulou Marta, “por honestidade intelectual” segundo relata, a ir às fontes do marxismo. Amigos da Ação Católica indicaram-lhe um sacerdote, militante do Partido Comunista Francês, que, por sua vez, a apresentou a Louis Althusser. Conta-nos Marta Harnecker sobre esse encontro: 

Althusser me ensinou o método com que devia estudar os clássicos do marxismo. Ensinou-me a ler, a ler para além do que uma citação diz textualmente, a lê-la em seu contexto, a ler em profundidade, a deduzir, a partir do que diz o autor, mas também a partir do que deixa de dizer, seu pensamento profundo. Somente dessa maneira é possível livrar-se do dogmatismo, livrar-se da repetição de citações textuais retiradas de seu contexto, argumentar com raciocínios e não com recitações de textos. Somente dessa maneira se pode desenvolver criativamente o marxismo, extraindo das obras dos clássicos um enorme caudal de instrumentos teóricos que serão muito úteis para o estudo das novas realidades que vão surgindo. 

Marta Harnecker traduziu para o espanhol “Por Marx”, de Althusser, (“La revolución teórica de Marx”, México: Siglo XXI, 1967), para o qual escreveu uma introdução, em que se pode constatar como aquela questão filosófica da liberdade humana recebe um novo tratamento: “[...] para servir aos homens reais, Marx não ‘fabrica’ uma teoria baseada sobre uma ideia moral, religiosa ou filosófica do homem [...]. Antes de tudo, quer compreender as leis que determinam a existência real dos homens que vivem nas sociedades. [...]”. 

Assim pôde compreender, segundo relata, como o anti-humanismo teórico está a serviço do humanismo “prático”. Ademais, encontrou na tese althusseriana da “contradição sobredeterminada” a resolução de seu “problema teórico” em relação às possibilidades da ação humana, então abertas pela ruptura com o mecanicismo da contradição simples entre forças produtivas e relações de produção.

:: Artigo | Marta Harnecker e os caminhos do poder ::

Trata-se, segundo afirma, de um determinismo “de novo tipo”, que “nos permite ver em que lugar temos que combater para que nosso atuar seja mais eficaz”.  

Foi assim que Marta se tornou uma combatente na trincheira da formação teórica marxista. Em 1968, com o apoio de Gaspar Ilom, comandante da “Organización del Pueblo em Armas” (ORPA), de Guatemala, publicou “Los conceptos elementales del materialismo histórico” (Siglo XXI). Pouco depois, já de volta a sua terra natal e no calor dos embates postos pela presidência de Salvador Allende, publica com a colaboração de Gabriela Uribe os “Cadernos de Educação Popular” (Quimantú, 1971), divididos em seis títulos: “Exploradores e explorados”, “Exploração capitalista”, “Capitalismo e socialismo”, “Socialismo e comunismo”, “Classes sociais e luta de classes” e “Imperialismo e dependência”. 

Juntos, os “Cadernos” e os “Conceitos elementares...” constituem um marco na formação teórica marxista para amplas camadas dos trabalhadores e para a militância socialista; receberam inúmeras traduções e reedições e foram utilizados pelos mais diversos partidos de esquerda e organizações populares na América Latina — mas também em Portugal, Espanha, Bélgica, Grécia e Austrália. A coleção é aberta deste modo: 

As revoluções sociais não as fazem os indivíduos, as “personalidades”, por muito brilhantes e heroicas que elas sejam. As revoluções sociais as fazem as massas populares. [...]. É por isso que uma das tarefas mais urgentes do momento é que os trabalhadores se eduquem [...]. Mas, para poder transformar uma sociedade determinada temos que fazer uma análise dessa realidade que nos permita atuar sobre ela. O instrumento teórico que usamos neste caso é o conhecimento científico da sociedade ou Materialismo Históricovi. 

A Editora Expressão Popular publicou algumas obras de Marta Harnecker, que têm sido muito úteis na formação de sucessivas gerações de militantes: “Estratégia e Tática”, “Fidel: a estratégia política da vitória”, “Um homem, um povo: entrevista concedida por Hugo Chávez a Marta Harnecker”, “Os desafios da esquerda latino-americana”, “Ideias para a luta” e “Um mundo a construir”. 

Para as obras completas de Marta Harnecker em formato digital e, ainda, seus cursos e numerosas entrevistas com lideranças latino-americanas, consultar a compilação feita pelo Subcomandante Marcos no portal Rebelion.

 

*Thiago Barison é advogado e militante da Consulta Popular. 

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo