Rio de Janeiro

100 ANOS

Artigo | Centenário: A Morte Vertiginosa de João do Rio

Escritor e jornalista capturou e registrou as mudanças físicas e sociais da Belle Époque do Rio de Janeiro

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
João do Rio
“João do Rio viveu na rua carioca e morreu na rua carioca”, registrou o escritor e diplomata Ribeiro Couto - Reprodução

Há exatos 100 anos morria um dos mais interessantes personagens da imprensa e da literatura brasileira: Paulo Barreto, mais conhecido como João do Rio. Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, o escritor e diplomata Ribeiro Couto (1898-1963) resumiu o autor de A alma encantadora das ruas:

“João do Rio viveu na rua carioca e morreu na rua carioca”. A frase é um epitáfio quase perfeito para alguém que morreu exatamente como viveu: nervosamente, com pressa, no meio de uma rua carioca.

Com olhar astuto, João do Rio capturou e registrou as mudanças físicas e sociais da Belle Époque do Rio de Janeiro. Durante sua breve vida, vertiginosa e cheia de ambiguidades, espelhou múltiplos talentos, um alto senso ético, e enfrentou com coerência e coragem as realidades inéditas e os desafios do seu tempo. Das páginas de seu livros, de grande valor documental e sociológico, emerge a atualidade de uma sátira política e social destemida. 

Escritor, nietzscheano, gay, pardo, workaholic e gourmet, João do Rio também foi o melhor repórter da sua geração.

Revolucionou os processos de se fazer imprensa no Brasil ao introduzir entre nós a reportagem moderna, interessada nos aspectos sociais e humanos da vida urbana.

Também foi o criador de um novo gênero de crônica: a crônica-reportagem. Seus temas prediletos foram os personagens anônimos, o proletariado, os mendigos, as prostitutas, os moradores de favelas e cortiços. Todos unidos pela generosidade cruel das ruas, este “aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte”. 

A propósito, João do Rio flanou pela cidade com enorme desenvoltura e a “comeu” com os olhos. Sempre esteve ligado à vanguarda do Rio de Janeiro do seu tempo. Ainda que não tenha sido o primeiro repórter brasileiro, não se pode negar que, entre nós, seus textos sejam os primeiros a demonstrar uma consciência sobre o ofício do jornalista. 

Pelo exercício de suas atividades jornalísticas, João do Rio notabilizou-se por prever hábitos, costumes e tendências.

Antecipou o feminismo, defendeu uma quase inexistente classe jornalista, questionou a carga horária de trabalho do proletariado e defendeu o direito às greves: “uma forma de luta de trabalhadores que já haviam alcançado a consciência”. Previu também que sua obra seria melhor analisada no futuro. 

Acima de tudo, um jornalista

Viveu uma vida abundante: descobriu Ipanema (onde passeou e amou a coreógrafa americana Isadora Duncan), escreveu centenas de artigos, foi preterido pelo Itamaraty, entrou para a Academia Brasileira de Letras (ABL) muito jovem, ajudou a fundar jornais (entre eles, A Noite e A Pátria), criou a Sociedade Brasileira de Autores e Artistas de Teatro (Sbat), tomou posição contrária à nacionalização da pesca e foi agredido por isso, viveu intelectualmente, atraiu paixão e ódio.

Definitivamente, João do Rio não motivou meios-termos. 

Se por um lado, ele consagrou a imagem do jornalista como profissional, por outro não se descolou da imagem de dândi, de eterno diletante. Se por um lado, sua produção em jornais incorporou reportagens, por outro, se atribui a essa produção a classificação de crônicas, o que a associa a uma realização mais literária do que jornalística.

Se por um lado, se dá credibilidade às suas reportagens, fruto de apuração rigorosa de jornalismo moderno, por outro já se considerou que elas talvez incorporem muito de fantasia e de imaginação; se por um lado João do Rio é o competente jornalista, por outro também é o criativo ficcionista.

Sem ser etnógrafo, João do Rio realizou, como ninguém, uma espécie de levantamento dos usos e costumes cariocas.

Observou, anotou e comentou tudo, com interesse, empatia, ternura, curiosidade, ironia, às vezes com indignação. Como jornalista, amou a sua profissão e procurou dignificá-la, batendo-se pela independência profissional dos homens de imprensa e hostilizando o amadorismo em seu meio.   

Pluralidade discursiva

Uma imprensa livre costuma ser chamada de oxigênio da democracia, porque uma não pode sobreviver sem a outra. Temos observado esse postulado ser colocado em xeque nos últimos anos, no Brasil e no mundo. O escritor político francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) já havia observado essa simbiose quando visitou os Estados Unidos, há quase 200 anos, e escreveu: “Não se pode ter jornais de verdade sem democracia e não se pode ter democracia sem jornais”. 

No início do século XX, o jornalismo no Brasil passou por uma significativa transformação, com o abandono de sua feição doutrinária e a incorporação de uma dinâmica comercial e empresarial. A obra de João do Rio constitui um objeto indispensável para uma reflexão acerca do desenvolvimento dos gêneros jornalísticos no Brasil.

Deve-se destacar sua importância tanto para a cultura brasileira, quanto para a história de nossa imprensa, que o situa como o “cronista da nossa Belle Époque”, o iniciador do jornalismo investigativo no país, enfim, um autor cuja obra ainda pulsante não deveria ficar de fora do cânone da própria literatura brasileira. 

Muito da riqueza da obra de João do Rio vem da sua pluralidade discursiva, da simbiose entre diferentes tipos de texto, sem exigência de demarcação rigorosa entre os gêneros. João do Rio foi repórter, cronista e colunista social, ao mesmo tempo, sem deixar de ser romancista e contista. 

Pseudônimo babélico

Paulo Barreto nasceu em 5 de agosto de 1881, na rua do Hospício, atual rua Buenos Aires, no Centro do Rio de Janeiro. Desde muito cedo, revelou forte inclinação para o jornalismo. O “João do Rio” só nasceria em 3 de maio de 1903, na primeira página do jornal Gazeta de Notícias, quando o famoso pseudônimo foi usado pela primeira vez, inspirado em dois escritores franceses famosos: “Jean Lorrain”, ou João da Lorena, pseudônimo de Paul Duval (1855-1906), e “Jean de Paris”, pseudônimo de Napoleón Adrien Marx (1837-1906). 

João do Rio desenvolveu a elegância de um raro espírito, dono de uma capacidade de trabalho miraculosa, a desdobrar-se continuamente. Tinha um bom-humor peculiar e uma generosidade risonha de quem na vida se conectava às pessoas, não pela razão, mas pelo coração e pelo espírito. Entrou para a Academia Brasileira de Letras com apenas 29 anos, em sua terceira tentativa, e foi o primeiro acadêmico a tomar posse de fardão. 

Um dos grandes responsáveis pela profissionalização da imprensa no Rio de Janeiro, João foi um excelente repórter, entrevistador e cronista.

Por sua causa, a profissão de jornalista sobe de nível no início do século XX.  Criador de um gênero novo, a crônica-reportagem, João do Rio observou e tentou analisar o meio e o momento em que viveu. 

Apoteose final

Durante todo o dia 23 de junho de 1921, João do Rio se sentiu mal. À noite, quando ia da redação do jornal A Pátria, no centro da cidade, para a sua casa em Ipanema, na altura da rua Pedro Américo, no Catete, pediu ao motorista que parasse e lhe trouxesse um copo d'água.

Antes que o socorro chegasse, ele morreu, vítima de infarto fulminante. Morte rápida, sem agonia, no meio da rua. Tinha apenas 39 anos de idade. No dia seguinte, havia uma mistura de comoção e algazarra por toda a cidade e os jornaleiros anunciavam aos berros: "Morreu João do Rio!"

Morreu esgotado, arrasado, arrebentado pelo excesso de trabalho contínuo, agitado e gigantesco em que se consumiu.

O povo do Rio de Janeiro fez do seu funeral uma apoteose. Seu enterro esteve entre os mais concorridos do Brasil, com um público estimado de 100 mil pessoas.

João do Rio, cronista inexcedível da belle époque carioca, deixou um conjunto de obras que contém o mais minucioso, vivo e válido retrato de uma época, através dos múltiplos aspectos da vida da cidade do Rio de Janeiro, nas duas primeiras décadas do século XX. 

*Cláudio Soares é escritor, jornalista e editor dos Clássicos Hiperliteratura.

Edição: Eduardo Miranda