Fenômeno histórico

Artigo | E se Golias tomasse a funda de Davi?

Opressores podem se apropriar de ferramentas de luta da classe trabalhadora, pois o que importa são as vontades

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
Motociatas promovidas por Bolsonaro relembram como as ruas já foram palco de manifestações fascistas da juventude hitlerista - Miguel Schincariol / AFP

Creio que todos conheçam a história bíblica de Davi e Golias, relatada pelo profeta Samuel, quando Davi, um jovem pastor, conseguiu matar Golias, um gigante que lutava pelos filisteus, com apenas uma pedra e uma funda.

A história, além de ilustrar como a fé e a confiança de Davi em Deus ampliam sua força para enfrentar o enorme desafio representado por Golias, é constantemente reivindicada pela igreja progressista para apontar como é possível a vitória do oprimido (também chamado pastor, pobres, povo de Deus) sobre o opressor (elites, ricos, falsos profetas).

Pensando as relações entre Estados, e não mais entre indivíduos, poderíamos pensar a disputa entre os países de periferia ou semiperiferia e os países de centro.

Mas não queremos tratar do Davi e do Golias. Nosso objetivo, nesse artigo, é tratar da pedra e da funda. Nenhum objeto ou tecnologia desenvolvidos (e sim, o popular “bodoque” é um tipo de tecnologia) é por essência uma arma. O mais importante é analisar as vontades humanas que estão por trás dos objetos que são convertidos em armas.

Acontece que nem sempre a pedra e a funda serão usadas pelo lado oprimido. O opressor, constatando a eficiência daquele armamento, pode desejar empregá-lo contra o oprimido.

Quando Lemisnki aponta que “na luta de classes, todas as armas são boas: pedras, noites e poemas”, pensamos na diversidade de táticas que podem ser usadas para conquistar mentes e corações da classe trabalhadora, engajando-a na construção do Paraíso Perdido que nos aponta Frei Betto.

Entretanto, os opressores podem fazer o mesmo raciocínio, e se apropriar de ferramentas históricas de luta da classe trabalhadora para o seu projeto político, pois não importam as ferramentas, e sim as vontades que elas carregam. Em outras palavras, Golias poderia perfeitamente roubar a pedra, a funda, e atacar Davi.

Esse não seria um fenômeno historicamente novo. As greves, por exemplo, são uma das principais ferramentas de luta por melhores condições de trabalho. Por outro lado, greves de caminhões foram fundamentais para a derrubada do governo socialista de Salvador Allende no Chile, em 1973.

Manifestações massivas nas ruas foram bastante identificadas com a esquerda desde o final do regime dos generais, com suas pautas diversas, variando das grandes marchas do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST) por reforma agrária até as enormes Paradas do orgulho LGBT+ em São Paulo, reivindicando direitos civis básicos, como o casamento.

As motociatas promovidas por Bolsonaro, juntando alguns milhares de motos, relembram como as ruas já foram palco de manifestações fascistas organizadas por uma das maiores juventudes do mundo, a hitlerista, que chegou a ter mais de 8 milhões de membros.

Tem ganhado espaço dentro da esquerda a formulação de que o Brasil estaria sendo vítima de uma guerra híbrida em virtude do emprego de diferentes táticas de desestabilização do governo Dilma Rousseff, com ênfase nas manifestações de rua de 2013.

Entendemos que o processo de globocolonização ocorre também por meio da linguagem, quando adotamos acriticamente conceitos formulados por terceiros (nesse caso Estados Unidos e Rússia) para entender os seus interesses.

Entendemos também que a palavra “híbrido” pode esconder praticamente qualquer coisa, e por sua baixa especificidade, não nos ajuda a compreender a realidade.

O imperialismo sempre usou de ferramentas diversas para tolher a soberania dos Estados periféricos, como o Brasil, mantendo-os dependentes.

Prova disso são as manifestações quanto à dívida externa presentes em diversos documentos da CNBB ao longo das últimas décadas, que, a depender do autor, pode ser percebida como uma forma de guerra econômica.

Considero que é mais didático perceber que, diante do crescimento chinês, os EUA farão o possível para manter a sua hegemonia na América Latina em quatro grandes campos: militar, político, econômico e cultural.

Importa para eles mostrar-se como os mais fortes do mundo (mesmo acumulando derrotas militares atrás de derrotas), os mais democráticos (mesmo após o ridículo episódio do “chifrudo” que invadiu o Capitólio contestando as eleições), os economicamente importantes (mesmo com 12% da sua população – 40 milhões de pessoas – vivendo abaixo da linha de pobreza), e os culturalmente relevantes (mesmo diante da realidade de que o consumo em massa destrói o meio ambiente e potencialmente a vida na terra, como nos alerta o Papa Francisco).

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Pensar hibridamente, ou como prefiro, como eles pretendem nos dominar totalmente, implica perceber como as ferramentas usadas como armas para manter essa hegemonia se interpenetram, ou em outras palavras, o cinema ajuda a militarizar a sociedade, as compras de armamentos são uma ferramenta de dependência econômica, as sanções econômicas ajudam a desestabilizar democracias inimigas, e por aí vai… A boa e velha dialética.

O que as novas tecnologias permitem é a customização das mensagens que o imperialismo deseja passar, de maneira que cada um receba em seu celular exatamente aquilo que deseja ouvir. Soterrados por ruídos de todos os lados, perdemos a habilidade de ouvir até mesmo o que falam aqueles e aquelas que estão bastante próximos, e nosso sentimento de solidariedade e empatia passou a ser substituído por logaritmos e fakenews.

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O remédio para isso não surgirá de uma nova tecnologia, mas dos saberes ancestrais, da percepção de somos seres políticos, vivemos em comunidade e precisamos nos empenhar para edificar o nosso bem viver.

Lições

Davi tem ainda duas lições importantes para nos dar nesse momento. A primeira, a necessidade de se movimentar rapidamente. Enquanto parte mais frágil do conflito, se o pastor se mantivesse apegado a sua posição, certamente teria sido golpeado.

Em segundo lugar, ele tinha apenas cinco pedras. Por isso, precisou identificar o ponto frágil do gigante Golias, o espaço no meio dos seus olhos, para desfechar um único e certeiro ataque que derrubou o gigante. Depois disso, não recuou ou parou para comemorar suas vitórias. Finalizou o combate cortando-lhe a cabeça.

Que continuemos a usar as pedras, as noites, e os poemas. Mas não nos enganemos, eles também os conhecem.

 

*Texto escrito em homenagem ao meu afilhado Davi.

**Ana Penido é pesquisadora do Grupo de Estudo em Defesa e Segurança (GEDES – UNESP) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. 

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo