Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | Administração Pública e os desafios do Estado pós-capitalista

Não basta derrotar os retrocessos propostos pelo atual governo, necessitamos superar os limites do passado

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Área da saúde é uma das tantas em que o servidor público é fundamental para realizar as políticas públicas no Brasil - Joel Vargas

Administração Pública é como se fosse a coluna vertebral da materialização do Estado para seu povo. Nesse complexo sistema de engrenagens está toda estrutura legal de definição das instituições e suas atribuições. Porém, Administração do Estado contemporâneo não é importante apenas pelas questões legais, como seus princípios da Legalidade, Imparcialidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência, entre outras regulamentações e dispositivos. Além desses elementos, torna-se fundante do Estado pelo seu impacto na cultura organizacional e social, quanto aos seus propósitos e motivações ao serviço público e como isso desenha sua concepção de Estado.

Não coincidentemente, as “reformas” propostas desde a constituição de 88, foram apresentadas apenas pelos governos de direita ultraliberais de FHC (com a Lei da Responsabilidade Fiscal e o princípio da Eficiência, por exemplo) e agora de Bolsonaro (extrema-direita), mas foram deixadas em segundo plano da estratégia dos governos progressistas de Lula e Dilma. Essas reformas propostas por projetos de direita apresentam uma visão de qual Estado esses governos acreditam que deve se constituir e têm como objetivo primeiro a concentração de poder para seus aliados, no caso a própria direita e a burguesia. No modelo atual, a população de forma geral não está incluída nos espaços decisórios, senão a partir do sistema político, de quatro em quatro anos ter a possibilidade de escolherem seus representantes. Mas a burguesia, no papel dos grandes empresários nacionais e internacionais, está o tempo todo sendo consultada e propondo políticas e reformas estruturais para se auto beneficiar, dentre tantas formas, também com o que conhecemos como “lobby”, ou mesmo a velha corrupção (porque se existe quem se corrompe, existe o corruptor).

A falta de uma agenda para a Administração Pública pelos governos progressistas ficou explícita quando estes submeteram-se a tão-somente seguir o mesmo percurso do legado deixado pela deformação estabelecida pelo governo anterior – no caso o de FHC e seu ministro Bresser Pereira. Manteve-se o Estado como um ente moroso, distante dos cidadãos e cidadãs, pouco aberto a sugestões, opiniões e construções coletivas. Por mais que isso tenha sido talvez até subestimado pelo campo progressista na época (e possivelmente seja até hoje), na prática não deixou de interferir direta ou indiretamente nas políticas executadas pelo governo, com sua diversidade de impactos negativos no percurso das políticas, que são vistos muitas vezes de forma genérica pela população como um Estado “pesado”, “ineficaz”, “inchado” e até mesmo “inútil”.

Aproximar o Estado de seu povo pela Administração Pública possibilita confrontar de forma perene o mal-estar produzido pela (falta de) relação entre o poder público e a sociedade, que se constituiu historicamente, e permite a inclusão de novos olhares e perspectivas de soluções, contudo também insere novos desafios. Porém essa nova concepção permite no ‘fazer’ a transformação da cultura organizacional do Estado e da cultura social, que dê mais alma para um ente que cada vez é mais desalmado, por conta da visão do capital sobre as funções deste, consolidadas e reguladas pelas suas reformas na Administração.

Ter uma Administração Pública avançada e qualificada requer inserir o povo trabalhador na agenda. Não apenas na agenda econômica, tampouco somente na de programas sociais, mas especialmente ter como um de seus pilares estratégicos a participação popular nas diferentes etapas do ciclo de políticas públicas e esferas do Estado, portanto incluindo a sociedade como um todo na tomada de decisão, não apenas o empresariado. Isso significa democratizar o Estado e seus instrumentos. Instrumentalizar e capacitar a burocracia de nível de rua, os servidores da ponta, a compreenderem esse formato, essa concepção e contribuírem para sua aplicação e aprimoramento torna-se fundamental. Não basta vontade política de gestores ou de políticos governantes, mas que todo o aparato estatal esteja disposto e comprometido em construir uma cultura social de tomada de decisão mais democrática, ouvindo mais de perto e com mais disposição o que a população tem a dizer sobre suas necessidades.

Nesse sentido, os propósitos e motivações da Administração Pública, como mencionado no início desse texto, devem ser repensados e ressignificados a partir de uma visão integrada, democrática e solidária, ao contrário do que se constituiu culturalmente com as concepções de Administrações Públicas Burocrática – de Vargas – e a Administração Pública Gerencial – de FHC – que tornaram a Administração Pública mais autocentrada e distante das necessidades populares. Isso implica desde a transformação do ambiente público, tanto de trabalho como de atendimento aos cidadãos e cidadãs, com novos valores, hábitos e comportamentos, que sejam mais acolhedores, abertos e dialógicos, até elementos e questões subjetivas ou intangíveis, porém necessárias para a transformação social. Na perspectiva do ciclo de políticas públicas, significa agir dessa forma desde a identificação da agenda, formulação, implementação, fiscalização e avaliação de determinada ação do governo, envolvendo desde os cargos mais estratégicos até os mais operacionais.

Do ponto de vista do contexto atual, deixar esse governo avançar com sua agenda de deformação da Administração Pública, com a PEC – Proposta de Emenda Constitucional – 32/2020, que na prática se trata mais de uma reforma do funcionalismo público que precariza as relações de trabalho e os direitos dos servidores, ou seja, um ataque aos trabalhadores e trabalhadoras, para somente então mobilizar-se no enfrentamento já é uma demonstração de menosprezo e de pouco conhecimento da importância desse tema para quem se dispõe a ter um projeto de país e de Estado. Contudo opor-se sem conseguir apresentar uma proposta alternativa que não seja somente a de defesa dos direitos garantidos pela Administração Burocrática de um projeto de Estado já obsoleto da era Vargas, demonstra o quanto estamos limitados sobre uma perspectiva de Estado para o Brasil, e como este deveria dialogar com seu povo, atender seu povo, prestar seus serviços para seu povo, principalmente depois dos governos progressistas terem conseguido se eleger quatro vezes consecutivas.

Portanto, não basta derrotar os retrocessos propostos pelo atual governo, que propõe uma deformação da Administração Pública que irá literalmente acabar com o serviço público, com o funcionalismo público e com seus princípios como o conhecemos hoje. Necessitamos buscar superar os limites do passado, para uma Administração Pública aberta ao seu povo – no caso, a classe trabalhadora -, com disposição de dialogar, menos enrijecida e lenta, com maior inteligência e capacidade de inovação para apresentar novas soluções e tecnologias ao capitalismo tardio. Um Estado protagonista, condutor das relações políticas e articulador da relação social com o ambiente público. Assim como compreendermos quais são as capacidades estatais e seus potenciais, remodelar o desenho organizacional, uma atualização do modelo de burocracia e qual a forma de gestão deve ser trabalhada nos ambientes públicos, a partir de questões como gestão de pessoas, orçamento público, compras e licitações, entre outros, faz-se necessário um Estado que seja de fato permeado pelas vontades populares. Isso não significa exterminar com cargos de representação política, mas conseguir equilibrá-los, corresponsabilizando de verdade sociedade civil e representantes políticos.

Não será somente com a visão técnica das Políticas Públicas ou de mera inclusão da classe trabalhadora em programas assistenciais e de inserção no mercado de consumo que iremos reverter ou mesmo superar o sistema socioeconômico que estamos postos. A disputa é, e continuará sendo, entre uma visão de Estado submisso aos interesses do setor privado - em detrimento do interesse público - e um Estado altivo e protagonista na condução para uma nova ordem social. Que expresse valores e princípios sociais alternativos aos constituídos e alimentados pela hegemonia do capitalismo e que incorpore de forma transversal e integrada essa visão de mundo e de sociedade. Que seja atento aos detalhes, com a minúcia necessária entre elementos de um projeto que articule as diferentes áreas de funcionamento e atuação do Estado e seu processo de implementação, encadeando desde a alta cúpula do Estado, os escalões médios, até as salas de aula públicas e os atendimentos dos postos de saúde (UBSs), etc.. O sistema capitalista faz isso, devemos também fazê-lo.

* Frederico Lemos é bacharel em Administração Pública e Social pela UFRGS

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


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Edição: Marcelo Ferreira