Entrevista Especial

“Lutar pelos desaparecidos é uma forma de resistência”, afirma Sônia Haas

Desaparecido na ditadura, João Carlos Haas Sobrinho faria 80 anos. A irmã procura o corpo há quase cinco décadas

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
A publicitária Sônia Haas fala nesta entrevista de esperança, dos momentos de fraqueza e do significado da dor de uma procura sem fim - Arquivo pessoal

Caçula de uma família de sete irmãos, a publicitária Sônia Haas, 63 anos, trava a mesma luta há quase meio século: exige que o Estado brasileiro lhe devolva os restos mortais do irmão João Carlos Haas Sobrinho.

É uma busca que iniciou no final da adolescência, e não parou mais. Médico, ex-presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina da UFRGS, gaúcho de São Leopoldo, João Carlos foi baleado por tropas do exército em 1972, nas matas do Araguaia. Como aconteceu com os demais integrantes da guerrilha do PCdoB, o corpo nunca foi encontrado e a família não pode dar-lhe sepultamento digno.

Nesta semana, no dia 24, o homem que levava o codinome de “Doutor Juca”, faria 80 anos. Sônia aproveitou a ocasião para organizar uma live e evocar a memória do irmão, o segundo mais velho do casal Ildefonso e Ilma. Ambos faleceram sem saber o paradeiro do corpo do filho. A publicitária também está trabalhando na publicação de uma HQ com a trajetória de seu irmão, para a qual está sendo feita uma arrecadação coletiva. Para colaborar, basta acessar o link: http://vaka.me/2183170

Nesta entrevista, ela fala de esperança, dos momentos de fraqueza, e do significado da dor de uma procura sem fim.

Brasil de Fato RS - Qual a lembrança mais nítida do seu irmão, 50 anos após a morte dele no Araguaia?

Sônia Haas - É a do João me dando atenção, olhando minhas tarefas da escola, folheando livros comigo ou chegando de Porto Alegre de ônibus, e eu esperando na esquina, de bicicleta, para irmos conversando até lá em casa. Era um momento só nosso. Isto dele me dar atenção, aos meus assuntos, marcou a minha vida. Até hoje, quando vejo uma criança, tento mostrar que ela é importante porque sei que isso deixa marcas muito bonitas.


Criado em São Leopoldo, João Carlos Haas Sobrinho é nome lembrado em ruas da cidade / Arquivo pessoal

BdFRS - João Carlos Haas Sobrinho é nome lembrado em ruas de São Leopoldo, sua cidade natal, em Caxias do Sul e São Paulo. Também nomeia um complexo de esportes e um centro cirúrgico em Porto Franco, no Maranhão, onde trabalhou. O que o Brasil de hoje precisaria saber do João Carlos?

Sônia - O Brasil precisa saber quem eram essas pessoas que acreditavam em um país mais justo e melhor. Esta é a marca dos desaparecidos políticos que deve ser conhecida por todos. Existe uma onda aí de volta da ditadura e dos militares, que é uma falácia. Nossa missão é esclarecer quem eram essas pessoas. Nós estamos aqui. Eles não estão mais.

BdFRS - No Araguaia, ele era o “Doutor Juca”, o médico da selva. Era o guerrilheiro, mas também o médico dos camponeses no lugar. O que você pode contar sobre esta experiência e esse convívio dele?

Sônia - O João Carlos, desde o início, demonstrou muita liderança. Somos sete filhos e temos essa característica que vem dos nossos pais. Uma liderança agregadora. Ele tinha 17 anos quando entrou no curso (Medicina) e começou a ver as fragilidades dos mais necessitados. Na Santa Casa de Porto Alegre, começou a atender um número maior de pessoas. Gostavam muito dele, davam-lhe presentes.

Ali começa a se desenhar a pessoa que irá para o Araguaia. Encontra um povo muito necessitado lá, que vê o médico como um Deus ou um membro da família. Em Porto Franco (MA), cobrava de quem tinha condições de pagar e não cobrava daqueles que não tinham. Recebia uma galinha, uma dúzia de ovos. No Curumin (praia gaúcha) quando a gente veraneava lá, ele caminhava quilômetros no sol para atender pessoas que moravam longe e precisavam de vitaminas ou  falar sobre alguma doença.


João Carlos Haas Sobrinho se formou em Medicina em dezembro de 1964 / Arquivo pessoal

BdFRS - Consta que João Carlos morreu em confronto com as tropas da ditadura, mas a família nunca teve acesso aos restos mortais, como aconteceu com a maioria, senão todos os mortos no Araguaia. Com a morte de seus pais, e passado meio século, é você que prossegue nessa busca. Você não esmorece, não pensa, às vezes, em desistir?

Sônia - A gente até pensa, mas não pode. É uma missão. Não deixar morrer esse assunto, gritar. Quando me sinto fraca, penso no meu irmão e em tudo aquilo de que ele abriu mão para viver a luta que ele quis. Seguir essa luta, agora, para mim, não é nada. Me agarro nos princípios que ele plantou. A luta é árdua e solitária, mas a gente não vai parar não.

BdFRS - Aliás, o então deputado Jair Bolsonaro, ao saber que pais, mães e irmãos buscavam os despojos dos parentes desaparecidos na luta contra a ditadura, afixou um cartaz na porta de seu gabinete da Câmara com os dizeres: “Quem procura osso é cachorro”. O que sentiu na época diante desse insulto?

Sônia - Fiquei muito mal, com vontade de vomitar, de dar um soco na cara dele, de muitas coisas. É muito, muito desrespeito. Ali, ele mostrou quem ele é. Não entendo como não se teve forças para bloquear esse cara. Porque ele sempre disse quem ele era. Horrível saber que a pessoa que está governando o país é a do cartaz.

BdFRS - João Carlos começou na política através da militância estudantil. Foi presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina da UFRGS. Na época, com os sindicatos sob intervenção e a oposição parlamentar no exílio, foram os estudantes que tomaram a frente no enfrentamento ao regime. Observando o Brasil atual, você percebe nos estudantes a mesma determinação de desafiar o bolsonarismo?

Sônia - Os estudantes de hoje são os filhos daqueles que viveram sob a ditadura, sem conhecer a verdadeira história do país. Se olharmos com mais cuidado, vamos ver que há muitas entidades estudantis e estudantes superarticulados e ligados na política e nas discussões. Mas se pensarmos no que seria nosso desejo, estamos longe. Os interesses são muito individualistas, os jovens estão preocupados com a sua carreira e seu futuro. Mas tem as duas fatias...


Doutor Araguaia é uma história em quadrinhos sobre a vida de João Carlos Haas Sobrinho / Divulgação

BdFRS - O Brasil vive hoje outro período tenebroso que começa a se assemelhar aos tempos da ditadura civil-militar de 1964. Qual seu sentimento ao constatar as ameaças de novo golpe, algo que se imaginava sepultado na nossa história?

Sônia - Já passamos pelo golpe de 2016, que já foi algo inimaginável. Temos que mostrar que é possível lutar para sair dessas garras. Em 2016, quando começou aquele cenário, eu pensava “Meu Deus, o meu irmão morreu para a gente poder evoluir, andar para a frente, viver numa democracia e agora tudo desmorona”... Temos que nos juntar numa força única, os indígenas, o Movimento Sem Terra, os sindicatos,para poder resistir. A homenagem ao João Carlos é uma forma de resistência. De mostrar que o passado teve um sentido.

BdFRS - Apesar da ameaça do vírus, recomeçou a retomada das ruas no Brasil. Após duas grandes manifestações, novas estão sendo programadas no enfrentamento da ultradireita. Vale a pena, como aconteceu em 1968, dizer não a Bolsonaro? Em outros termos, você acha que a esperança está nas ruas?

Sônia - Sim, a esperança está nas ruas. Eu não tenho coragem porque sou diabética e tenho várias comorbidades. Um dia desses me perguntaram “O que o seu irmão médico pensaria sobre ir para a rua durante a pandemia?” Não sei o que ele pensaria. O vírus é avassalador. Mas temos que demonstrar nossa insatisfação. Se não nos indignarmos com esse quadro, a gente está morta.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Isa Chedid e Katia Marko