Violência no Haiti

Quem são e o que querem as gangues armadas do Haiti?

Grupos armados avançam em poder territorial e capacidade operacional em um país em crise

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Protestos no Haiti - REGINALD LOUISSAINT JR / AFP

O Haiti vive há três anos uma espiral ascendente e aparentemente incontrolável de insegurança, associada à existência de mais de 77 quadrilhas armadas, segundo dados da Comissão Nacional de Desarmamento, Desmantelamento e Reintegração (CNRDDR).

A proliferação de setores armados escapa à mera existência do crime organizado e das forças repressivas do Estado, que está longe de qualquer ambição de monopolizar o exercício da violência. Vamos nos concentrar no crescente poder das gangues, como são conhecidas no país caribenho.

Tráfico de armas

Apesar dos louváveis objetivos estipulados pelo próprio nome da CNRDDR, reativada em 2016 após ser dissolvida em 2011, outra informação confirma o retumbante fracasso do governo de facto de Jovenel Moïse e do seu partido PHTK: a circulação, nessa pequena nação, de mais de 500 mil armas — das quais apenas 45 mil estão legalizadas. O número de armas ilegais dobrou em apenas 5 anos, considerando as cifras fornecidas pela Polícia Nacional em 2016.

O Haiti, é claro, não é o produtor das armas ou munições de guerra que alguns desses grupos criminosos altamente organizados exibem. A presumível origem do arsenal, segundo diversas organizações de direitos humanos, seria nada menos que o principal exportador mundial, os Estados Unidos, cuja participação no mercado mundial de armas passou de 32% para 37% no quinquênio 2016-2020, abastecendo armas para mais de 96 países, de acordo com relatórios do Instituto de Estudos para a Paz de Estocolmo (SIPRI, por sua sigla em inglês).

Essa suspeita ganhou força em 12 de novembro de 2019, quando o ex-fuzileiro naval Yves Sebastien Duroseau, de 33 anos, foi detido no Aeroporto Internacional Toussaint L'Ouverture após descer do voo 949 da American Airlines carregando três malas cheias de armas e munições.

O que é o G9?

As gangues armadas haitianas não apenas cresceram em número e em armamento, mas também em financiamento, poder territorial e capacidade operacional. As mais poderosas de todas chegaram a construir uma federação conhecida como “G9 an fanmi e alye” (o Grupo dos 9 em família e aliança), em referência aos seus nove principais líderes.

O G9 tem até seu próprio canal no YouTube e, em 7 de julho de 2020, mobilizou 50 de seus membros fortemente armados pelas ruas de Porto Príncipe, exigindo algum tipo de reconhecimento legal. Essa singular caravana de terror foi feita no mesmo tipo de veículos blindados usados pelas unidades especiais da Polícia Nacional.

Num raro gesto de firmeza por parte do poder político, o então Ministro da Justiça Lucmane Délile apelou à perseguição e prisão dos criminosos que desfilavam destemidos, em plena luz do dia, pelas ruas da capital.

Em uma coletiva de imprensa, Délile afirmou: “Sentimos que era extremamente grave que bandidos armados saíssem às ruas da capital para aterrorizar cidadãos pacíficos. O Haiti não é uma república das bananas onde os criminosos podem fazer o que quiserem. Ordeno que a PNH [Polícia Nacional do Haiti] localize esses criminosos, porque o que vi na televisão é repugnante e inaceitável. Eu não estava lá, mas estou de volta! Não vou aceitar esta piada de mau gosto”. Após as declarações, o agora ex-ministro foi imediatamente afastado do cargo pelo presidente de facto Moïse.

O grande organizador do G9, seu principal líder e porta-voz, não é ninguém menos do que um policial exonerado da Unidade de Manutenção da Ordem (UDMO), um órgão especializado da Polícia Nacional. Seu nome é Jimmy Cherizier, popularmente conhecido como Barbecue. Seu afastamento da força ocorreu após uma operação realizada em 13 de novembro de 2017 em Grand Ravine, na qual oito civis e dois policiais perderam a vida e cerca de 30 pessoas ficaram feridas.

Conivência do poder

Durante anos, organizações de direitos humanos como a RNDDH e a Fundação Je Klere, bem como um amplo arco de oposição que vai da extrema direita do ex-oficialista Youri Latortue aos movimentos sociais do campo e da cidade, denunciaram o conluio entre Barbecue, Jovenel Moïse e o partido do governo.

Assim, por exemplo, uma entrega de alimentos às populações mais humildes do distrito de Delmas realizada no início de 2020 foi coordenada pela Polícia Nacional e pelo próprio Barbecue, que foi tratado com a deferência que um líder social merece, e não como um criminoso reconhecido sobre quem pesa um mandado de prisão.

Uma investigação conjunta entre a mídia local AyiboPost e a plataforma Connectas menciona o caso do médico Jerry Bitar, cujo sequestro em 27 de março gerou um grande rebuliço nas redes sociais, uma greve de trabalhadores da saúde e até uma grande mobilização.

Dada a magnitude nacional e internacional que o caso estava começando a tomar, o Primeiro-ministro de facto Jospeh Joute assegurou que estava trabalhando para garantir a segurança de Bitar, que foi liberado logo em seguida, em total sincronia. Em um tweet que mais tarde apagaria, Joute agradeceu ao próprio presidente de facto por seu envolvimento pessoal no caso.

Em uma sorte de confissão, Moïse declarou naquele mesmo mês: "Priorizamos o diálogo, mesmo na nossa luta com bandidos e gangues (...) Eu sou o presidente de todos os haitianos, os bons e os maus". Antes mesmo do apogeu de Barbecue e do G9, o outro bandido mais procurado do país até seu assassinato, Anel Joseph, já frequentava repetidamente senadores do partido do governo, além de fugir duas vezes da prisão com suposto consentimento do poder político.

O G9 controla totalmente as áreas de Martissant, Village de Dieu, Grand Ravin, Bas Delmas, Bel Air, Cité Soleil, Fort Dimanche e muitas outras, localizadas principalmente na área central de Port-au-Prince e nos acessos norte e sul da área metropolitana, o que, na singular geografia haitiana, confere-lhe uma capacidade excepcional de isolar a capital do resto do país.

Esses territórios são centrais por vários motivos: por sua heterogênea densidade populacional — só o bairro Cité Soleil concentra quase 300 mil pessoas —; devido ao seu peso eleitoral específico na definição de qualquer eleição; mas principalmente porque são algumas das áreas mais radicalmente mobilizadas desde os tempos do governo do padre progressista Jean Bertrand Aristide.

Nos recentes grandes ciclos de protestos, surgiram multidões que enfrentaram ativamente o alto custo de vida, a eliminação dos subsídios aos combustíveis ordenada pelo FMI e o maior escândalo de corrupção da história dos país, que produziu o desfalque de um montante equivalente a um quarto do PIB haitiano.

Controle territorial e violência

Entrevistando em Bel Air alguns dos sobreviventes dos dois massacres sofridos no bairro (cuja identidade preservamos por motivos óbvios), os moradores nos contaram que durante as grandes jornadas de mobilização nacional as gangues armadas bloquearam o acesso ao bairro, impedindo a livre circulação de pessoas e ameaçando de morte a quem quisesse ir a Champ de Mars, centro político do país e epicentro dos protestos.

Além desse tipo de guetização intermitente das periferias e dos repetidos massacres — Bel Air, La Saline, Cité Soleil, Tóquio, Carrefour-Feuilles, a lista é longa — o modus operandi inclui confrontos armados com gangues rivais e o uso sistemático do sequestro como forma de financiamento.

Em 1º de junho, duas gangues rivais começaram a disputar o controle do bairro Martissant, em uma série de conflitos que continuam até hoje. Foram registradas pelo menos 10 mortes e, de acordo com Pierre Espérance, diretor da RNDDH, cerca de 10 mil pessoas foram deslocadas de suas casas nas últimas semanas. As hostilidades só cessaram no dia 6 de junho, quando o primeiro-ministro do governo de facto visitou o local, o que alimenta suspeitas de entendimento e conluio de interesses entre as gangues e o Estado.

Em relação aos sequestros, talvez seja um dos fenômenos que mais chocam a sociedade haitiana, ainda mais quando crianças e estudantes do ensino médio são suas vítimas. Seus padrões parecem ser completamente aleatórios, tendo como objetivo aterrorizar e desmobilizar o conjunto da população, que foi forçada a uma dinâmica de reclusão a partir do pôr do sol.

Foram registrados sequestros de profissionais a camponeses, de vendedoras ambulantes a policiais. As somas exorbitantes exigidas das famílias — a maioria de origem humilde — podem chegar a até US$ 100 mil. Já no ano passado os relatórios do Escritório Integrado das Nações Unidas no Haiti (Binuh) apontaram um aumento de 200% na incidência desse crime. Mas se considerarmos que o Binuh depende de fontes policiais e que a imensa maioria dos casos é resolvida entre as famílias e as gangues criminosas, sem a mediação da Justiça ou das forças de segurança, a incidência deveria ser ainda maior.

A organização Défenseurs Plus, por sua vez, calculou cerca de 1.270 sequestros ocorridos somente no ano de 2020. Mas as táticas de financiamento desses grupos deram um salto qualitativo com o saque de três armazéns localizados na Rota Nacional 1, nas proximidades dos principais portos e do terminal de Varreux, onde o estoque de combustível do país é recebido e depositado.

O que está por vir no Haiti

Em uma reviravolta tão improvável quanto inesperada, o líder do G9 apareceu em público no dia 23 de junho, em um vídeo que rapidamente se tornou viral nas redes sociais. Acompanhado por um pelotão de jovens encapuzados e armados — vários deles vestindo uniforme policial —, Barbecue anunciou o início de uma "revolução armada”, consumando assim uma virada discursiva contra o Estado, o governo e a oposição política. Usando símbolos nacionais e evocando os heróis da revolução da independência, ele convidou a população a se armar e se unir à sua organização.

Em um contexto em que o establishment nacional e internacional busca uma saída para a agonizante crise de hegemonia das classes dominantes desencadeada desde as mobilizações de julho de 2018, a performance de Barbecue permite proteger o poder político dos sinais cada vez mais claros do conivência e aliança com o crime organizado. Mas, além disso, fornece argumentos para aqueles que proclamam o estabelecimento de uma ditadura neoduvalierista que "pacifique" o país pela força ou a instalação de uma nova missão internacional de ocupação.

Com a ajuda das grandes potências, o Haiti parece estar desmoronando pelo barranco dos projetos paramilitares que já devastaram outras nações da América Central e do Caribe, promovendo o caos organizado, a insegurança estratégica e a desestruturação de todo o tecido social e comunitário, abrindo as portas a uma política de choque que consegue desmobilizar suas indômitas classes populares.