Pernambuco

CULTURA

Em mais um ano sem apresentações, quadrilhas se reinventam para continuar existindo

Werison Fidelis, da Quadrilha Junina Evolução, fala dos desafios, do combate aos preconceitos e da espera pelas festas

Brasil de Fato | Recife (PE) |

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As quadrilhas muitas vezes adentram o mês de julho com apresentações, concursos e festivais - Divulgação/Junina Evolução

Mesmo depois do mês junho, muitos locais permanecem decorados com bandeirolas juninas, com shows de artistas queridos, muito forró e com quadrilhas se apresentando, já que as homenagens ao dia de São João já extrapolam o mês de nascimento do padroeiro da festa, mas com a pandemia da covid-19, tudo isso mudou e, pelo segundo ano consecutivo, os festejos tiveram que se adaptar à comemoração em casa.

A festa de São João tem origem portuguesa e dentro da Igreja Católica, tanto que quando começou a ser celebrada no Brasil, a festa era conhecida como festa Joanina, em referência ao santo São João. Mas, à medida que passou a ter manifestações culturais não-religiosas, seu nome foi mudando com o tempo para festa junina, em referência ao mês de junho.

Uma das representações das festas juninas são as quadrilhas matutas, que tem origem em danças populares da Inglaterra, que se popularizaram pela nobreza europeia. Com o tempo, ela se popularizou em áreas rurais como uma forma de celebrar e agradecer a colheita, bem como homenagear santos populares São João, São Pedro e Santo Antônio.

E para falar mais sobre o tema, o Brasil de Fato Pernambuco entrevistou Werison Fidelis, presidente, coreógrafo e projetista da Quadrilha Junina Evolução, do bairro de Santo Amaro, no Recife. Confira

Brasil de Fato Pernambuco: Werison, que representa para você ser quadrilheiro?

Werison: Então, é muito importante pra mim, sabe? Eu fico muito feliz quando eu vejo a quadrilha já resistindo e existindo dentro de um processo de dificuldades muito grandes e quando eu olho pra todos esses anos, desde 2008 até os anos atuais, a gente tem existido se fazendo presente na cultura do bairro, inclusive, a quadrilha vai para além de só dançar quadrilha, de ser só o artístico, de preservar a cultura. Ela gera empregos, tem um trabalho social muito grande na comunidade... a gente trabalha com muito adolescentes e adultos e tem essa função de fazer com que eles se profissionalizem dentro do processo artístico. A gente gera emprego pra comunidade, inclusive, toda a produção desde o marceneiro à costureira, coreógrafo, pessoas que bordam, todas do bairro. A quadrilha vai além do que é cultura. Isso é muito gratificante pra mim, tenho muito orgulho de ter sido a pessoa que Deus escolheu pra ter a ideia e seguir com isso. E eu não sigo sozinho, eu tenho uma equipe incrível, absurdamente competente pra que a gente possa estar ainda firme nesse processo tão complicado mas prazeroso.

BdF PE: A parte que a gente, como público, vê das quadrilhas são as apresentações, mas na verdade é algo que exige muito planejamento e dedicação. Conta um pouco mais sobre como são construídas as apresentações e como é o resto do ano dos quadrilheiros e quadrilheiras.

Werison: Na verdade vocês veem apenas 30 minutos de um ano inteiro de planejamento que acontece assim que acaba o São João.A gente tem um descanso de um mês e já começa em agosto a planejar o processo do espetáculo e a partir daí começam os orçamentos de figurino, cenário, de como pode levar novidade dentro de todos esses anos que a gente já apresentou  e aí o processo é bem complicado porque não tem apoio dos empresários, das empresas que eu acho que elas deveriam olhar pra quadrilha com outro olhar pro potencial muito grande de incentivar a cultura.

O caminho é bem longo e aí vocês veem essa beleza toda em 30 minutos, mas os ensaios às vezes são exaustivos, tem ensaio que a gente começa a ensaiar 9h da manhã e acaba 23h, os sábados e domingos da gente são super comprometidos com a quadrilha, então é bem intenso.

BdF PE: Gostaria que você falasse o que é que significa esse período do São João pra você

W.F: O período do São João é lindo. É você chegar num momento e dizer 'nossa vale a pena viver um ano inteiro porque aqui agora é o nosso prazer', apesar das dificuldades, como eu já falei, a gente sente prazer porque é gratificante ofertar o que há de melhor na gente que é fazer arte e através da arte você sorri, fica bem e sai dali pensando na mensagem que o espetáculo deixa. É muito gratificante pra qualquer pessoa que faz quadrilha, que vive quadrilha, que é quadrilheiro, esse período de São João é mágico demais. A gente vive aqui uma magia que só a gente sabe como é bom viver São João. A gente conta os dias, os meses até chegar o momento da gente começar nossa temporada.

BdF PE: Com a pandemia, os festejos foram cancelados pela segunda vez e mais uma vez não vai ser possível reunir pessoas para essa festa tão típica da nossa cultura. Como as quadrilhas estão sendo impactadas pelo cancelamento neste ano? algo mudou de 2020 para 2021?

Werison: A gente sofreu um impacto muito grande, tanto financeiro, no sentido de que as apresentações pela prefeitura pagam um cachê pra gente dançar; as competições nos festivais que também geram uma grana que é investida na própria quadrilha e também o impacto mais íntimo nosso pelo amor que a gente sente à quadrilha. Estar sem o São João para o quadrilheiro é muito triste, a gente teve que se renovar. A gente se adaptou às lives, tem produzido conteúdo no Instagram pros nossos fãs porque eles querem saber o que está acontecendo, como é que a gente vai fazer. A gente inclusive ta com um projeto no Instagram  que é o "Intercâmbio junino", onde a gente junta pessoas de alguns estados e discute como está sendo esse processo de pandemia junto com eles. Se juntaram os coreógrafos de quadrilhas, projetistas, as rainhas, enfim, tudo isso. Então, impactou nesse sentido mas também a gente teve que se reinventar e se adaptar ao que é viável, que são as lives, os encontros online e tem sido assim, mas é muito triste pra gente que dança quadrilha e ama o São João.

BdF PE: Além de ser o mês do São João, junho também é o mês do orgulho LGBT e as quadrilhas são espaços em que vemos a diversidade muito bem representada, com a presença de travestis, transexuais, homossexuais e bissexuais. Para você, qual o papel da quadrilha no combate à LGBTfobia?

Werison:  A quadrilha tem um papel importantíssimo, ela é antes de tudo um ambiente, um brinquedo que acolhe. Dentro da quadrilha você é visto como pessoa. A gente vê o artista, vê a pessoa que ama fazer quadrilha. Então dentro da quadrilha você vai ser gay, você é lésbica, você é travesti, é transexual e vai ser tratado do mesmo jeito, a gente não tem essa assepsia de pessoa, a gente não tem essa separação. Trazendo essas pessoas, esse público pra dentro da quadrilha, dentro de um brinquedo que consegue falar através dos nossos espetáculos, denunciar através das músicas, das danças, dos movimentos e fortalecer a importância de respeitar antes de tudo as pessoas como elas são e como elas decidiram ser, a quadrilha tem isso muito forte.

Inclusive na Junina Evolução eu sou gay, tem muita gente que dirige a quadrilha comigo que também são LGBTs e isso é importante demais, ninguém deixa de ser respeitado. Quando apresentamos o espetáculo e o pessoal olha e vê a arte ali antes de qualquer coisa é muito muito gratificante, de verdade. Então eu fico muito feliz de verdade quando tem esse espaço de falar sobre a importância de respeitar a pessoa como ela é e usar a quadrilha, a arte, o entretenimento pra falar disso dentro do espetáculo. Inclusive, no nosso último espetáculo em 2019 falamos sobre a Missa do vaqueiro e trouxemos a referência da bandeira LGBT dentro do espetáculo, a gente tem um beijo gay, que não é uma coisa inédita, porque já teve na quadrilha Tradição que foi uma coisa muito inovadora e aí a Evolução veio também com isso porque dentro do tema pedia isso e cada vez que a gente pode fortalecer isso, fortalecemos. Lá na Missa do Vaqueiro quando tem a bandeira de cada estado tem também uma bandeira LGBT e eu acho importante isso.

BdF PE: A Quadrilha Junina Evolução é de uma região muito estigmatizada da cidade, o bairro de Santo Amaro, que é uma região de muita história e muitas vezes é olhado com muito preconceito, mas é um berço de luta popular e produção cultural. O que representa para a comunidade ter um grupo que leva a cultura pernambucana para os quatro cantos do país?

W.F: Eu sou extremamente orgulhoso, apesar de realmente ter que concordar quando você fala desse preconceito que gira em torno de Santo Amaro. Eu também não sou só quadrilheiro, sou passista e professor de frevo e junto com o frevo eu pude viajar mais de 10 países, então assim, levar Santo Amaro para o mundo é muito gratificante e aí dentro desse processo de quadrilha quando ganhamos o primeiro título do concurso Rede Globo Nordeste que é o maior concurso para os quadrilheiros, esse título pra Santo Amaro é muito gratificante, é denunciar e dizer 'abram os olhos que Santo Amaro não só tem o que vocês noticiam'. Aqui tem gente que trabalha muito, tem dono e dona de casa que acordar 4h da manhã pra poder dar dignidade ao filho, aqui tem muito artista seja no passinho que é um berço muito forte, mas que é discriminado só que nós temos uma referência absurda do pessoal que produz essa dança que também é cultura embora o povo discrimine.

Santo Amaro é muito rico e as pessoas precisam conhecer, falar de Santo Amaro aqui seria muito pouco, a gente tem pouco tempo pra poder falar da grandiosidade daqui, então quando eu me vejo dentro como um referência de "uma pessoa que deu certo" eu fico muito orgulhoso porque aí eu posso também através de tudo isso, da minha arte, da minha vivência, da minha vida e coragem mesmo, conseguir trazer as pessoas pra produzir cultura e cada vez mais potencializar essa arte, esses talentos que tem aqui. Vários talentos que a sociedade as vezes invisibiliza por falta de oportunidade e aí a gente vai nessa luta toda querendo realmente fortalecer o nome do bairro que aqui não é só isso que o povo fala e eu sou prova viva disso, eu tenho muito orgulho de verdade de poder cada vez mais levar o nome de Santo Amaro pro topo.
 

 

Edição: Vanessa Gonzaga