Pernambuco

ENTREVISTA

1ª vez que eu vi uma travesti na vida foi em cortejo de maracatu, lembra Malunguinho

Recém-eleita procuradora-adjunta da Procuradoria Especial da Mulher da Alesp, Malunguinho defende as ações performáticas

|
A deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL-SP) - Divulgação

Depois de ter conseguido mobilizar 32 assinaturas, em abril, para barrar o projeto de lei 504/2020, que pretendia proibir publicidade com alusão à diversidade sexual e de gênero no estado de São Paulo, Erica Malunguinho (PSOL-SP) tomou posse, no último dia 8, como procuradora-adjunta da Procuradoria Especial da Mulher da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). A deputada estadual, que foi a primeira mulher trans eleita para uma casa legislativa estadual no Brasil, inaugura também a representatividade no novo posto.

A Procuradoria foi criada em 2011 e tem a função de fiscalizar e acompanhar a execução de programas do governo estadual que visem à promoção da igualdade de gênero, assim como a implementação de campanhas educativas e antidiscriminatórias. No cargo recém-assumido, Malunguinho pretende "pensar em políticas públicas para os espaços escolares, culturais e a própria comunicação oficial do governo, de modo a combater a violência doméstica, a violência em relação às mulheres", diz ela.

Em conversa com a Diadorim, a parlamentar comenta casos de LGBTfobia e machismo institucionais que tem sofrido, avalia a situação do PSOL e faz uma análise sobre os desafios da esquerda brasileira nas próximas eleições. Para ela, "além de derrotar Bolsonaro", cabe ao campo progressista eleger "parlamentares que estejam radicalmente organizados e combativos" em relação às ameaças aos direitos das pessoas. "Colocando cara na pobreza, é importante colocar cara nos assassinatos, é importante colocar cara na falta de acesso à saúde, educação, ao transporte público."

Nascida em Pernambuco e morando há 20 anos em São Paulo, Erica Malunginho também fala sobre o episódio em que duas pessoas foram gravemente atingidas por tiros da Polícia Militar pernambucana, em maio, durante manifestação contra o governo Bolsonaro. “O genocídio, os assassinatos, a política de repressão está acontecendo no país inteiro”, observa.

Com pesquisa e atuação em ações performáticas que afrontavam as estruturas de poder, Malunguinho também defende a importância da salvaguarda e presevração da cultura popular como forma de investimento na história e na coletividade. "A cabeça que eu tenho foi forjada numa infância construída com muita profusão de cultura, de estética, de realidades, que foi me expandindo pro mundo", lembra. "A primeira vez que eu vi uma travesti na minha vida foi num cortejo de maracatu. Desde criança eu tive acesso a orquestra. Orquestras populares, as orquestras de frevo, com inúmeros instrumentos."

AGÊNCIA DIADORIM – Deputada, a senhora tomou posse como procuradora adjunta da Procuradoria Especial da Mulher na Alesp, e é a primeira mulher trans neste posto. Qual é a função desse órgão e o que a senhora pretende pautar nesta atuação?

ERICA MALUNGUINHO – Vamos tentar começar do princípio. Eu sou a primeira trans numa Assembleia Legislativa no país. E aí a gente tá tratando de questões do bloqueio institucional que impediu que pessoas trans fossem eleitas no processo histórico; mas uma vez isso acontecendo, as instituições assimilam essas identidades dentro dos seus espaços.

Estando numa casa legislativa — não é diferente das outras no país — que pauta e que tem ações LGBTfóbicas, projetos de leis, etc., ter o reconhecimento da própria casa neste lugar, que seria atribuição de mulheres cisgêneras, é extremamente simbólico. Obviamente, eu não estou colocando isso no lugar de agradecimento, de reconhecimento, mas tentando aqui expandir a dimensão simbólica disso. A institucionalização da mulheridade trans, sabe? Porque é um trabalho da Alesp que é gerido por mulheres. Então quando eles me nomeiam sem que eu faça nenhum esforço pra isso, inclusive, eles estão objetivamente institucionalizando e dizendo para a própria Alesp e para sociedade que é possível, né? Óbvio que eles estão seguindo as legislações, não estão fazendo mais do que o dever de assimilar as identidades trans, conforme o que as decisões tomadas nas últimas décadas, judicialmente, já apontam. Mas isso é importante a gente enfatizar, da mesma forma que eu faço questão de fazer a denúncia quando a LGBTfobia está presente.

A Procuradoria da Mulher é responsável por fiscalizar as ações do executivo estadual em relação ao recorte específico de igualdade de gênero e das violências dirigidas às mulheres. Esse é o grande pilar da Procuradoria da Mulher. E uma das nossas ações, que está programada, é fazer uma investigação sobre as violências de gênero ocorridas com as parlamentares nesses últimos meses.

DIADORIM - A situação das mulheres vítimas de violência doméstica se agravou durante a pandemia. O que deve ser feito para combater essa situação e como você pretende atuar, nesse sentido, na procuradoria?

MALUNGUINHO – Olha, vou ser bem sincera, a gente acabou de ser nomeada. Então não tem nada muito definido em termos de ação, a primeira causa é resquício da nomeação passada, da questão da violência em relação às parlamentares. O que eu posso dizer é que individualmente, eu já vinha fazendo isso. Por exemplo, teve um projeto da covid-19, apelidado “covidão”, que foi aprovado, no qual a gente insere que as mulheres possam receber um auxílio quando vítimas de violência doméstica. E aí, obviamente, eu fiz a inserção das mulheres trans nesse auxílio. O projeto foi aprovado, mas não foi sancionado pelo governador. A gente tem atuado frontalmente em relação à violência de gênero, em diversas frentes, no sentido de acolhimento de denúncias e encaminhamento aos órgãos responsáveis para fazer as investigações e dar os encaminhamentos necessários.

Uma coisa importante, também, é que nesse mesmo processo da pandemia, conseguimos que mulheres trans fossem atendidas pela Delegacia da Mulher. Foi uma conquista bem importante. É uma coisa que a gente já vinha brigando havia muito tempo e recebi essa notícia do líder do governo no ano passado, ele falou “aqui, ó, conseguimos, deu certo, consegui, é pra você”.

Outra questão é que — não tratando exatamente do fazer político, mas de uma análise desse panorama — o aumento da violência contra as mulheres diz respeito também a uma fragilidade das legislações que nós temos vigentes, né? A gente tem uma “lei” antiLGBTfobia, a gente tem uma lei que protege as mulheres — a Lei Maria da Penha —, uma lei que criminaliza o racismo, mas ao mesmo tempo que a gente tem essas salvaguardas, do ponto de vista jurídico, a gente tem um crescimento exponencial dessas violências. O que significa que, além de as instituições estarem fragilizadas, se não houver um pacto social profundo, e políticas afirmativas na escola, em espaços culturais, e que se torne uma política de governo, pouco a gente vai avançar nesse sentido. As leis servem para salvaguardar e não para pensar apenas numa punição caso aconteça uma situação de violência, mas para que essas situações não aconteçam.

Essa é uma questão que eu tenho levantado não só na minha mandata, mas tenho trazido também para a Procuradoria, de como pensar em políticas públicas para os espaços escolares, culturais e a própria comunicação oficial do governo, de modo a combater a violência doméstica, a violência em relação às mulheres. Usar diversos veículos para que isso chegue a um lugar de consciência, alcance o maior número de pessoas. Que isso possa ser distribuído nos metrôs, nos trens, ônibus municipais, estaduais, interestaduais, enfim, que que isso tome uma dimensão de uma campanha gigante. Que não saia do nosso cerne enquanto esses números não forem reduzidos.

Da mesma forma, é muito importante a luta por um auxílio emergencial que garanta algum grau de emancipação dessa mulher em relação à violência doméstica, uma vez que ela, muitas vezes, está submetida também à dependência econômica, muitas vezes

Foto: Reprodução/Instagram

DIADORIM - Você foi múltiplas vezes ofendida com ataques transfóbicos durante o exercício do seu mandato. Outras parlamentares transexuais também têm sido ameaçadas e sofrido violências. Você considera que a Alesp tem feito o suficiente para coibir esse tipo de postura e garantir a sua segurança?

MALUNGUINHO – Em relação à segurança pessoal, eu posso dizer que sim, porque isso foi uma demanda assim que eu assumi a cadeira. Eu recebi ameaças muito sérias em relação a minha casa, ao meu domicílio, um e-mail, descrevendo onde eu morava, a porta do meu apartamento, as escadas do prédio. Eu me mudei rapidamente, obviamente, e recorri à Alesp. A casa ofereceu escolta, que eu dispensei, mas aceitei as demais propostas que foram oferecidas, em relação a outros tipos de proteção, sobre as quais eu prefiro não falar por questões de segurança. Então, em relação à segurança pessoal, as minhas reivindicações foram prontamente atendidas, não posso dizer o contrário.

Em relação a coibir as práticas discursivas, a transfobia no verbo, isso não aconteceu. A única coisa que aconteceu foi uma uma advertência, assim que eu entrei, contra o deputado que falou que tiraria a travesti a tapa do banheiro. Este foi pro conselho de ética. Inclusive, eu inaugurei a quebra de decoro parlamentar na Alesp [representando o referido parlamentar]. Depois disso, todo mudou faz processo por quebra de decoro, a travesti ensinando (risos). Embora pareça uma sanção leve, foi histórico um deputado ser advertido por conta de uma fala transfóbica.

No que se refere às outras falas, não se coíbe, absolutamente, isso não acontece. Ao final da situação que culminou na suspensão do deputado Fernando Cury, do assédio em relação à deputada Isa Penna, o presidente da casa fez uma fala sobre gênero, raça, tolerância etc., mas isso não se afirma na prática.

Porque, inclusive, eu não sei o quanto eles compreendem a dimensão da violência, o quanto estou sendo violentada quando, por exemplo, dizem que querem proteger as crianças aprovando um projeto de lei que dize que LGBTs são má influência ou que exercem práticas danosas. Ou quando dizem “homem que se sente mulher” ou “mulher que se sente homem”; ou quando diz assim, de forma bem grotesca, “transformers”, ou dizer que “homem com homem só gera bucho de chope”. Então, assim, esse tipo de LGBTfobia recreativa, ela não é qualificada como violenta. Eu preciso reivindicar isso a todo momento porque não há repertório sensível, em termos do que viola a nossa saúde emocional, nossa integridade emocional. Não há nenhuma prática da instituição nesse sentido. O que acontece sou eu “pedagogizando” continuamente o debate político.

DIADORIM - Em abril, acompanhamos a votação, na Alesp, do PL 504, que queria censurar publicidade com LGBTIs em São Paulo. E o projeto voltou para discussão interna, com sua articulação. Em que pé está agora essa discussão? Esse PL serviu de alerta para outras pautas semelhantes que podem avançar na Alesp?

MALUNGUINHO – Olha, até agora há um silêncio sepulcral sobre o PL e sobre outras propostas que eu já venho combatendo ali internamente. Tem um processo de tramitação que é burlado, na Assembleia, para dar celeridade à aprovação de projetos de deputadas e deputados. O que acontece é que a Alesp passa a maior parte do tempo respondendo às demandas do governador do estado. Então há uma disputa grande, uma queda de braço muito forte para que os nossos projetos possam entrar em pauta. Tem uma lista que percorre os gabinetes por meio da qual a gente vai decidindo as urgências. E aí, é nesse pulo que de repente um projeto que tá lá no processo de inicial, para ser aprovado na comissão de constituição justiça, por exemplo, chega rapidamente no plenário, né? Então tem essa questão que torna tudo nebuloso.

Eu posso dizer que os projetos LGBTfóbicos, agora, estão parados, não estão caminhando na casa. Há um silêncio em relação ao 504, e eu acredito que ele não tem chance de voltar nos moldes em que ele estava escrito, nem de longe. Porque a gente teve um apoio muito grande internamente também na Alesp, a ponto de conseguirmos 32 assinaturas, que é um número razoável para uma emenda — o mínimo é dezenove. Então, eu vejo que ele não tem força política para caminhar.

Mas é importante dizer que esse projeto está se ramificando no país. A gente já tem assembleia [legislativa] do Ceará, do Espírito Santo, de Minas Gerais e não lembro qual outro estado, talvez Pernambuco... A ousadia é tão grande que até a Câmara Municipal de Fortaleza protocolou [um projeto semelhante]. Olhem só, para a gente entender a dimensão política de um projeto LGBTfóbico, que é meramente política e de interesses, de colocar essa disputa no debate público. Ele foi derrubado na Alesp, inclusive por questões gravíssimas de inconstitucionalidade, além dos possíveis impactos sociais, mas ainda assim, foi distribuído para outras assembleias. Numa nítida missão de fazer com que esse movimento anti-LGBT se dissemine no país.

Não é uma coisa exclusiva do Brasil, a gente tem acompanhado que existe aí uma movimentação [LGBTfóbica] crescente do ponto de vista global. A Hungria acabou de aprovar um projeto semelhante ao [PL] 504, e os Estados Unidos também têm protagonizado muitas investidas LGBTfóbicas, e isso corresponde a um interesse político, a uma disputa política e como ela se disseminou no país também. Obviamente eu não deixei isso quieto. Eu oficiei essas assembleias legislativas para, além de contextualizar toda a luta política acontecida aqui em São Paulo, compartilhar a emenda que propus em plenário, apontando todos os traços de inconstitucionalidade do projeto. Enviei também para os parlamentares dessas mesmas casas. E para os presidentes das comissões de direitos humanos.

Essa batalha que aconteceu aqui em São Paulo e que gerou essa disseminação no país também está sendo enfrentada nos outros estados. Oferecemos todo esse histórico para que a gente não precise chegar a ponto de ter que debater isso em plenário novamente, porque a gente sabe que é um projeto morto por por sua própria natureza, a começar pela competência em legislar sobre a pauta da publicidade, que é de competência da União e não de estados e municípios. Então, começa por aí, além de ferir princípios e direitos fundamentais básicos, né?

Foto: Reprodução/Instagram

DIADORIM – Você é um dos principais quadros do PSOL paulista atualmente. Como você acha que o partido deve se posicionar nas eleições estaduais, deve lançar candidato próprio ou apoiar outro nome na esquerda? Quais são os desafios da esquerda no estado?

MALUNGUINHO – Olha só, essa pergunta é bem complexa. Falando sobre uma análise de conjuntura e rearranjos políticos internos, do ponto de vista político-partidário, é óbvio que eu preciso, em muitas medidas, seguir as decisões que forem tomadas pela maioria dentro do partido, mas isso não destitui o meu posicionamento ou minha opinião, o que penso sobre o tema.

A gente deve assumir um ponto focal de destituição do bolsonarismo e tudo que ele representa no país. E esse ponto focal, pra mim, é muito mais relevante, muito mais importante do que qualquer disputa do ponto de vista político-institucional, no sentido de ter mais cadeiras, ter mais pessoas eleitas desse partido ou daquele. Acho que esses egos político-partidários devem assimilar de uma vez por todas o compromisso e a responsabilidade com a sociedade. Então assim, eu não tenho decisão sobre isso, mas penso que isso é o que é mais importante, independente se é minha candidatura ou de outra pessoa, se vai ser para este partido, se vai ser para outro, o que me importa é destituir o bolsonarismo, que representa tudo que há de mais nefasto em termos de humanidade.

E eu não falo só no país, mas em termos de civilidade, né? Numa dimensão de civilidade, que é bem maior. Eu vejo que a gente tem que estabelecer esse pacto de derrubada, de enfrentamento ao bolsonarismo, a essa extrema direita. E para isso precisa ceder, fazer concessões e o que for mais necessário para viabilizar as candidaturas, materializar isso dentro das assembleias legislativas, da Câmara Federal, dos poderes executivos.

Tem uma questão que é importante: a gente aprender com a história. A gente reconhece a história e uma das coisas que a gente mais critica nessa direita é o negacionismo. E a gente não pode agir de forma negacionista em relação à própria história. Então a gente tem um registro histórico de um país fundado na violência racial e de gênero. E é a partir disso que se organizam os processos de sociabilidade, distribuição de poderes e vulnerabilidades. Não olhar para isso de forma objetiva é negar a própria história de construção deste país.

Então o desafio da esquerda é, além de derrotar Bolsonaro, o que vamos colocar no lugar se não um governo e parlamentares que estejam radicalmente organizados e combativos em relação a essas violências? Entendendo que é isso que fundamenta as desigualdades, né? Colocando cara na pobreza, é importante colocar cara nos assassinatos, é importante colocar cara na falta de acesso à saúde, educação, ao transporte público.

A gente precisa dizer e pensar quem são essas pessoas que foram destinatárias dessas violências de forma tão nevrálgica, dessas desigualdades. Colocar a cara significa entender que raça e gênero organizam esse projeto de desigualdade e o desafio da esquerda é exatamente colocar isso como centro das discussões.

Bolsonaro foi eleito num vácuo, né? Num hiato, num vazio que foi criado em relação ao antipetismo e uma terceira via. Ele entra nessa brecha e reconhecer isso de modo que não se repita nessa próxima eleição é fundamental. Então cabe uma sensibilidade política, uma resiliência política que é urgente para que a gente não construa novamente esse vácuo, esse hiato, e Bolsonaro se reeleja. Porque esse país não aguenta mais um governo Bolsonaro.

Sem dúvida isso ainda precisa ser construído, isso está em construção. Mas a questão dos egos, da resiliência, que é fundamental nesse momento, precisa ser aprofundada e trabalhada melhor. Eu acho que precisa se aprofundar, entender que isso é um pacto contra a barbárie e não a ascensão de uma sigla ou protagonismo de uma sigla. O protagonismo é a humanidade, a sobrevivência deste país.

DIADORIM – A senhora pretende se lançar candidata a deputada federal, em 2022?

MALUNGUINHO – Sobre a minha candidatura, eu estou à disposição da luta. Estou à disposição do processo de radicalização da democracia, de aprofundamento dos debates e, onde isso for cabível e onde for necessário, eu estarei presente.

DIADORIM – Recentemente, o PSOL perdeu um quadro de bastante representatividade para as pautas da população LGBTI+, o ex-deputado federal Jean Wyllys. Qual é a sua opinião sobre essa saída?

MALUNGUINHO – O que a gente mais vê na política institucional são rearranjos, né? Significa um baque na política do PSOL o [Marcelo] Freixo ter saído? Significa um baque no PT [Luiza] Erundina ter saído de lá e estar no PSOL? Eu acho que esses arranjos acontecem. Eu acho que tem perdas, obviamente, mas tem ganhos. Pensando numa questão que diz respeito àquele pacto que estava falando, em relação ao campo progressista, isso transcende o diminuto lugar de um partido. Se o Jean [Wyllys] — que a gente sabe, é uma pessoa comprometida, pelos seus princípios, com a sua luta e a luta da comunidade LGBT, independente de onde ele esteja — não está indo para um lugar reacionário, conservador, isso não diminui em nada o papel dele, o lugar dele e a importância dele.

Da mesma forma, também não fragiliza o PSOL, no sentido de que também há outras lideranças, pessoas e militantes que estão adentrando o partido. Então eu vejo como um rearranjo de forças natural e que está dentro de um campo progressista comum.

Acho que é importante o amadurecimento da ideia de que as lutas fundamentais transcendem o lugar partidário. Óbvio que as lutas que estão relacionadas ao rompimento das violências, das desigualdades, estão historicamente com o campo político da esquerda, e eu não vejo como esse deslocamento pode gerar um um conflito, sabe? Porque se o que, de verdade, estamos combatendo é a violência, as desigualdades, etc. e tal, o que importa é isso. Não importa quem, não importa qual [sigla]. Não trabalhamos com esquerdas, não trabalhamos com marcas, não trabalhamos com isso. A gente trabalha com projetos políticos radicais e comprometidos.

Foto: Divulgação

DIADORIM – Dois homens foram gravemente atingidos por tiros da polícia militar em Pernambuco, em maio, durante em ato contra o presidente Bolsonaro. Uma vereadora também foi agredida. A senhora, que é pernambucana, tem acompanhado esse caso? Como avalia essa situação?

MALUNGUINHO – Olha, novamente, eu jamais vou olhar para um fato de forma isolada. Eu jamais olho algum acontecimento e destituo ele de um processo histórico, de um processo evolutivo. Então pensar na violência policial é pensar na política de segurança pública que a gente tem no país. A gente tem uma polícia que foi construída ali no regime militar que tem sérios resquícios, senão totalidade, de uma forma de atuação que diz respeito à brutalidade, ao cerceamento e à opressão.

Antes disso, a gente tem uma política histórica de encarceramento da população negra e pobre, baseada e substanciada pela legislação, no pós-abolição, com a lei da vadiagem, por exemplo. E a gente tem aí uma polícia, uma política de segurança pública, que foi construída ideologicamente para o encarceramento e para o genocídio, especificamente em relação à população negra, pobre, periférica, etc. Após a abolição, a gente vem para a Ditadura Militar, a gente vem para, quarenta anos depois, o movimento negro unificado denunciando o genocídio da população negra. Então isso não é novo, não é recente, isso é uma pauta histórica do movimento negro.

Não podemos esquecer das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) que estiveram no Rio de Janeiro e que foram denunciadas, inclusive, pela Marielle [Franco], no livro dela, né? Que era a dissertação de mestrado dela. E isso nós não estávamos no governo bolsonarista. Então vamos acompanhar esse histórico para a gente ver como é isso. Já tem lastro na história política do país. E que se intensifica à medida que você tem um chefe de estado comprometido, diretamente, com essa forma de fazer poder, de exercer poder, que é baseada na opressão, na repressão, no armamentismo, etc.

O que aconteceu com a polícia em Pernambuco, eu não consigo dissociar disso. Eu não consigo dissociar, por exemplo, de projetos em tramitação no Congresso Nacional que estão falando sobre autonomia das polícias civil e militar. Isso, em termos de discurso político de um chefe de estado, ressoa nas corporações. E quando o governador do estado de Pernambuco diz, até hoje, que não sabe de onde veio a ordem para a polícia agir daquele jeito, é um sintoma muito nítido dessa autorização que o chefe de estado do Brasil, do poder executivo federal, vem soprando dentro nos bastidores da política institucional.

Então você tem uma polícia que está, em continuidade de um processo histórico que vem desde o pós-abolição, autorizada, a partir do chefe máximo da nação, a produzir essas rebeldias, a fugir dos tratados constitucionais. Porque está na constituição, né? A polícia está submetida ao poder do chefe executivo estadual. Então quando há um rompimento dessa hierarquia, também demonstra a fragilidade das instituições que o governo Bolsonaro vem intensificando no decorrer desses anos.

Essa história de Pernambuco tem um histórico da própria história da polícia no Brasil, que ganha novos ares num projeto político genocida de Bolsonaro. Não foi só em Pernambuco, está acontecendo no Brasil inteiro. O genocídio, os assassinatos, a política de repressão está acontecendo no país inteiro. A gente tem dimensão de algumas situações, o que acaba chegando pelas mídias, mas isso é uma prática recorrente. E tem se intensificado. Isso toma uma proporção diferente quando ocorre em uma manifestação, um ato democrático, e fere a liberdade de expressão. Mas a liberdade de expressão do povo preto, favelado, está cerceado desde sempre, o direito de ir e vir.

DIADORIM – Apesar de estar em São Paulo há 20 anos, a senhora mantém forte ligação com seu estado natal, pela política e, principalmente, pela cultura. Como a cultura popular pernambucana está presente na sua atuação?

MALUNGUINHO – Uma impressão que eu tenho, desde que estou aqui, que, por exemplo, eu sinto Pernambuco — e aí, principalmente a capital e a região metropolitana — muito mais antenado em termos de cultura musical, de dança, de política e etc., do que São Paulo. E, assim, eu acho que isso é um registro que eu consigo localizar desde o próprio regime militar, que em Pernambuco teve o maior número de presos políticos, proporcionalmente falando. A insurgência do Manguebeat e toda a profusão cultural que coloca Pernambuco na vanguarda, né? Então, sem querer puxar sardinha ou ser bairrista: as pessoas olham pra mim e querem me colocar como uma imigrante que ascendeu em São Paulo. E pra mim não existe isso, eu corto logo essa ideia, porque tudo que eu sou diz respeito a Pernambuco. A cabeça que eu tenho foi forjada numa infância construída com muita profusão de cultura, de estética, de realidades, que foi me expandindo pro mundo. Então acho isso muito fundamental de pontuar.

Eu tenho muita esperança, mesmo, nessa prática, na cultura pernambucana, na forma de existir pernambucana — que, óbvio, tá ali, agora, muito cerceada por um poder público cada vez mais tolhedor, no âmbito do estado, da capital e também do próprio país. Mas a potência do lugar que faz festa daquele jeito e que faz política daquele jeito não é comum e não é qualquer coisa.

A primeira vez que eu vi uma travesti na minha vida foi num cortejo de maracatu. Desde criança, eu tive acesso a orquestra desde criança. Orquestras populares, as orquestras de frevo, com inúmeros instrumentos. Então, ver as pessoas se fantasiando também, mas não só isso, dedicadas ao fazer da cultura, à música como elemento mediador, esculturas pretas, indígenas, se atravessando fortemente em termos de sonoridade de visualidade, isso é muito poderoso. E aí entendo o papel da arte e da cultura como um lugar crucial da formulação das nossas subjetividades, da capacidade de expansão, que a gente tem para compreender o mundo, para fazer sinapses e construir a própria dimensão do conhecimento. A gente fala tanto da importância da arte e da cultura dentro dos espaços institucionais e esquece da que está acontecendo de forma viva no cotidiano e acontecendo. E aí assim, isso alarga um caminho, né, alarga um caminho mental, intelectual, que não tem como a fé se espremer, né?

Todo o Brasil se reconhece como tal a partir disso que conhecemos como cultura brasileira, que foi entregue de forma muito generosa por povos que receberam violência e abjeções em processos históricos de eliminação. Esses povos devolveram a significação da cultura brasileira. E isso é muito importante. Então quando eu tô falando de identidades culturais desses inúmeros territórios, eu tô falando, além da questão do reconhecimento, da própria demarcação histórica, de que somos pessoas, obviamente, de que somos uma comunidade, coletividade, que tem historicidade. Por que um povo sem história é um povo dominado, né? Um povo que se domina, que se apaga e que não reivindica a si mesmo.

Como é que o poder público e a própria sociedade reagem de modo a salvaguardar e a preservar isso? A gente tem que entrar nessa dimensão política das políticas culturais de investimentos, porque é um investimento na sua própria história, investimento no sentido da sua própria vida, da sua própria coletividade, desses territórios. Então falar sobre culturas populares é também pensar em políticas de investimento, de investimento material, econômico, investimento econômico. E aí a gente tem que citar, nesse aspecto, políticas importantes, como os pontos de cultura, que foram fundamentais para a descentralização da institucionalização, da cultura, né? Órgãos que são importantes de preservação do patrimônio, diversos espalhados no país, mas também do ponto de vista estadual, mas também do ponto de vista da federação. Esses dispositivos, essas instituições, elas são importantíssimas para a preservação disso tudo. E as políticas culturais devem agir nesse sentido, junto com elas e potencializando. Essas culturas, esses fazeres, essas pessoas são trabalhadoras, elas trabalham para preservar a cultura, e reconhecê-las como tal é importante. Não precisa ser cortador de cana e ser um caboclo de lança no carnaval. Ele pode trabalhar apenas pela cultura, ser reconhecido como um trabalhador, uma vez que esse país se nutre, se alimenta de cultura.