ECONOMIA

Artigo | Plano Biden e os impactos para o Brasil

Plano Biden consiste em um conjunto de medidas e volumosos  investimentos públicos em infraestrutura

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, conduz plano que prevê aumento significativo de investimento público - Saul Loeb / AFP

O “Plano Biden” consiste em um conjunto de medidas e volumosos  investimentos públicos em infraestrutura que pretende fortalecer a capacidade industrial-tecnológica dos Estados Unidos, inclusive com vistas à transição para uma economia de baixo carbono.

Além disso, há a promessa de fomentar políticas redistributivas no país para diminuir as desigualdades sociais e valorizar o papel dos sindicatos. Nesse artigo serão explorados os potenciais impactos sobre o Brasil em seis dimensões.

Pleno emprego e inflação no radar

A primeira dimensão a ser tratada diz respeito aos fluxos financeiros. Diferentemente do que acontece no Brasil neste momento, o aumento do investimento público e o papel de coordenação do Estado são marcos do Plano Biden. Nota-se uma política fiscal expansionista ambiciosa (isto é, aumento dos investimentos públicos). O Estado, que foi visto por muitos anos como parte do problema, agora é visto como parte da solução.

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A primeira parte dos planos mal foi aprovada e já começou o debate entre economistas sobre o impactos macroeconômicos. Por um lado, aqueles com proximidade com teorias mais ortodoxas, como Larry Summers, vêm insistindo para o fato de que o plano Biden pode acelerar a inflação no país.

Caso o Plano seja implementado nos moldes atuais com sucesso, é provável que haja um aumento da inflação de demanda no país. Isto é, considerando o potencial do Plano de levar o país a níveis próximos do pleno emprego e o aumento do consumo das famílias.

Assim, o aumento dos preços nos EUA será reflexo das políticas de redistribuição de renda e da redução da mão de obra ociosa. Desse modo, a inflação nos país terá caráter diferente da que observamos no Brasil no momento, que decorre, sobretudo, de um choque de oferta e alta do câmbio.

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Observe, porém, que o próprio Banco Central dos EUA (FED) considera tratar-se de uma normalização dos preços que teriam ficado muito deprimidos por causa da pandemia e falta de crescimento econômico. É normal que haja, nesse processo de ajuste dos preços, um pico inicial.

Mas os mercados podem apostar contra a capacidade do FED de manter o aumento dos preços dentro de uma margem aceitável sem aumentar os juros. E, portanto, será preciso ter atenção às eventuais medidas que o FED pode implementar em algum momento não muito distante.

Caso haja um aumento ou mesmo a perspectiva de aumento da taxa de juros básica nos EUA, este pode provocar uma saída de fluxos financeiros do Brasil rumo aos EUA. Isso deve pressionar o câmbio aqui e tende a provocar um aumento dos juros básicos (Selic) no Brasil.

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Os mercados podem até se antecipar a expectativas com relação à política do FED, pois os títulos públicos americanos possuem maior liquidez e apresentam maior segurança aos investidores, sendo, portanto, preferíveis caso o prêmio (juros) seja semelhante nos EUA e em um mercado emergente. Logo, para evitar a fuga do capital especulativo, de caráter curto-prazista, o Comitê de Política Monetária (Copom) tende a optar por um aumento dos juros básicos aqui.

De outro lado, pode ocorrer um movimento contrário. Um excesso de liquidez nos EUA, com muito dinheiro em circulação, faz que nem tudo seja direcionado para investimento produtivos e em infraestrutura, mas que uma parte opte por se valorizar no circuito financeiro dentro e fora dos EUA. E aí o Brasil entra na mira.

Ou seja, o efeito contrário ao descrito acima. É bom receber esses fluxos com aumento de aplicações na bolsa de valores e fundos de investimento? Não necessariamente, porque o problema é sempre sua volatilidade. E os agentes econômicos precisam de previsibilidade e estabilidade para planejar seus investimentos produtivos.

Ambos os exemplos mostram como a economia brasileira está interligada à americana pelas decisões de investimentos do capital financeiro, que se movimenta pelo diferencial de juros que possa compensar ou não o maior risco. E investimentos de trilhões nos EUA mexem de uma forma ou outra com esse processo. Mas há várias outras dimensões como vamos ver em seguida.

Pleno emprego no Norte e falta de perspectiva no Sul: a imigração de brasileiros para os EUA

Uma segunda dimensão é a migração. Como mencionado na seção anterior, é possível que, em virtude do plano Biden, a economia estadunidense alcance níveis próximo ao pleno emprego.

Assim, as novas oportunidades reais e imaginárias tendem a incentivar a migração. Junta-se a isso o fato que, em contraste com o governo Trump, a administração de Biden, em um primeiro momento realizou uma reforma migratória que flexibiliza a aceitação de imigrantes no país.

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Isso afeta sobretudo fluxos migratórios da América Central. Porém, em menor escala também, do Brasil. Conforme relatado em reportagem da Folha de São Paulo, em 2019 e 2020 os pedidos de vistos profissionais de elevada qualificação (EB1 e EB2) subiram cerca de 40% em comparação a 2017 e 2018, e 135% quando em comparação com 2015 e 2016. Percebe-se assim um fenômeno de “fuga de cérebros”.

Contudo, o fenômeno apresentado acima não se restringe aos profissionais mais qualificados. Trabalhadores brasileiros menos qualificados têm procurado migrar para os EUA, sendo que muitos têm recorrido a meios ilegais.

Em 2021, conforme indica reportagem da BBC Brasil, nos primeiros 5 meses do ano cerca de 21,9 mil brasileiros foram detidos na fronteira dos EUA com o México tentando adentrar o país de forma ilegal. A perspectiva próxima também não é animadora. De acordo com pesquisa realizada pelo FGV Social, 47% dos brasileiros entre 15 e 29 anos deixariam o país hoje se pudessem.


Em março, Estados Unidos tiveram o dobro de crianças e adolescentes desacompanhados detidos nos postos de imigração / Dlatinos

Conforme a execução do Plano Biden for caminhando, este fluxo migratório de brasileiros pode se intensificar cada vez mais frente ao contraste entre a demanda por trabalhadores lá e a realidade no Brasil com índices recordes de desemprego sob o governo Bolsonaro.

Mudanças nas cadeias fornecimento

A terceira dimensão é o potencial impacto sobre a demanda por produtos brasileiros. Em 2019, período anterior à pandemia, os Estados Unidos alcançaram um valor total de importações de US$2,38 trilhões.

Segundo dados divulgados pelo Departamento de Comércio e apurado pelo canal de notícias Valor Econômico, em 2020 as importações norte-americanas recuaram no primeiro quadrimestre. Essa redução foi referente a queda na demanda por conta dos impactos econômicos causados pela crise sanitária. Entre abril de 2020 e abril de 2021, as importações aumentaram US$62,4 bilhões (37,9%).

Agora, com a possibilidade de um aumento expressivo do crescimento econômico nos EUA, há uma perspectiva de aumento da demanda de vários produtos importados.

Ao mesmo tempo, o governo Biden procura aumentar a capacidade de produção interna com programas como Buy American e também diversificar as importações. Não está muito claro ainda de que forma o Buy American pode afetar (negativamente) as importações do Brasil.

De outro lado, se espera aumento da demanda por produtos brasileiros que já estavam sendo exportados para os EUA. Em junho deste ano, em comparação com igual período do ano anterior, observou-se, por exemplo, um crescimento de 76,9% nas exportações brasileiras para os Estados Unidos.

De acordo com dados registrados pelo Ministério da Economia, cresceram consideravelmente as exportações de produtos semi-acabados, lingotes e outras formas primárias de ferro ou aço, representando uma variação de 17,51% em comparação com junho do ano passado.

Além disso, óleos brutos de petróleo ou de minerais betuminosos crus também obtiveram um resultado notável em um valor relativo a 9,13%. Em relação ao acumulado de janeiro a junho, os produtos semi-acabados, lingotes e outras formas primárias de ferro ou aço também ganham destaque.

No total acumulado de janeiro a junho de 2021, as exportações para os Estados Unidos aumentaram 33,2% em relação ao ano anterior, totalizando US$13,35 bilhões. Em parte isso reflete a recuperação de mercados perdidos por causa da pandemia, mas já é visível o impacto do crescimento provocado pela política expansionista de Biden.

Agora, com relação à diversificação e a busca de diminuir a dependência da China, há um potencial de aumentar as exportações latino-americanas.

O México está melhor posicionado geograficamente, mas pode haver oportunidades também para alguns setores no Brasil. Um exemplo, bastante específico mas emblemático, seria a demanda pelos chamados terras raras, nome dado a um conjunto de minerais de alto valor para a indústria eletrônica como monazite, bastnasite, xenótimo.

Ou seja, minerais desconhecidos, mas muito valiosos para a indústria tecnológica. Os EUA dependem atualmente muito da China para o fornecimento destes minerais. Acontece que o Brasil tem uma das maiores reservas mundiais destes minerais, e os EUA terão grande interesses em explorá-la.

Inflexão no consenso econômico e geopolítica mundial

Uma quarta dimensão tem a ver com a disputa com a China. Em alguma medida, a política intensa de investimentos públicos proposta por Biden está associada à ambição de evitar um declínio acelerado da influência dos EUA no mundo. Cabe apontar que, segundo estudo publicado pela consultoria Delloite, em 2017, o governo chinês gastou 3 vezes mais que os Estados Unidos em infraestrutura, chegando ao total de 8% do PIB do país.

Essa realidade colocou os Estados Unidos em uma situação de alerta quanto ao futuro do sua capacidade industrial-tecnológica. O plano Biden tem como um de seus objetivos reduzir esse hiato existente entre os grandes investimentos chineses em infraestrutura moderna para manter sua hegemonia.


A empresa chinesa Huawei é responsável pela criação e aperfeiçoamento do 5G, a quinta geração de internet móvel. / Agência Brasil | EBC

As perspectivas quanto ao Plano são também de retomada das parcerias estratégicas e de reafirmação da sua posição como líder no desenvolvimento e investimento de tecnologia de ponta, impedindo que esse processo passe a ter o Estado chinês como o principal ator.

É nesse sentido que Biden afirmou recentemente que seu plano econômico colocaria os Estados Unidos em uma posição de vitória em relação à competição com a China nos próximos anos.

Este argumento da disputa por espaços na geopolítica internacional contra a China são frequentemente mobilizados, tanto pelo partido Democrata quanto pelo Republicano, para aprovar políticas no Congresso. E isso pode resultar em maiores pressões sobre países como o Brasil para não utilizar tecnologias chinesas, como o caso do 5G da Huawei.

Um Biden brasileiro?

A quinta dimensão é o efeito demonstração sobre a disputa pelas políticas a serem adotadas no Brasil.

O protagonismo e a ambição de Biden têm chamado a atenção da mídia mainstream brasileira. Esta, desde 2020, com a derrota eleitoral de Trump e a crescente insatisfação da população com o governo Bolsonaro, busca por uma versão nacional de Joe Biden, que tem se tornado quase uma obsessão.

O posto já foi atribuído a Mandetta, Dória, Ciro Gomes, Tasso Jereissati e até Michel Temer e outros. Entretanto, chama a atenção o fato de a maioria destes políticos não defenderem uma agenda de investimentos públicos coordenada pelo Estado.

Salvo Ciro Gomes, os demais seguem de uma forma ou outra a cartilha de austeridade com ajustes fiscais, a fim de reduzir o déficit primário e aguardar o crescimento que deverá ser liderado pelo setor privado. A questão que fica, portanto, é: será verdade que o investimento público com redistribuição de renda e fortalecimento de sindicatos não cabe no contexto brasileiro?

Uma eventual incorporação inteiriça do plano Biden para uma economia emergente como a brasileira é improvável. Contudo, é possível perceber que cabe, sim, a retomada de lições que colocam o planejamento no centro da política econômica e implementam uma política tributária redistributiva.

Assim, em primeiro lugar, um eventual “Plano Biden à brasileira” deveria contar com a retomada de protagonismo estatal no que se refere à indução de investimento, por meio do fomento de projetos de infraestrutura, educação, saúde e inovação.

Assim, quem quiser fazer jus ao termo de “Biden brasileiro” deve, antes de tudo, defender o fim do Teto dos Gastos – projeto implementado pela Emenda Constitucional 95, no governo Temer – como é hoje.

Esta regra fiscal, da maneira como está em voga, envolve o congelamento em termos reais dos gastos públicos obrigatórios (aposentadorias, salário de profissionais concursados, etc) e também gastos discricionários (aqueles associados aos investimentos públicos, aumento de profissionais terceirizados em uma instituição pública, custeio da manutenção de um prédio ou estrada pública, etc), ou seja, estes são apenas corrigidos pelo IPCA anualmente.

Desse modo, com a vigência da EC/95, torna-se impossível a implementação de uma agenda que tenha como objetivo a retomada econômica por meio do aumento de investimento público. O mínimo que o Biden brasileiro deve defender é, portanto, uma nova regra fiscal que deixe os investimentos públicos de fora.

Outro campo de batalha de um “Biden brasileiro” deveria ser a reforma tributária. Atualmente o Brasil tem um sistema tributário nada progressivo e até regressivo: os mais ricos pagam menos impostos em proporção à renda que possuem do que a classe média e os mais pobres.

Desse modo, o país precisaria, assim como Biden está propondo nos EUA, de uma reforma tributária que desonere os mais pobres e comece a taxar grandes fortunas e rendas financeiras. Por último, destaca-se o reconhecimento de Biden que uma sociedade democrática e uma economia equilibrada precisa reconhecer o papel dos sindicatos para defender os legítimos interesses dos trabalhadores. Por que isso não seria válido para o Brasil, um país até mais desigual que os próprios EUA?

Percebe-se, portanto, que embora setores da mídia tentem criar um “Biden brasileiro”, as figuras apresentadas não defendem uma agenda similar à do Biden americano, muito pelo contrário.

Um hiato entre EUA e o Brasil?

Por último, a sexta dimensão diz respeito o aumento relativo do atraso brasileiro com relação a capacidade tecnológica dos países avançados no geral e com os EUA em específico.

Parte dos planos do Biden é exatamente fortalecer sua base industrial-tecnológica, inclusive, como mencionado, para poder reagir ao avanço da China. O que se assiste no Brasil é o contrário, com a estagnação ou até queda de investimentos e desarticulação do sistema de inovação nacional.

A retomada do investimento público deveria ser um assunto central no atual momento da economia e política brasileira. Caso a suspensão da EC/95 nos moldes de hoje não se dê e tampouco notemos a implementação de uma nova política tributária, mais igualitária, a viabilização de uma política centrada no gasto público não será possível.

As consequências disso tendem a ser danosas ao desenvolvimento brasileiro de longo prazo: aumento do desemprego, acentuação da reprimarização da economia nacional e a fuga de cérebros, entre outros.

Este cenário tende a aumentar ainda mais o hiato existente entre as economias desenvolvidas, neste caso, representadas pelos EUA, e o Brasil. Isso porque lá vê-se o investimento em setores voltados à inovação, transição verde e redução das desigualdades sociais, enquanto por aqui verifica-se uma acomodação em ser exportador de matérias primas sem uma aposta numa base industrial-tecnológica endógena.

Na verdade, se no Brasil não construir seu próprio plano de desenvolvimento industrial-tecnológico, não saberá também aproveitar oportunidades que uma expansão da economia estadunidense possa eventualmente oferecer e se defender contra os impactos negativos.

 

*São pesquisadores do Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo