Arte e política

Silvero Pereira: "Força de Bacurau é a comunidade. Nossa força é fazer diferença nas eleições"

Ele é categórico ao afirmar que o filme não é um retrato de um Brasil de hoje, mas um "Brasil de sempre"

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Depois de famoso por "Lunga", personagem de Bacurau (2019), Silvero Pereira se prepara para interpretar o estilista Clodovil e estrear nova comédia na Netflix. - Arquivo Pessoal
Precisamos acordar como a própria Bacurau fala. A força de Bacurau não é no Lunga, mas na comunidade

O ator e diretor brasileiro Silvero Pereira, marcou as telonas com o personagem Lunga no filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e agora comenta sobre outro personagem polêmico que se prepara para encenar, o estilista, apresentador de TV e deputado federal Clodovil Fernandes, mais conhecido como Clô.

A complexidade da personalidade forte, que acompanhava comentários conservadores e frequentes envolvimentos em polêmicas de Clô, foi o que mais "instigou" Pereira a desvendar o personagem, mesmo não sendo a favor de algumas falas do estilista, que até hoje – 12 anos depois de sua morte –, marca as publicações nas redes sociais. 

"Não sou a favor de uma série de coisas ditas pelo Clô, mas enquanto ator, diante deste personagem, também há o meu dever de defesa desta figura. Afinal de contas, se eu estou me predispondo a interpretá-lo é necessário viver essa figura', explica Pereira.

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"Então, se eu vou vivê-lo, que eu consiga defendê-lo. E defendê-lo nas perspectivas não do que o Silveiro pensa, não do que a comunidade LGBTQIA+ pensa, mas sim do que, de fato, ele pensava. É preciso também entender sobre quem era esta figura, qual era a história dele, em que contexto ele estava, qual a maneira que ele foi educado, o que se passava pela cabeça dele".



Militante LQBTQIA+, o ator fala também sobre a sua trajetória e encontro com o teatro na capital cearense, onde escolheu pelo caminho de uma "arte político social" como principal vertente do seu trabalho. Foi assim que criou o companhia de teatro As Transvestidas, que desde 2008, busca trazer as discussões e representatividade para questões LQBTQIA+ junto à sociedade.

"O teatro que me deu o lugar da profissão, me deu o lugar da sustentabilidade, me deu a força que eu tenho hoje, a coragem que eu tenho hoje. Eu acredito no teatro, nesse aspecto de que com ele é possível fazer questionamentos, provocações e transformações sociais. Eu fiz um caminho por esse lado", exclama o ator, que se intitula um curioso do ofício.

A inquietação e amor pelas artes cênicas, área que se formou no Instituto Federal do Ceará, acabaram o levando para o audiovisual, seja no cinema ou na televisão. Pereira reafirma que não sabe como isso aconteceu. Ele ganhou o Troféu Grande Otelo, de Melhor Ator, do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, pela atuação no filme Bacurau.

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Sobre a obra ele é categórico ao afirmar que não é um retrato de um Brasil de hoje, mas um "Brasil de sempre", que ainda persiste no sertão do país como o interior do Ceará, como em cidades como Mombaça, onde nasceu, em que o "coronelismo, clientelismo e nepotismo" ainda ditam as regras das comunidades. Mas, para Silvero a força não está em um "Lunga".

"A gente precisa, de fato, acordar como a própria Bacurau fala. A força de Bacurau não é no Lunga, não é nas personagens individuais, é naquela comunidade. Precisamos entender isso, o grande recado do filme é a nossa força, é a nossa população. A nossa força é fazer a diferença nas eleições e que a gente saiba fazer dessa potência que temos na hora de digitar os números certos, fazer uma grande mudança", pontua. 

Confira alguns trechos da conversa: 

Brasil de Fato: Silvero, você pode compartilhar como está o novo projeto que está participando, a série sobre o Clodovil? Ele é um personagem complexo que além de ser conservador, tem durante a trajetória uma série de questões, inclusive, em relação aos direitos da comunidade LGBTQIA+. Como você tem se preparado para viver esse personagem e como vê a figura que era o Clodovil? 

Silvero Pereira: Essa é uma série que está em fase de pré-produção, estamos finalizando ainda o roteiro. Quando eu recebi o convite pra fazer esse personagem, o que mais me instigou foi ele ser essa figura tão polêmica e, de fato, de alguns depoimentos tão conservadores, tão delicados pra nossa comunidade LGBTQIA+.

Eu sou um militante LGBTQ. Desenvolvo também o meu trabalho com a arte, em defesa da minha comunidade. Então, não sou a favor de uma série de coisas ditas pelo Clô, mas enquanto ator, diante deste personagem, também há o meu dever de defesa desta figura. Afinal de contas, se eu estou me predispondo a interpretá-lo é necessário viver essa figura. Então, se eu vou vivê-lo, que eu consiga defendê-lo.

E defendê-lo nas perspectivas não do que o Silveiro pensa, não do que a comunidade LGBTQIA+ pensa, mas sim do que, de fato, ele pensava. Volto a dizer, não estou de acordo com as coisas que ele dizia, mas é preciso também entender sobre quem era esta figura, qual era a história dele, em que contexto ele estava, qual a maneira que ele foi educado, o que se passava pela cabeça dele. 

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Pra mim, o mais interessante dessa série é o Clodovil que a gente conhece da política, da televisão, da publicidade, de tudo que a gente viu dele nas redes sociais – que a gente ainda vê hoje das publicações, das falas dele – isso a gente conhece, mas quem é o Clodovil na intimidade? Quem foi essa figura? O que aconteceu com ele? Quais eram os sentimentos, quais eram os afetos e os não afetos que ele teve durante a vida, que o fizeram essa figura tão agressiva em alguns comentários? 

É isso que mais me interessa desta intimidade desse personagem, que é uma coisa que poucas pessoas tem conhecimento e que eu gostaria que a série colocasse mais a frente. Eu acho que precisamos compreender o tempo também. 

Eu uso muito como referência o lugar da minha família, por exemplo, meu pai e a minha mãe. Qual a dificuldade do meu pai e da minha mãe de entenderem o lugar de identidade do Silveiro? De sexualidade do Silvero. 

Meu pai e minha mãe são duas pessoas, um homem analfabeto, uma mulher que estudou até o terceiro ano do Ensino Fundamental, e que passaram por uma sociedade extremamente conservadora, preconceituosa.

Eu venho de um outro tempo, e olha que eu sou da década de 1980, não tão evoluído assim. É completamente diferente do que a gente vive hoje, das perspectivas de respeito e diversidade que a gente tem hoje. 

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Eu compreendi que talvez eu fosse o movimento de desconstrução do meu pai e da minha mãe. Talvez fosse eu, de fato, a pessoa que levaria para dentro de casa mais informações, esse lugar da falta, do afeto que eu tô falando, do aconchego, do acolhimento. Assim eu consegui modificar isso dentro da minha família, com os meus pais, com os meus irmãos, com os meus sobrinhos. 

A gente precisa entender os contextos históricos também. Não acho que é perdoável a cena do que eu estou querendo colocar aqui, é que, “ah, não, não vamos, então, colocar a culpa no tempo. Pessoas poderiam ter feito isso”. Bom, as pessoas poderiam ter feito? 

Poderiam, mas nós também precisamos levar em consideração que as consequências de 30, 40 anos atrás, são completamente diferentes das consequências que se tem hoje ao se abrir, ao se falar sobre esse assunto e eu acho que precisamos respeitar também essas histórias. 

Falando da sua trajetória, como se deu o início da sua carreira artística? Você é de Mombaça no Ceará, começou lá ou veio a se desenvolver quando você chega a Fortaleza, onde você se forma em artes cênicas e monta dois grupos de teatro importantíssimos para a cena artística?

Eu lembro que quando criança sempre tive disposição pra arte, mas eu não tinha conhecimento sobre o que significava isso na minha vida. O que eu sabia era que eu gostava de pintar, de desenhar, dançar, de assistir as coisas, mas eu não tive contato com arte. 

Quando eu me mudo pra Fortaleza, eu me mudo com a perspectiva de profissão e de pensar. Eu quero mudar a vida da minha família, eu quero fazer a diferença, me formar como doutor, trabalhar, levar dinheiro pra dentro de casa.

Eu não pensei em ir pra Fortaleza para me tornar artista, só que quando eu entro na Escola Técnica Federal, eu sou apresentado a uma peça de teatro. E ao ver isso, eu fui arrebatado por aquele sentimento. E no dia seguinte, eu falei: “É isso que eu quero fazer da minha vida! Eu quero me inscrever na oficina de teatro, eu quero fazer teatro”. 

Foi assim desde então, por volta de 1997, que me inscrevi e fui entrar no lado profissional. 

E você fundou em Fortaleza dois grupos teatrais, como se deu esta criação? Como era a cena por lá nesse momento? As Travestidas, que é um desses grupos, sempre foi um grupo ativista. Nunca foi simplesmente pra ser divertido ou só por entretenimento, sempre teve muito ativismo envolvido na sua produção artística?

As Travestidas começa já quando eu já era um profissional dentro das artes cênicas. Eu já estava fazendo faculdade na área, eu não era mais um estudante de teatro, eu já estava me formando como ator. 

Dentro da classe artística, em 2002, comecei a perceber este lugar que foi sempre tão permissivo, tão aberto, tão incrível, que me permitiu me reconhecer, que me permitiu me assumir, me mostrar pras pessoas quem eu era de verdade, era um lugar extremamente violento também no que se refere às questões de diversidade de gênero. 

Diversas vezes eu me emocionei muito mais em dois minutos de dublagem do que em peças de duas horas com grandes atores.

A classe artística cearense, julgava todo e qualquer artista que tentasse fazer algum trabalho travestido. A classe artística dizia que esses atores não tinham coragem de assumir a sua sexualidade e usavam o teatro pra isso. 

E se as pessoas quisessem fazer esse tipo de trabalho dentro do teatro tinham que sair do teatro para ir pra dentro das boates trabalhar. Eu vi muito deste movimento, entre 1998 e 2000, de muitas artistas, que eram minhas colegas de trabalho, abandonarem o teatro, abandonarem a carreira como atriz, como ator, para trabalhar dentro de boates. 

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Eu não estou falando aqui que a arte Drag Queen é menor que a arte do teatro, muito pelo contrário, inclusive, fui percebendo isso quando eu fui pra dentro das boates, quando eu assisti pela primeira vez um show de transformista e eu fiquei completamente comovido com aquilo, com toda aquela artesania cênica de figurino, maquiagem, preparação, interpretação de assumir aquela personagem.

Diversas vezes eu me emocionei muito mais em dois minutos de dublagem do que em peças de duas horas com grandes atores, que eu tenho assistido, é um glamour, uma luz, enfim, tem toda uma produção maravilhosa. 

Inclusive, eu colocava isso dentro do meu curso de artes cênicas, era preciso ter uma cadeira de dentro do curso, porque é um processo de artesania complexo. Você constrói figurino, maquiagem, adereço, interpretação, você constrói uma atmosfera para aquilo. 

Uma arte político social foi a vertente que eu escolhi para o meu trabalho. Eu nunca consegui desassociar, porque o teatro fez isso comigo. 

A partir daí, eu montei o primeiro trabalho, que foi uma flor de dama sobre essa minha inquietação do que eu estava vivendo e percebendo da violência da classe artística e o que esta violência fazia com as pessoas que queriam realizar esse trabalho. 

Eu fiquei dois anos pesquisando esse universo de travestis, transsexuais, transformistas e levei isso pra dentro do teatro, que foi o espetáculo Uma Flor de Dama. Esse espetáculo depois foi agregando outras pessoas e viramos o coletivo artístico As Travestidas. A gente estreia em 2008 nosso primeiro trabalho, que é o Cabaré das Travestidas

Eu super acredito na arte, em diversos aspectos. Eu gosto de falar sobre isso. Pra mim, arte pode ser extremamente de entretenimento, a arte pode ser extremamente empresarial para ganhar dinheiro, seja lá o que for. Mas eu optei por uma arte social, uma arte político social foi a vertente que eu escolhi para o meu trabalho. Eu nunca consegui desassociar, porque o teatro fez isso comigo. O teatro me salvou de uma série de adversidades, de uma série de questões que a vida me trouxe. 

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É isso que eu estava falando, eu venho de um pai pedreiro, uma mãe lavadeira de uma família pobre, que passou fome, que passou sede e foi o teatro que me deu o lugar da profissional, o teatro que me deu o lugar da sustentabilidade, que me deu a força que eu tenho hoje, da coragem que eu tenho hoje. 

Eu acredito no teatro, nesse aspecto de que com ele é possível fazer questionamentos, provocações e transformações sociais. Eu fiz um caminho por esse lado. As Travestidas é isso. 

É um coletivo de artistas, eu gosto de falar coletivo, porque nós não somos só atores e atrizes, nós temos bailarinas, cantoras, cantores, produtores, design gráfico, artista plástico, a gente tem o audiovisual, tem tudo ali dentro. 

Em nenhum momento nós abrimos mão das discussões que queremos levar pras pessoas, mesmo no bloco de carnaval – que eu acho que esse é o projeto mais significativo que a gente tem –, que leva vinte mil pessoas para uma festa tão popular.

Nós temos um repertório formado por músicas que levam discussões pras pessoas, mesmo dentro dessa festa popular. E 99% das pessoas que trabalham no bloco das travestidas, seja cantando ou no backstage, são LGBTQIA+.

E quais foram as tuas referência olhando do teatro pra fora? 

Eu acho que as grandes referências que eu tenho e eu gosto da palavra referência, porque é isso, eu sou da década de 1980, eu nasci em 1982. Então, pra mim, falar sobre representatividade é um pouco complicado, porque eu não tive representações durante a minha infância, adolescência, mas eu gosto de falar de referencialidade.

Porque eu tive, sim, referências não tão grandes como temos hoje, mas eu tive figuras. Por exemplo, na música, como Ney Matogrosso, que era um artista que eu olhava desde pequeno e pensava: “Caramba, eu acho que me pareço com isso, tem alguma coisa ali que me atrai nessa maneira de ser e de pensar”. 

Renato Russo, Cássia Eller na literatura. A pessoa que mais me chamou a atenção e que mais é referência pro meu trabalho é o Caio Fernando Abreu, que é da literatura contemporânea, mas é um homem gay assumido e que escrevia sobre um tempo, sobre suas vidas, suas vivências e que são textos absolutamente atuais, mesmo que ele tenha escrito há tantos anos atrás. Todas as vezes que eu leio obras do Caio, parece que ele escreveu para o tempo de hoje, para as questões que a gente vive hoje. 

Ele é a maior referência que eu tenho. Tanto que todos os meus trabalhos no teatro, quando eu tento escrever alguma coisa, quando estou no trabalho de dramaturgia, a primeira coisa que eu faço é ler Caio Fernando Abreu. 

Você citou uma série de artistas que são super populares, o Renato Russo a seu tempo foi ultra popular, uma unanimidade. O Ney Matogrosso a mesma coisa. O Caio Fernando de Abreu, que foi sendo descoberto aos poucos pelas pessoas, virou esse fenômeno da internet. Como é que se explica, Silvero, numa sociedade tão homofóbica, que a gente tem tantos problemas com preconceitos, em geral, não só a homofobia, mas o racismo, o  machismo, etc, que a gente tenha esses ícones que são ícones também da comunidade LGBTQIA+. Tem explicação isso? 

A única explicação pra isso é o fato de a gente reconhecer uma sociedade esmagadora, uma sociedade que quer te esmagar o tempo inteiro. Quando falamos sobre orgulho, quando estamos no mês de junho falando sobre orgulho LGBTQIA+, é muito importante falar sobre a palavra orgulho, porque durante anos só ouvimos a palavra vergonha diante de quem somos. 

A sociedade o tempo inteiro ficou dizendo que nós somos doença, que nossos sentimentos não valem, que nós estamos errados, que nós estamos na contramão de que tudo. Enfim, é tudo muito violento pra cima da gente. Então, somos educados a ter vergonha de quem somos. Quando a gente chega no mês de junho e faz tanta campanha de orgulho, é exatamente pra enterrar essa vergonha que essa sociedade tenta nos colocar o tempo inteiro. 

O Caio Fernando Abreu, por exemplo, é uma figura que, quando eu ouvi pela primeira vez, no terceiro ano do Ensino Médio foi da professora dizer:

“Tem um autor aqui que eu gosto muito, mas ninguém quer trabalhar com ele, porque dizem que é um autor pornográfico que escreve coisas que as pessoas dizem que são agressivas, violentas. Mas eu não acho isso, eu estou falando o que as pessoas pensam sobre o Caio Fernando Abreu”. 

Foi o que mais me chamou atenção. Eu falei assim: "Então, é esse cara que eu quero ler. É sobre essa história que eu quero conhecer". E aí o Caio me abriu um mundo de possibilidades. Eu estou aqui falando exatamente disso. 

O Caio foi muito estigmatizado, porque tentaram, de fato, enterrá-lo também nesse lugar da violência, da vergonha.

“Não leiam Caio Fernando Abreu, porque ele é pornográfico, porque ele é desvirtuado, porque ele é…”, enfim, todas essas questões que a gente sabe que a sociedade tenta nos dizer até hoje, quando um apresentador de televisão diz as barbaridades que diz dentro de um canal. Então, é só reflexo do que essa sociedade é. 

Do teatro, você foi para o cinema, com o filme de Serra Pelada, depois foi para a novela. Como foi e como é migrar entre as artes, entre as diversas plataformas? 

Eu sinceramente não sei o que explica isso. Converso muito com os meus colegas de trabalho. Eu sou uma figura de teatro, nasci no teatro enquanto artista e meu porto seguro é o teatro. Aconteceu que eu caí dentro do audiovisual, eu sempre falo isso, eu não sei, de fato, qual foi o motivo que me trouxe pra dentro do audiovisual. 

Eu olho para outros artistas que tiveram a mesma trajetória que eu, que são tão ou mais talentosos do que eu, e que não tiveram a mesma oportunidade que eu tive e que estou tendo nesse exato momento. Então, eu não sei nem explicar o que, de fato, me traz até aqui. 

Eu aprendi a escrever, atuar, dirigir, operar luz, operar som. Eu sou um curioso e eu tenho muito amor pelo meu ofício. Eu acredito, de fato, e quero fazer com maior dedicação possível.

A não ser o fato de que eu sempre fui muito respeitoso com o meu ofício, eu sempre tive muito prazer pelo meu ofício. Aprendi desde o início que pra ser artista é preciso entender absolutamente tudo sobre aquilo, sobre o que o seu ofício pode oferecer. 

Então, eu aprendi a escrever, atuar, dirigir, operar luz, operar som. Eu sou um curioso e eu tenho muito amor pelo meu ofício. Eu acredito, de fato, e quero fazer com maior dedicação possível. 

Pra mim ainda é muito assustador esse lugar do audiovisual. Eu ainda tenho um receio, eu sempre acho que não vou dar conta da coisa. Eu não me sinto ainda 100% confortável, por isso que eu falo que sou do teatro, porque se me entregar uma peça de teatro, um roteiro de teatro pra ler e começar a produzir agora, eu já me sinto muito mais à vontade, eu vou saber chegar nos resultados mais rápidos. 

No audiovisual, eu ainda me sinto um pouco desconfortável, ainda me sinto devendo muito, porque eu estou há três anos. As pessoas acham que eu estou há muito tempo e que eu tenho uma carreira gigantesca no audiovisual. Eu só fiz uma novela, cinco filmes e alguns curtas, mas só são três anos dentro do audiovisual. É uma carreira bem pequena, diante dos vinte e dois anos que eu tenho de teatro. 

O Lunga se configura dentro dessas figuras do cinema nacional.Um personagem que passou a ser vestido dentro do Halloween, vestido no carnaval, usado como referência de resistência, de luta, precisamos do Lunga.

Mas essa carreira no audiovisual tem um começo brilhantíssimo. O teu personagem, o Lunga, ganhou um tamanho gigantesco no filme Bacurau, dirigido por Kleber Mendonça. Como foi o processo de adaptação do roteiro e de estudar o personagem, você já tinha identificado todo esse caráter revolucionário que ele ganhou? 

Sim, desde o primeiro contato com o roteiro, já sabia que esse ia ser um personagem bem significante dentro da obra. Kleber e Juliano também sabiam disso, eles já preparam o roteiro para esse momento, pra chegada dessa personagem. Havia uma responsabilidade muito grande.

Eu acho que tem uma coisa muito especial em dois processos, tanto a novela A Força do Querer, com a Elis Miranda, Nonato, como Lunga, em Bacurau, é o fato de serem dois personagens caíram muito na empatia das pessoas. 

As pessoas compraram essas personagens e as defenderam. A Elis Miranda virou uma das figuras mais queridas da novela em que as pessoas torciam, tanto que eu entrei nessa novela pra fazer uma personagem que era mais didática, que tentava explicar o contraponto do Ivan [Carol Duarte], só que a personagem foi ganhando uma proporção tão grande, que a trama dela foi crescendo absurdamente dentro da obra. 

E aí, vem o Lunga. A grande surpresa pra mim com o Lunga, é ele ter se tornado essa figura pop, que eu acho que o cinema nacional traz de vez em quando. 

Se a gente for pensar em Pixote, Central do Brasil, Tropa de Elite, Minha mãe é uma peça, acho que o Lunga se configura dentro dessas figuras do cinema nacional.

A força de Bacurau não é no Lunga, não é nas personagens individuais, é naquela comunidade, precisamos entender isso, o grande recado do filme é a nossa força, é a nossa população. 

Um personagem que passou a ser vestido dentro do Halloween, vestido no carnaval, usado como referência de resistência, de luta, precisamos do Lunga. Acho que é especial ver um personagem do cinema brasileiro se sobrepor em cima de um personagem de uma novela, das nove, que é extremamente popular. 

Então, hoje, diversas vezes, eu sou mais reconhecido pelo Lunga do Bacurau do que pela Elis Miranda, na novela Força do Querer. E isso é muito legal, porque a novela tem uma abrangência que eu não consigo nem mensurar a quantidade de pessoas que assistem um capítulo. 

Quando você vê o cinema nacional, se sobressaindo em cima de um personagem de televisão, eu acho que a gente mostra ainda mais a potência do nosso cinema. 

E quão importante foi Bacurau, não é? Nasceu num momento que conversa muito com o Brasil que a gente vive... Por que você acha que ele conversa tanto com o Brasil? 

Eu acho Kleber, um dos cineastas, realmente, mais geniais que temos. Eu sempre quis trabalhar com ele desde que assisti Som ao redor e Aquarius. Além de um grande diretor, ele é um autor que vai para além do tempo. Parece que escreve com uma premonição, isso é o que mais me impressiona.

Quando o Aquarius foi produzido, foi muito antes de toda aquela loucura que a gente viveu dentro da política, do impeachment e das questões como a Dilma. E aí, quando o filme estreia, parece que foi feito sobre isso, parece que era uma metáfora sobre essa história sendo destruída por dentro, colocando os cupins dentro da casa dessa mulher pra destruir essa mulher, para destronar, tirar essa mulher daquele lugar. Parecia uma premonição.

Acho que Bacurau segue o mesmo caminho. Só que eu acho que Kleber e Juliano não escrevem sobre um Brasil de agora. O Bacurau foi escrito há dez anos atrás. 

Eles escrevem sobre um Brasil de sempre, um Brasil que , embora a gente nos grandes centros ache que a coisa mudou no sertão, no interior não mudou tanto assim. Eu vejo isso de perto em várias cidades do interior do Ceará, o coronelismo, o clientelismo, o nepotismo, ainda agindo de uma maneira muito forte, é o Brasil de sempre. 

E a gente precisa, de fato, acordar como a própria Bacurau fala. A força de Bacurau não é no Lunga, não é nas personagens individuais, é naquela comunidade, precisamos entender isso, o grande recado do filme é a nossa força, é a nossa população. 

A nossa força é fazer a diferença nas eleições e que a gente saiba fazer dessa potência que temos na hora de digitar os números certos, fazer uma grande mudança. 

Silvero, você também está participando de uma produção de comédia. E a comédia no Brasil funciona muito bem, ela atinge todos os públicos. A gente viu agora com a infelicidade que foi a partida do Paulo Gustavo como a comédia transforma mesmo a vida das pessoas. Você está ainda em produção, não pode revelar muita coisa, mas como é que é trabalhar com comédia, numa plataforma de que também veio pra revolucionar como a gente consome entretenimento? 

Eu estou muito feliz, hoje, em fazer parte da Netflix Brasil, com esse projeto, que é um elenco fabuloso. Estou trabalhando com figuras que são ícones pra mim, como Eliezer, como Du Moraes, como GQ, que é uma humorista paraibana, tem sido uma delícia, Marcelo Médici, que é um monstro do teatro brasileiro. 

Estar ali com eles, com Fernanda Paes Leme, que eu via quando eu era criança na televisão adolescente, na televisão, em que hoje eu sou colega de trabalho. Estou muito, muito feliz. Rafael Logan, que é esse ator sensacional, duas vezes indicado ao Emmy, como melhor ator. 

Temos um elenco muito especial, um roteiro maravilhoso, que é uma comédia, mas uma comédia de mistério, tem uma família que fica presa dentro de uma mansão porque acontece um assassinato e eles são suspeitos do que pode ter acontecido ali. Mas com aquele humor brasileiro, com uma uma direção de fotografia, com uma direção de arte muito bonita. 

Eu acho que vai ser um trabalho bem bacana, eu tô muito orgulhoso de fazer parte disso. 

E eu acho que você falou uma coisa importante aí sobre Paulo Gustavo, e que a gente tem que bater na tecla. Existe o comitê Paulo Gustavo lutando pela lei, Paulo Gustavo, para a cultura, são R$ 4,3 bilhões que serão destinados para estados e municípios, na mesma perspectiva que foi feita com a lei Aldir Blanc.

Esse é um dinheiro do Fundo Nacional de Cultura. Então, é um dinheiro já destinado para cultura e a gente precisa exigir enquanto sociedade civil, que os nossos deputados, os nossos senadores, aprovem essa lei, porque esse dinheiro tem que ir pra cultura, para que a gente continue fazendo as coisas acontecerem e fomentar ainda mais a produção artística. 

As pessoas fazem uma confusão gigantesca com Lei Rouanet, mas o quanto a arte salva, o quanto a arte salvou nesse período de pandemia, as pessoas sabem disso.
 

Edição: Leandro Melito