Rio Grande do Sul

PERIFERIA E CULTURA

Primeiro museu da cultura Hip Hop da América Latina será inaugurado em Porto Alegre

O rapper Rafa Rafuaggi, da Associação da Cultura Hip Hop de Esteio, explica os esforços e os objetivos da iniciativa

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Parte da equipe técnica do projeto em frente ao prédio que vai abrigar o museu, na Vila Ipiranga, zona Norte da capital gaúcha - Foto: Divulgação

A capital gaúcha vai sediar o primeiro Museu da Cultura Hip Hop da América Latina. O espaço de valorização da memória desta expressão cultural das periferias que se desenvolveu denunciando múltiplas violências, principalmente o racismo, tem inauguração prevista para março de 2022. Vai oferecer atividades formativas, oficinas de contraturno escolar de Hip Hop, DJ, MC, grafite, dança e slam, além de contar com horta comunitária, quadra poliesportiva e estímulo a esportes de rua como skate, basquete, futebol, voleibol e outras áreas de interesse da comunidade onde está inserido.

Fruto de uma construção coletiva liderada pela Associação da Cultura Hip Hop de Esteio (A.C.H.E), o espaço foi idealizado pelo rapper, militante do Hip Hop e do movimento negro em Porto Alegre, Rafael Diogo dos Santos, mais conhecido como Rafa Rafuagi. “O museu da Cultura Hip Hop nasce de um desejo que transpassa gerações, vem de uma geração que foi pioneira na cultura Hip Hop do Rio Grande do Sul, os breakers, DJs, grafiteiros e MCs que ocupavam a Esquina Democrática, bem como espaços do Interior, que também tiveram seu início em sequência de Porto Alegre”, conta.


Casa de Cultura do Hip Hop, em Esteio, durante umas das ações de entrega de cestas básicas em meio à pandemia / Foto: Instagram A.C.H.E.

Em entrevista ao Brasil de Fato RS, ele explica que a concretização desse desejo de preservação da história e do patrimônio do Hip Hop valoriza o caminho já percorrido e serve de exemplo aos mais novos. “Um espaço onde as nossas histórias podem servir de exemplo a outros jovens, que também são oriundos de periferia e têm as mesmas dificuldades de outros períodos de vida diferentes devido a problemas históricos como racismo, o machismo ou a homofobia, que são temas de grande debate dentro da cultura Hip Hop.”

Segundo Rafuagi, que é coordenador de Autogestão e Sustentabilidade da A.C.H.E, o museu objetiva intensificar o combate a problemáticas causadas pelo colonialismo, o patriarcado e porque não o capitalismo. "Queremos trazer uma perspectiva de economia solidária, uma perspectiva de trabalho coletivo em rede, valorizando a ancestralidade negra e buscando no passado elementos que nos subsidiem para a construção de um futuro pensando aí uma proposta de plano de década para as periferias a partir do museu.”

O prédio onde será instalado, uma antiga escola estadual na Vila Ipiranga (Rua Parque dos Nativos, 515), zona Norte de Porto Alegre, foi cedido pela prefeitura da Capital. O rapper destaca que o projeto vai envolver a comunidade, citando o exemplo da horta comunitária. “Isso vai trabalhar diretamente com a comunidade que mora no entorno do equipamento público, de modo a fazer com que a gente possa estar inserido em agendas, feiras de agricultura familiar, e trazendo também essas pessoas para dentro da cultura Hip Hop.”

Museu é fruto da organização coletiva

“Sendo o primeiro Museu da Cultura Hip Hop da América do Sul, e talvez a gente inaugure antes ainda do Museu do Hip Hop do Bronxs, que tá sendo criado, nos Estados Unidos, a gente sabe a responsabilidade que é porque não existe uma cartilha de orientação pra gente criar um projeto dessa magnitude”, afirma. Segundo ele, o processo é de tentativa e erro, levando em conta questões que lhes são muito caras, “como o equilíbrio geracional, equilíbrio entre gênero, equilíbrio entre raça, valorizando a diversidade dentro do projeto”.

A materialização do projeto vem da organização e da luta coletiva, a partir de debates que surgiram nos anos 2010, tomando como exemplo a realização da primeira Semana da Cultura Hip Hop, realizada em 2008 em Porto Alegre. A iniciativa tornou-se uma referência para que outras cidades gaúchas também se organizassem em coletivos e levassem propostas aos legislativos municipais, aprovando eventos de forma oficial no calendário dos municípios.

“A partir dali, essa forma de organização mais coletiva foi o que fez o movimento do Hip Hop do Rio Grande do Sul novamente estar numa posição de vanguarda frente a cena nacional. E também por óbvio, gerar exemplos positivos a partir daqui”, pontua. Rafuagi ressalta não somente as semanas do Hip Hop como um dos maiores festivais de Rap e da cultura Hip Hop no estado, mas também a realização já por dez anos de uma das maiores batalhas de dança do Brasil e também da América do Sul, a Battle In The Cypher (BITC), em Bento Gonçalves.

“Não por menos também a gente tem diversas associações do Hip Hop com CNPJ, de um modo jurídico organizado. Obviamente entendendo que esse contexto histórico foi o que possibilitou o projeto da Associação da Cultura Hip Hop de Esteio, juntamente com todas as entidades e embaixadores que fazem parte da pesquisa, da articulação, que são muitas e eu prefiro não citar nomes para não esquecer de nenhuma, mas são muitas, que fazem parte desta construção”, afirma.

Hip Hop como ferramenta de diálogo com a juventude

Prestes a completar duas décadas de atuação artística e social, Rafuagi acredita que a música e a cultura Hip Hop podem contribuir de modo muito didático para o enfrentamento do racismo, da histórica exclusão social das cidades brasileiras e outros problemas do país. Como exemplo, cita o Manifesto Porongos, lançado pelo grupo Rafuagi, do qual faz parte, que serviu de subsídio pedagógico para educadores e educadoras trabalharem a história dos negros nas escolas.

“A história dos lanceiros negros é até hoje invisibilizada, negada e omitida, dentro das escolas”, pontua. Ele atribui ao esquecimento proposital de parte da história a criação de falsos mitos que se tornam base para repetições de problemas históricos. “Não por menos a gente vê coisas históricas acontecendo, referentes ao próprio bolsonarismo.”

Rafuagi afirma que a música Rap tem o poder de dialogar mais facilmente com a juventude, muitas vezes aproximando o discurso que o professor traz e muitas vezes não é compreendido pelos jovens, seja por uma distância de idade ou de dialeto e expressões. “Isso aí é importante, eu acho que a música tem esse poder, a cultura Hip Hop tem feito isso, eu citei um exemplo, mas tem vários, o próprio Emicida, com o documentário AmarElo, hoje na Netflix. E outros tantos exemplos pelo Brasil e pelo mundo.”

Conectando o acadêmico ao popular


Boaventura de Sousa Santos, acompanhado de Rafa Rafuagi, interage com jovem durante evento de encerramento da UPMS em 2019 / Foto: Facebook A.C.H.E.

A A.C.H.E foi fundada em 2011, em prol da disseminação do movimento. Em 2017, inauguraram a Casa da Cultura do Hip Hop de Esteio, desenvolvendo diversas atividades junto aos jovens e à comunidade em geral. Um dos eventos de sucesso antes da pandemia no local foi um curso de extensão da Universidade Popular dos Movimentos Sociais, a UPMS, iniciativa que nasceu no Fórum Social Mundial, fruto do anseio dos movimentos sociais juntamente com acadêmicos preocupados com um novo mundo possível.

O rapper recorda que o encontro, que contou com a participação do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, colocou em prática essa possibilidade de junção entre acadêmicos e populares. “Foi uma junção da Associação com o Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombo do RS (IACOREQ-RS) e outros líderes que não estão ligados diretamente a coletivos, mas são lideranças comunitárias, de movimentos sociais, de grupos artísticos. A gente teve a participação de mais de 50 pessoas que são oriundas da luta social, da luta artística e líderes de movimentos”, conta.

Para Rafuagi, o espaço proporcionado pela UPMS mostrou que academia e populares não são mundos opostos e devem estar cada vez mais juntos. “A UPMS faz parte de um tripé de projetos que a gente acredita que podem realmente transformar o Brasil, que tem as Casas de Cultura Hip Hop como base, centros de referência para a juventude, atuando diretamente dentro das comunidades, ofertando contraturno e uma série de possibilidades de emancipação crítica e econômica, tornando realmente cidadãos esses jovens”, afirma.

Tendo a Universidade popular como espinha dorsal, potencializando lideranças, e a atuação nas comunidades, o rapper ressalta que esse tripé de atuação tem por base o museu. “É o espaço de valorização dessa memória e da luta social construída no Brasil, que nos é muito cara e obviamente a gente está aqui para seguir honrando essa ancestralidade.”

Fase de pesquisa histórica


Fóruns de pesquisa histórica do museu por regiões do RS estão ocorrendo virtualmente desde o início de julho / Reprodução

A construção do museu está em fase de pesquisa histórica da cultura Hip Hop para montar seu acervo permanente. Desde o início de julho, o projeto está selecionando embaixadores nas nove regiões funcionais do estado para que participem ativamente no resgate histórico da produção da cultura e façam parte dessa elaboração do conhecimento.

Serão ao todo nove fóruns de mapeamento e construção coletiva de memórias e registros junto aos embaixadores, realizados virtualmente nas cidades de Porto Alegre, Caxias do Sul, Passo Fundo, Pelotas, Santa Maria, Santa Cruz, Santo Ângelo, Esteio e Tramandaí. 

"O Museu será para além de um espaço físico, um espaço imaterial, que vai servir pra gente contar a nossa própria história, da forma como a gente vive e sente a Cultura Hip Hop num estado que sistematicamente apaga a história de quem vive à margem da sociedade. Para isso, usaremos como estratégia de resgate o acervo que está sendo construído coletivamente através da Pesquisa Histórica, daí vem a importância de que todas e todos que contribuíram para o crescimento da Cultura Hip Hop no RS participe dos Fóruns e que ajude a espalhar o que estamos fazendo”, pontua Geovane Neves, coordenador geral e administrativo da A.C.H.E.

A A.C.H.E. destaca a necessidade urgente de resgatar e preservar a história da cultura e dos fazedores da cena Hip Hop do estado, registrando seu legado e importância na cena local, a exemplo de Malu Viana, a MC Flor do Guetto, falecida no início de julho, que integrava parte da equipe de pesquisa do museu. A entidade destaca a atuação de Malu, que foi uma das primeiras mulheres a fazer Rap no Brasil e esteve presente nas principais lutas de sua geração:

“Organizou frentes de mobilização do Hip Hop desde o final dos anos 1980; colaborou com o Projeto Juventude do Instituto Cidadania e Fundação Perseu Abramo; foi presença marcante nas primeiras edições do Fórum Social Mundial, ajudando em sua construção e, assim, dos sonhos de outro mundo possível; atuou na organização do I Encontro Nacional de Juventude Negra e do Fórum Nacional de Juventude Negra; foi Articuladora do Plano Juventude Viva; passou a integrar o quadro de filiadas ao Movimento Negro Unificado (MNU) no ano passado. Nos últimos anos, vinha colaborando com a Fundação Perseu Abramo no Projeto Reconexão Periferias, onde sua atuação foi marcada pelo destacado entusiasmo que lhe era característico quando acreditava numa ideia. Nunca abandonou as trincheiras de luta, foi MC do Hip-hop, militante negra antirracista e progressista até o último dia de sua vida.”


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Edição: Katia Marko