Golpismo

Forças golpistas “estão latentes”, diz ex-presidenta do Senado da Bolívia

Adriana Salvatierra afirma que os “setores conservadores” apostam na “ruptura democrática”

Mulheres indígenas bolivianas se protegem do gás lacrimogêneo durante um protesto contra o governo interino em La Paz, em 15 de novembro de 2019. - AIZAR RALDES / AFP
"Havia toda uma articulação para construir um golpe de Estado"

Apesar de derrotado nas ruas e nas urnas, o golpismo na Bolívia segue vivo. A avaliação é de Adriana Salvatierra, feita ao podcast Brasil de Fato Entrevista. Presidenta do Senado quando do golpe que levou Jeanine Áñez ao poder, em novembro de 2019, a congressista afirma que os analistas e políticos que previram o fim dos governos progressistas na América Latina “se expuseram ao ridículo porque a história está aberta”.

Salvatierra cita a articulação do ex-ministro da Defesa Luis Fernando López com Joe Pereira, um ex-administrador civil do Exército dos Estados Unidos que estava baseado na Bolívia à época. De acordo com reportagem do The Intercept, gravações mostram López e Pereira discutindo a contratação de mercenários estrangeiros para tentar impedir a posse do então presidente eleito Luis Arce, aliado de Evo Morales. Foragido da Justiça boliviana, López escapou para o Brasil.

“A aposta destes setores conservadores não é democrática, se a forma pela qual tomaram o poder não foi democrática, não foi legal, foi inconstitucional e violenta, e quando ganhamos as eleições com mais de 55% de Luis Arce, novamente a resposta articulada da oposição é a violência e contratar mercenários para que venham impedir a posse de Luis Arce. Porque as apostas destes senhores continuam sendo a ruptura democrática”, avalia Salvatierra. “Não estamos estabelecendo uma competição pela administração pública, pelo Estado, pelo poder do Estado sob as mesmas condições.”

A ex-senadora ressalta que o “ciclo progressista” na América Latina não está encerrado, como demonstrado pela vitória de Pedro Castillo no Peru, a Constituinte no Chile e as manifestações populares na Colômbia. Os Estados Unidos, todavia, devem reagir para reassegurar seu domínio político da região, prevê Salvatierra.

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“Hoje a força dos próprios movimentos sociais em cada um desses países está colocando em dúvida a força ou a capacidade de ação dos Estados Unidos sobre nossa região — e isso é muito importante. Mas também imaginamos que implicará em investidas duras sobre nossas regiões, é muito difícil que os Estados Unidos renunciem ao controle da região e renunciem aos países que serviam como articuladores de seu domínio e sua hegemonia em nível regional”, analisa a ex-senadora.

A representante do Movimento ao Socialismo (MAS) ainda destaca que a eleição da líder indígena mapuche Elisa Loncón para presidenta da Convenção Constituinte do Chile é uma vitória não apenas para o país, mas para todo o mundo. Salvatierra relembra que, antes de Loncón, a quechua Silvia Lazarte foi presidente da Constituinte da Bolívia.

“Nossas repúblicas foram constituídas com base na luta dos afrodescendentes, na luta do movimento indígena, mas no momento de construir as Constituições, no momento deste processo de codificação dos códigos penais, civis e comerciais, etc., já não existia o movimento indígena, já não existiam os afrodescendentes que lutaram pela independência da pátria, que tanto desejamos em nossa região, pela independência do que antes eram consideradas colônias”, afirma Savatierra. “Há a característica simbólica destes processos.”

Confira mais trechos da entrevista:

Brasil de Fato: Como a Bolívia conseguiu se recuperar tão rápido depois do golpe de Estado? No Brasil, seguimos tendo debilidades, especialmente no campo progressista, desde 2016 quando fizeram o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff.

Adriana Salvatierra: Eu acredito que é a grande pergunta, na verdade, que muitos nos fizeram, não somente do Brasil. Relembremos do golpe materializado em Honduras, em 2009. O golpe de Estado, também parlamentar, no Paraguai em 2012 e, em 2016, o que aconteceu com a companheira Dilma Rousseff.

Mas eu acredito que houve um conjunto de elementos, entre eles, é claro, que há uma reação social imediata. Havíamos triunfado, efetivamente, no último processo eleitoral de 2019 com uma margem de mais de dez pontos de diferença. Estávamos em um processo permanente de mobilização cidadã e essa mobilização não acabou depois do golpe de Estado. E, claro, além disso a oposição que entrou no governo, o governo de fato de Jeanine Áñez, o governo golpista, era absolutamente carente de um projeto político alternativo ao que defendia o Movimento ao Socialismo (MAS) em torno do exercício da soberania, a industrialização de nossos recursos naturais, a democratização da riqueza. Então acredito que também a ausência de um projeto político alternativo por parte da oposição política ao Movimento ao Socialismo teve um papel muito importante.

E, claro, a crise sanitária que foi, para nós aqui na Bolívia, e também acredito que tenha contribuído no Brasil, a realmente dimensionar a incapacidade de administração pública de atores políticos como Jair Bolsonaro, Jeanine Áñez, que emergem das mesmas forças políticas conservadoras que não tinham uma resposta efetiva e certa para as pessoas, para a população na crise sanitária, que não seja a repressão. Então acredito que isso também contribuiu para acelerar, na opinião pública, que em um ano de um processo eleitoral a população pode dizer ‘bem, em 2019, quando governava o Movimento ao Socialismo, eu tinha moderadamente garantido poder chegar ao fim do mês e pagar minhas contas, dar uma educação aos meus filhos, acessar a possibilidade de ter e construir uma casa própria, ter acesso à titulação de terra, para os camponeses’. E em um ano essa realidade se transformou diametralmente em todo o contrário: um isolamento como única resposta da crise sanitária, uma má administração da economia, uma limitação do exercício de acesso à educação, saúde e outras coisas mais.

Claro que há mais características absolutamente antidemocráticas que buscavam a censura da liberdade de expressão. Então eu acredito, em resumo, a população pode comparar, em um ano, como estavam em 2019, quando governava o Movimento ao Socialismo, quando governava então Evo Morales, e como estavam em 2020 quando havia ingressado a oposição no governo do país. Esse contraste que a população experimenta e interioriza em sua experiência é muito importante para que se recupere a necessidade de conduzir por esse caminho de transformação que estava sendo construído neste lado da história por nós.

Adriana, porque você decidiu se demitir como presidente do Senado depois do golpe? Você não poderia ter dirigido uma recuperação da democracia?

Sim, eu expliquei e agora está seguindo um processo judicial na Bolívia sobre o golpe de Estado e eu me apresentei para esclarecer de forma voluntária. Porque com o tempo e a distância, tendemos a esquecer de coisas porque foi acontecendo de maneira muito rápida, tende também a diminuir a relevância de alguns acontecimentos, então tendem a esvaziar de conteúdo o que realmente aconteceu. E quando nós, por exemplo, falamos de porque aconteceu o golpe de Estado, às vezes começamos a fazer autocríticas prejudiciais para nosso instrumento e não damos, na realidade, o peso real em importância ao que foi uma conspiração política, inclusive de caráter internacional, que colocou em evidência que havia toda uma articulação para construir um golpe de Estado.

No meu caso, a minha renúncia foi por três motivos que expliquei anteriormente. O primeiro deles, é claro, foi o conjunto de pressões que exerceram contra muitos parlamentares de nossa força política, nos assediavam nas ruas, nos cercavam grupos violentos, obrigando a assinar renúncias, isso aconteceu também com prefeitos e governadores. Houve companheiros e companheiras que tiveram suas casas queimadas, meu companheiro presidente da Câmara dos Deputados, Víctor Borda, o quarto na linha de sucessão constitucional, foram até seu domicílio e sequestraram seu irmão, queimaram a casa dele e de seu irmão, e seu irmão foi torturado publicamente, isso consta em um vídeo na internet para quem quiser corroborar a informação. Então, te fazem isso, a meu companheiro presidente da Câmara, ao meu homólogo na Câmara dos Deputados, e eu sei que do lado de fora da minha casa havia também gente estacionada porque saiu nos meios de comunicação, e diziam que havia um grupo de cidadãos mobilizados e pedindo minha renúncia. Então se eu vejo que na casa do presidente da Câmara dos Deputados, que é meu homólogo, estão sequestrando seu irmão e estão queimando sua casa, sei que provavelmente a casa seguinte seria a minha. Já tinham queimado a casa da irmã do presidente Evo Morales também.

Então esse foi um contexto de violência geral e Fernando Camacho havia pedido publicamente, Carlos Mesa havia pedido publicamente que ninguém do MAS assumisse a linha de sucessão constitucional. Aqui se soma que as forças militares haviam expressado que também se haviam somado a partidos políticos, que depois da renúncia de Evo Morales ninguém poderia assumir. É dizer que em um país em que as forças militares haviam pedido a renúncia do presidente, as forças policiais estavam amotinadas nos nove departamentos, rompendo a cadeia de comando e não escutando, dentro dessa cadeia de comando, ignorando as posições do ministério do governo, a oposição política mobilizada, pedindo as renúncias e estacionada nos domicílios de cada um, havia condições de coação, mas havia também impossibilidades materiais para exercer a presidência, era impossível que nesse momento eu pudesse assumir, e pudesse assumir, ademais, em condições em que não continuasse a repressão contra nossos companheiros, porque as forças militares, no mesmos dias de novembro, haviam decidido sobrevoar os pontos de bloqueio camponês, acusando-os de ações terroristas e haviam dito que iriam dirigir-se para desbloquear os pontos em que havia concentração dos camponeses e isso seria um massacre.

Então me manter na presidência [do Senado] não iria solucionar o problema de fundo e nem iria permitir que acabasse a violência em nosso país. Então, nos comunicamos, é claro, com o companheiro Álvaro [García Linera], o companheiro Evo [Morales], e manifestamos essa situação a eles. Também haviam trocado informações e a decisão foi tomada de forma conjunta, não haviam condições políticas para assumir, institucionais. E, também, havia um conjunto de pressões e de coação que estavam realizando contra minha família e contra muitos parlamentares.

E agora, nas eleições autônomas, o MAS sofre das divisões que se fizeram evidentes. Como resolver essas divisões? Elas são fruto do golpe de Estado? Como o partido vai solucioná-las?

Eu acredito que temos muitas tarefas pendentes. A primeira delas é entender que o golpe não terminou, uma vitória política, eleitoral, não faz com que acabem as condições que ficam latentes depois do golpe de Estado. E o digo tanto em âmbito institucional como também nessa rede que se construiu para mobilizar durante mais de 20 dias a população e que segue vigente sob a liderança de Luis Fernando Camacho. A demonstração mais clara disso foram os áudios revelados do ex-ministro de Defesa, Fernando Lopes, que se encontra neste momento no Brasil, fugitivo da Justiça, que nos dias em que Luis Arce estava prestes a assumir como presidente de Estado, tentou organizar um grupo de estrangeiros para que viessem à Bolívia com armas para impedir a posse e tomada de poder de Arce. Então estão latentes aquelas forças golpistas.

O segundo elemento que temos que entender é que ainda com a resposta permanente das nossas forças políticas, é reagir pedindo mais democracia e a solução democrática dos conflitos, a aposta destes setores conservadores não é democrática, se a forma pela qual tomaram o poder não foi democrática, não foi legal, foi inconstitucional e violenta, e quando ganhamos as eleições com mais de 55% de Luis Arce, novamente a resposta articulada da oposição é a violência e contratar mercenários para que venham impedir a posse de Luis Arce porque as apostas destes senhores continua sendo a ruptura democrática, a ruptura institucional e para isso têm que se preparar nossos povos porque não estamos jogando com as mesmas regras. Não estamos estabelecendo uma competição pela administração pública, pelo Estado, pelo poder do Estado sob as mesmas condições.

E um terceiro elemento, é claro que a oposição sabe que a forma de derrotar o Movimento ao Socialismo é tentar dividi-lo e para tentar dividi-lo vão fortalecer os egos de companheiros que tenham uma liderança emergente em nível regional, vão tentar fragmentar nosso projeto político, vão tentar deslocar e deslegitimar lideranças emergentes e lideranças históricas. Então acredito que a terceira linha pela qual eles operam é precisamente a ruptura, que foi um dos elementos que vimos nesse processo, que vimos nesse processo de eleições subnacionais, eu saio nas cidades do eixo troncal, em Santa Cruz, Cochabamba e La Paz, a oposição emergente aparece como uma alternativa própria dentro do Movimento ao Socialismo e isso há que prestar atenção. Porque insisto: não é uma disputa interna, é uma tentativa de fragmentar a força política mais importante do país, que é o Movimento ao Socialismo e que foi ratificada pela vontade popular.

E frente a esses desafios, como deve se comportar o governo de Luis Arce. Há muitos desafios à frente, não?

Sim, mas veja, nosso companheiro Luis Arce tem como principal tarefa a reconstrução do nosso país porque como Jeanine Áñez ao assumir não era portadora de um projeto político, sua única proposta para o país foi o saque, a corrupção, o roubo e tentar instalar as faces de um posterior processo de privatização. Isso foi o que fez Jeanine Áñez. A delinquência do governo Jeanine Áñez chegou até a se preocupar com as licitações de material de escritório em uma instituição. Chegaram a saquear tudo, a saquear o Estado porque não tinham outro projeto político além de enriquecer seus próprios bolsos, então o grande desafio que tem à frente nosso companheiro Luis Arce é que, somado a esse mecanismo de corrupção sistemática que nós encontramos, foi precisamente enfrentar um país destruído pela crise sanitária.

Nós tínhamos projeções, antes de 2019, tínhamos uma projeção de crescimento do PIB que superava os 10%. O MAS, chegamos em 2014, se não me engano, a um crescimento de mais de 6% do PIB. Então como um país que cresce e que, ademais, se constrói uma estrutura de industrialização, de redistribuição da riqueza, de democratização dos espaços de participação e de repente se encontra com um país absolutamente distinto? Então eu acredito que o grande desafio de nosso companheiro Luis Arce primeiro é reconstruir a pátria e terá também nosso companheiro Morales o desafio de manter a coesão interna dentro de nossa estrutura política do Movimento ao Socialismo.

Você falou do passado, de 2014, eu lembro de um pouco antes. A América Latina agora atravessa um momento que poderia sugerir uma recuperação da década ganhada, de grandes tempos. Na Bolívia, a retomada do governo do MAS, no Chile a Constituinte e agora finalmente eleito no Peru um presidente de esquerda, Pedro Castillo. Argentina com [Alberto] Fernández e também a greve nacional na Colômbia. Qual sua opinião? Caminhamos para uma nova etapa do progressismo no continente?

Sim. Primeiro que aqueles que alçaram as bandeiras do fim do ciclo progressista em nossa região se expuseram ao ridículo porque a história está aberta, a história está aberta, os povos a fazem, a fazem as lutas que eles vão construindo por sua soberania, por seus direitos. Agora, é claro que uma tensão desta magnitude a nível regional vai implicar em uma resposta muito mais violenta dos Estados Unidos sobre a nossa região.

Hoje eu me encontro realizando um mestrado em direitos humanos e nesse mestrado começo a entender, meu mestrado aborda como temática como o lawfare, de que foram vítimas Rafael [Correa], Lula, Cristina [Kirchner], finalmente o que fazem é não somente deslegitimar as lideranças políticas dessa década de dignidade que tivemos em nosso continente com nossos companheiros no mando dos Estados. Mas também o que eles fazem, no fundo, é destruir a democracia e destruir fundamentalmente os projetos políticos e destruir as economias dos Estados. Porque os interessam Estados submetidos, os interessam Estados debilitados, os interessam Estados pobres, os interessam Estados que aceitem silenciosos os desígnios norte-americanos para nossa região. E os desígnios norte-americanos para nossa região não são outra coisa senão domínio e pobreza.

Então há uma emergência importante especialmente na região do Pacífico, no Chile com esse novo processo constituinte, com uma mulher mapuche [Elisa Loncón] à frente da Assembleia Constituinte, da convenção constituinte. No Peru, finalmente Pedro Castillo foi anunciado como presidente e terá uma gestão altamente complexa porque não tem uma maioria parlamentar. Na Colômbia, as mobilizações. E não esqueçamos que esses três países são aqueles que fundamentalmente os Estados Unidos buscaram logo após Néstor [Kirchner], Lula e Tabaré [Vásquez], em seu momento, disseram não à ALCA em 2005. Quando estes atores políticos emergiram a partir do Mercosul, freiam o avanço estadunidense, os tratados de livre comércio e a ALCA em Mar del Plata em 2005, a estratégia norte-americana de cooptação dos mercados latino-americanos, começou rapidamente a assinar acordos com países, com o Chile, Peru, Colômbia e se freou uma estratégia de deslocamento territorial ampla de todo o continente sul-americano.

Então esses três países haviam se convertido em centros articuladores, e por isso surge também o Grupo de Lima, em centros articuladores das políticas norte-americanas para nossa região. E hoje a força dos próprios movimentos sociais em cada um desses países está colocando em dúvida a força ou a capacidade de ação dos Estados Unidos sobre nossa região — e isso é muito importante. Mas também imaginamos que implicará em investidas duras sobre nossas regiões, é muito difícil que os Estados Unidos renunciem ao controle da região e renunciem aos países que serviam como articuladores de seu domínio e sua hegemonia em nível regional.

Isto que estamos vendo agora em Cuba, não?

Sim, eu acredito que pelo que começo a falar com alguns companheiros e companheiras de Cuba, o que me dizem é que a mídia internacional, as plataformas de meios comunicação em nível internacional aumentaram muito o que realmente aconteceu na realidade em Cuba. Mas acredito que os Estados Unidos também enfrentam, em nível internacional, um problema sério que é quando se olha o intercâmbio comercial dos países da região sul-americana, encontramos que os países da nossa região começam a ter mais comércio com a China do que com os Estados Unidos.

Isso implica em um problema geopolítico sério para os Estados Unidos. Então já há um avanço político importante a partir da crise sanitária que move o tabuleiro e põe em dúvida a hegemonia norte-americana sobre nossa região. Isso se traduz também nas disputas que Cuba tem, porque Cuba é parte dessa disputa, Cuba está muito próxima dos Estados Unidos e é como uma irrupção que mais os preocupam por isso é que o embargo por mais de 60 anos mantém sua brutalidade, seu rosto mais inumano da democracia norte-americana sobre Cuba.

Todo o mundo se manifesta rechaçando o embargo contra Cuba e ainda assim seguem em vigor as medidas de pressão, ainda assim seguem nessa busca de asfixiar a economia cubana e Cuba foi convertida, basicamente, em uma nova amostra que necessita os Estados Unidos, assim como a queda do muro de Berlim em seu momento, assim como a desintegração da União Soviética. Cuba, para eles, é aquela amostra histórica que se precisa para representar a hegemonia norte-americana, por isso há tanta violência.

Você, Adriana, como chilena-boliviana, como vê a eleição de Elisa Loncón para a Convenção Constitucional do Chile, é um feito histórico em um momento conjuntural especial para os andinos?

Veja, primeiro a eleição de Elisa Loncón, na realidade, não é um feito importante apenas para o Chile, é para o mundo. Que uma mulher indígena seja a cabeça principal de um processo que começa a discutir as bases de um Estado, como um processo constituinte, é uma mensagem para o mundo. Porque nossas repúblicas foram constituídas com base na luta dos afrodescendentes, na luta do movimento indígena, mas no momento de construir as Constituições, no momento deste processo de codificação dos Códigos penais, civis e comerciais, etc., já não existia o movimento indígena, já não existiam os afrodescendentes que lutaram pela independência da pátria, que tanto desejamos em nossa região, pela independência do que antes eram consideradas colônias.

Ou seja, os processos constituintes do começo do século 19 foram processos que deixaram de lado o movimento indígena, que deixaram de lado os afrodescendentes, que deixaram de lado as mulheres, deixaram de lado as grandes maiorias que lutaram pela liberdade e a independência. É muito importante a Assembleia Constituinte porque ressignifica as bases sobre as quais se têm que discutir um Estado, que é precisamente o reconhecimento da pluralidade dos territórios. O reconhecimento da pluralidade daquilo que já concebemos como um Estado, mas que tem dentro múltiplas identidades, múltiplas nações, múltiplas cosmovisões e múltiplas formas de conceber a democracia, conceber a justiça, conceber inclusive a própria economia.

Então os debates constituintes são centrais e que esteja uma mulher indígena à frente, ocorreu o mesmo na Bolívia, na Bolívia nossa companheira Silvia Lazarte, a quem prestamos uma homenagem, era uma mulher camponesa, quechua, mas que havia vivido grande parte de sua vida em Santa Cruz e sobre ela descarregaram toda a fúria patriarcal, colonizadora, classista, eles a chamavam de analfabeta, a chamavam de ignorante, índia iletrada, e nós nos encontramos com o que essa mulher levou adiante o processo de refundação histórica de nossa pátria. Então há a característica simbólica destes processos.


Elisa Loncón, professora Mapuche da Universidade de Santiago, é a presidenta da Convenção Constitucional do Chile / Javier Torres/ AFP

Adriana, você é uma mulher jovem em um entorno político que tende a ser sexista, centrado na figura do homem. Qual é o tamanho do desafio para as mulheres na política?

Veja, eu acredito que a expressão, pelo menos na América do Sul, a expressão desse conservadorismo que tentou fazer um uso político da religião, hoje, todavia, sobrevive no Brasil e em Jair Bolsonaro. Na Bolívia, já não temos Jeanine Áñez, nos Estados Unidos, bem, temos [Joe] Biden, que tampouco é o que necessita a região, mas não é Donald Trump, também.

Mas as mulheres enfrentam o desafio de que se levantou uma corrente conservadora que colocou em dúvida aquilo que pensamos ter conquistado e por que digo isso? Porque nós durante nossa década de dignidade, acreditamos que as mudanças que havíamos patrocinado eram irreversíveis. E Bolsonaro, Jeanine Áñez, Donald Trump, [Mauricio] Macri na Argentina e a traição de Lenín Moreno no Equador nos demonstraram que sim, era possível retroceder.

Então, vendo isso, os países, como por exemplo a Bolívia, nós conquistamos constitucionalmente a paridade e eletividade de gênero, na nossa Carta Magna, conseguimos um avanço muito importante. Porque nossa Constituição política, do Estado, estabeleceu um marco sobre o qual nunca mais se pensa uma Assembleia Legislativa, uma Câmara de Senadores ou uma Câmara de Deputados sem o princípio da paridade de gênero, aqui temos um marco importante.

Mas quando nós pensamos em avançar mais, quando pensamos em avançar, por exemplo, em torno do exercício do nossos direitos sexuais, nossos direitos reprodutivos, como na Argentina por exemplo, a despenalização do aborto. Nós nos encontramos com barreiras ainda enormes e que, ademais, nos fazem um discurso muito conservador porque nos dizem da defesa da vida, mas a defesa da vida arrasta para a cadeia uma mulher. De nada serve, como no caso boliviano, que nós avancemos com uma legislação progressista em matéria de direitos coletivos e LGBT, como a lei de identidade de gênero, quando a discussão na sociedade vai tomando um rumo muito mais conservador do que os avanços que tínhamos conquistado. Então implica nisso, uma mobilização permanente pela defesa das conquistas, mas também pela disputa pelos sentidos comuns da sociedade para avançar, progressivamente, pela conquista dos direitos humanos.

Edição: Thales Schmidt