samba paulista

Cronista urbano, Adoniran Barbosa foi testemunha ocular da transformação de São Paulo

Compositor, nascido há 111 anos, abordou temas como especulação imobiliária e despejos em seus sambas

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Cronista da cidade, Adoniran denunciou a desigualdade e a especulação imobiliária - Reprodução/ pandorafilmes.com.br
O 'Adoniran cronista' sempre se colocava no lugar dos menos favorecidos

Uma cidade em um processo acelerado e violento de crescimento. É essa a São Paulo retratada nos sambas do compositor Adoniran Barbosa, a quem o intelectual Antônio Cândido chamou de “a voz da cidade”. 

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Adoniran nasceu João Rubinato em Valinhos, no interior do estado, no dia 6 de agosto de 1910. No começo da adolescência, se mudou com a família para a cidade de Santo André, vizinha a São Paulo.

Trabalhando como mascate, ele passou a circular muito pelo centro da capital paulista. E foi aí que conheceu os tipos urbanos que influenciariam suas músicas, como explica André Santos, que faz doutorado em História Social sobre a paisagem sonora de São Paulo nos anos 1930 e 1940. 

Por trás do ritmo animado estavam letras muitas vezes trágicas e que abordavam problemas sociais

“Ele bebe muito dessa fonte desses trabalhadores urbanos, dessas populações mais pobres que circulam pela região central de São Paulo e que também compartilham de uma musicalidade muito particular, principalmente na fala. Adoniran ficou muito marcado por isso: por saber incorporar esses modos de falar que estão circulando em São Paulo, e ele consegue capturar isso e trazer pra sua música”, avalia.

:: "Adoniran é mais profundo que um quais, quais, quais", diz cineasta Pedro Serrano :: 

Esse “jeito certo de falar errado” rendeu ao Adoniran problemas com a censura durante o regime militar e a fama de ser um compositor engraçado. A questão do humor foi acentuada pelos Demônios da Garoa.

Com um estilo de interpretação conhecido como “gaiato”, o grupo gravou músicas de Adoniran que se tornaram clássicos, como “Saudosa Maloca” e “Trem das Onze”.

Mas, por trás do ritmo animado e dos “quaisqualigudum”, estavam letras muitas vezes trágicas e que abordavam problemas sociais. A questão da moradia é um deles, como aponta Pedro Serrano, diretor do documentário “Adoniran – Meu nome é João Rubinato”.


Imagem do documentário: "Adoniran, Meu Nome é João Rubinato" / Reprodução

“Tudo isso da moradia está muito ligada ao progresso a à questão de como a cidade foi virando essa megalópole de uma maneira desenfreada e pouco planejada e que vai deixando os mais pobres à margem. Hoje a gente tem esse nome muito definido e muito claro de "especulação imobiliária". Acho que na época ele já cantava sobre isso sem ter essa essa nomenclatura”, diz. 

:: O som transgressor dos morros :: 

A música “Despejo na favela”, gravada por Beth Carvalho, mostra bem o olhar do Adoniran cronista, que sempre se colocava no lugar dos menos favorecidos. Outra característica marcante das músicas é que elas contam histórias.

Foi isso o que chamou a atenção de Maurício Squarisi, criador e diretor da animação “Rubinata”, que homenageia Adoniran. 

“As músicas dele são visuais. Parecem roteiros mesmo, porque ele escreve com imagens da cidade. Quando você escuta as músicas dele, você vê o carro que atropelou a Iracema, você vê o Papai Noel que não passou na chaminé. São cheias de imagens. E ele faz dividido em cenas. Se a gente pegar cada música dele, dá pra virar um curta-metragem. Já está tudo ali, roteirizado”.  


Rubinata: a personagem boêmia criada por Maurício Squarisi homenageia Adoniran / Maurício Squarisi

Nesses pequenos filmes em forma de música, Adoniran misturou crítica social, humor, amor, poesia e uma pitada de tristeza.

Ele mesmo se sentia um pouco deslocado no meio do crescimento vertiginoso da cidade. Adoniran, por exemplo, tinha medo de andar de metrô e de elevador. E chegou a chamar São Paulo de “inferno que anda” em uma entrevista à televisão. O documentarista Pedro Serrano fala desse aspecto do compositor. 

“Ele é um cara que gostava da cidade provinciana e nunca se adaptou a esse progresso, nunca mais conseguiu se enxergar dentro dessa cidade tão voraz onde os espaços deixaram de ser públicos, comunitários, para as pessoas namorarem, se encontrarem, conversarem. A cidade deixa um pouco de ser humana e vira uma cidade muito mais funcional, muito mais corrida. E isso foi muito sentido pra ele”. 

:: Cachaça, caipirinha e prosa na São Paulo da garoa :: 

Quem conseguiu captar bem esse lado mais melancólico de Adoniran foi Elis Regina. A interpretação da Pimentinha para “Saudosa Maloca” destacou o drama das pessoas que perdem suas casas. 

Para André Santos, a força da obra de Adoniran está na capacidade de tratar temas pesados com beleza. 

“‘Saudosa maloca’ é um exemplo notório dessa capacidade, dessa característica do compositor, ele sabe extrair beleza de uma situação trágica.  Há beleza na forma de se resistir a esse processo violento que perpassa esses corpos”.

Processo violento que segue até hoje. Déficit habitacional, especulação imobiliária, população em situação de rua ou vivendo em moradias precárias... Os temas abordados por Adoniran continuam, infelizmente, bastante atuais. 

Edição: Douglas Matos