Misoginia e política

Reuniões presidenciais com mulheres são promovidas como "escândalo sexual" na Argentina

Principal alvo de tweets de ódio, atriz Florencia Peña responde: "por que não se incomodaram com as visitas de homens?"

Brasil de Fato | Buenos Aires, Argentina |
Legisladoras pedem expulsão do deputado federal Fernando Iglesias, quem levantou a versão de "escândalo sexual" sobre as visitas presidenciais. - Câmara dos Deputados Argentina

A oposição ao presidente da Argentina, Alberto Fernández, busca capitalizar como escândalo a lista de visitantes com nomes de mulheres na Quinta de Olivos, residência oficial do chefe do Executivo federal. A estratégia de representar as agendas com mulheres como possíveis encontros sexuais também foi repercutida em meios de comunicação.

O episódio teve como protagonistas deputados do Partido Republicano (PRO), que tornaram tendência no Twitter – e, logo, em "escândalo nacional" – a presença de certas mulheres em reuniões presidenciais durante a pandemia. O que poderia ser uma estratégia da oposição para atingir o Frente de Todos (coalizão governista), terminou caindo, mais uma vez, na perspectiva misógina, aparentemente ainda exitosa – e fantasiosa.

Os ataques a figuras públicas na política, quando se tratam de mulheres, são conhecidamente diferentes. Adjetivos sexistas e imagens representando o "temperamento" das ex-presidentas Dlima Rousseff e Cristina Kirchner por meios de comunicação e figuras da oposição ilustram esta problemática de maneira contundente.

A misoginia no âmbito político não se desdobra, porém, apenas àquelas que ocupam cargos públicos. São ataques a figuras que debatem publicamente e que possam ter incidência na opinião pública. Foi o caso, nas últimas semanas, com o ataque a atrizes argentinas, coletivo que se solidificou como potência política ao participar ativamente da campanha pelo aborto legal no país.

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O deputado Fernando Iglesias (PRO) foi a um canal televisivo e também publicou em suas redes sociais mensagens de conotação sexual sobre a reunião que a atriz e apresentadora Florencia Peña realizou com Fernández na residência presidencial. Também foram atacadas outras mulheres que constam na lista de visitantes à Quinta de Olivos ao longo de 2020, durante a fase mais estrita do isolamento social, preventivo e obrigatório.


Tweet do deputado Fernando Iglesias, sugerindo que a visita da atriz Florencia Peña ao presidente teria cunho sexual. "Ela de joelhos, não?", respondeu outro deputado do PRO, Waldo Wolff. / Reprodução Twitter

A lista foi amplamente divulgada como uma denúncia pelos meios de comunicação alinhados à oposição, e também incluía visitas noturnas nos dias dos aniversários do presidente e sua esposa.

"A oposição ataca o governo em seu papel de oposição, mas o que aconteceu foi uma estratégia de assédio que faz parte de uma ação sistemática", pontua a cientista política María Esperanza Casullo. "É preocupante, e beira à violência política que tenha sido efetuada não por desconhecidos, trolls anônimos, mas por deputados e outras caras visíveis."

O lugar da mulher na política

Desde 2017, a Argentina conta com a Lei de Paridade de Gênero em Âmbitos de Representação Política, com o objetivo de reparar a ausência de mulheres em cargos de gestão pública. Apesar disso, em 2018, um relatório apresentado pela Equipe Latino-americana de Justiça e Gênero (ELA) revelou que 50% das mulheres em cargos políticos na Argentina já sofreram violência psicológica, 28% simbólica, 22% econômica, 9% física e 7% sexual.

"Vemos que o avanço do feminismo e de mulheres na política geram múltiplos efeitos, e que são muito complexos", observa Casullo, investigadora sobre temáticas como populismo e gênero. Ela pontua a diferença entre misoginia de condutas de assédio. "Nesse caso, não é apenas misoginia, mas uma forte campanha que mostrou que, uma coisa é ser misógino, como atitude em âmbito privado, e outra é ter uma atitude sistemática, que é o que vemos na Argentina, onde se selecionam mulheres como alvo para atacá-las durante dias com dezenas de tweets", pontua, em uma equação que conta, também – e quase sempre – com robôs e trolls que cuidam de manter o assunto em tendência.

"A denúncia do caso de Olivos pressupõe que as mulheres não têm caráter político, que não tinham por que participar dessa esfera pública de debate, e que não haveria outro motivo que não fosse sexual", avalia a cientista política Paloma Dulbecco, do espaço de gêneros Micaela García. "Isso é uma redução a um lugar 'de origem' que nunca existiu."

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Um limite à misoginia de políticos

Como resposta, legisladoras de diferentes partidos – incluindo o próprio Partido Republicano – repudiaram, em maior ou menor tom, as declarações dos deputados que fizeram comentários misóginos no caso de Olivos.

A deputada federal Mónica Macha (FdT), presidente da Comissão de Gênero na Câmara, ressalta o impacto que esse tipo de assédio tem, mesmo entre as representantes políticas. Ela é uma das autoras de um projeto que pode resultar na expulsão de Fernando Iglesias do Congresso pelo episódio.

"Estamos em um lugar de função clara, de defesa de ampliação de direitos e militância feminista e transfeminista e, no entanto, quando há uma situação violenta como essa, é difícil encontrar a forma de pôr um freio", conta. "No caso de Florencia foi um basta, vimos que precisávamos agir diante disso, inclusive porque não foi a primeira vez. O fato dele ser um deputado, um representante do povo, é um lugar que implica uma responsabilidade diferente. Por isso, decidimos armar esse projeto, para marcar um limite", analisa Macha.

O projeto justifica a sanção ao deputado por "inabilidade imoral", baseado no artigo 66 da Constituição do país. Ainda não há previsão de votação.

Edição: Thales Schmidt