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Mostre os campos verdes para as crianças e deixe a luz do sol entrar em suas mentes

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Ilustração do dossiê "O CoronaChoque e a educação brasileira: um ano e meio depois", lançado pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social em agosto de 2021 - Reprodução
E mostre às crianças os campos verdes, e faça seu mundo correr azul em areias douradas

Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Há exatamente dois anos, caminhei com meus colegas do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social pelo Acampamento Marielle Vive, nos arredores de Valinhos, estado de São Paulo, com uma grande sensação de déjà vu. O acampamento se assemelha a muitas outras comunidades desesperadamente pobres de nosso planeta. A Organização das Nações Unidas calcula que uma em cada oito pessoas em nosso planeta – um bilhão de seres humanos – vive em tal precariedade. As casas são feitas de uma mistura de materiais: lonas azuis e pedaços de madeira, chapas de ferro e tijolos velhos. Mil famílias moram no Acampamento Marielle Vive, em homenagem à parlamentar socialista brasileira assassinada em março de 2018.

:: Agroecologia é resistência popular no Acampamento Marielle Vive, em Valinhos (SP) ::

O acampamento Marielle Vive não é qualquer “favela”, uma palavra com tantas conotações negativas. O clima em muitas delas é desolador, grupos criminosos e organizações religiosas fornecendo uma “cola social” frágil. Mas o Acampamento Marielle Vive exala uma aura diferente. Bandeiras do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) estão por toda parte. Os moradores transmitem uma dignidade tranquila e amigável, muitos deles vestindo camisetas ou bonés de sua organização. Eles têm um ar de quem está pronto: preparados para defender seu acampamento do despejo pelas autoridades locais e para construir uma comunidade genuína para si mesmos.


Cozinha comunitária do acampamento Marielle Vive, 2019 / Setor de Comunicação / MST-SP

No centro do acampamento está uma cozinha comunitária onde alguns dos residentes fazem suas três refeições. A comida é simples, mas nutritiva. Perto está uma pequena clínica que é visitada por um médico uma vez por semana. Do lado de fora das casas há canteiros de flores e hortas. As autoridades municipais da cidade vizinha deixaram de permitir que o ônibus escolar pegasse as crianças do acampamento e as transportasse para a escola da cidade. Enquanto os pais lutavam para levar seus filhos à escola todos os dias, o Acampamento Marielle Vive construiu uma sala de aula no local para atividades extracurriculares, que continuaram durante a pandemia.

Tassi Barreto, do MST, me disse no início de agosto de 2021 que o acampamento não teve mortes por covid-19 porque “fizemos ações contundentes e rígidas para evitar infecções”. O município local negou água ao acampamento, o que é – como diz Barreto – “um crime contra os direitos humanos”. Os moradores continuaram desenvolvendo o trabalho coletivo, fortalecendo a cozinha comunitária e o posto de saúde comunitário, e avançando na produção agroecológica na horta, que é construída em forma de mandala. A horta tem sido tão produtiva que o acampamento conseguiu vender cestas de produtos nas cidades vizinhas de Valinhos e Campinas.

A sala de aula fica em uma parte proeminente do acampamento Marielle Vive. Mas Barreto conta que “as crianças e jovens que estão em idade escolar tiveram bastante dificuldade pois não ocorreram aulas presenciais e haviam atividades virtuais que não conseguimos participar”. A liderança do acampamento teve que inovar: tarefas tiveram que ser impressas e distribuídas aos alunos a cada quinze dias e – já que os professores da escola pública não podiam revisá-las – o acampamento recorreu a educadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), para supervisionar seu trabalho. A educação das crianças tem sido um sério desafio.


Ilustração do dossiê "O CoronaChoque e a educação brasileira: um ano e meio depois", lançado pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social em agosto de 2021 / Reprodução

Do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social vem um dossiê, O CoronaChoque e a educação brasileira: um ano e meio depois (agosto de 2021), que aborda em profundidade a crise da educação pública em decorrência da pandemia. Nosso dossiê cita um estudo do Unicef que mostra que, ao final de 2020 no Brasil, cerca de 1,5 milhão de crianças e adolescentes abandonaram os estudos e 3,7 milhões estavam formalmente matriculados, mas não tinham acesso a aulas remotas.

:: Menos custo, mais exploração: como gigantes do ensino privado tiraram vantagem da pandemia ::

As Nações Unidas estimam que 90% dos estudantes em todo o mundo – 1,57 bilhão de crianças – não puderam frequentar a escola pessoalmente durante a pandemia, muitos deles recebendo a orientação de ter aulas online. No entanto, um estudo recente da Unesco mostra que metade da população mundial não tem conexão com a internet. São 3,6 bilhões de pessoas sem acesso à rede mundial de computadores. De acordo com o estudo, “pelo menos 463 milhões ou quase um terço dos alunos em todo o mundo não podem acessar o ensino remoto, principalmente devido à falta de políticas de aprendizagem online ou à falta de equipamentos necessários para se conectar em casa”. Metade da população global não tem internet e muitos daqueles que podem acessá-la não podem pagar as tecnologias e ferramentas necessárias para participar do ensino à distância. A exclusão digital é ainda mais acentuada em termos de gênero: nos países menos desenvolvidos, apenas 15% das mulheres usavam a internet em 2019, em comparação com 86% das mulheres no chamado mundo desenvolvido.

O uso da educação digital encorajou as megacorporações a fecharem o cerco da educação pública, tornando cada vez mais difícil para a maior parte das crianças terem acesso a qualquer tipo de educação. As grandes empresas enxergam oportunidades com clareza. Como a Microsoft explicou, “as consequências da covid-19, os avanços contínuos na tecnologia digital e a intensificação da demanda reprimida por aprendizagem centrada no aluno se combinaram para apresentar uma oportunidade sem precedentes de transformar a educação em sistemas inteiros”. Como Bia Carvalho, do movimento Levante Popular da Juventude nos disse em nosso dossiê, “para esses empresários, a educação à distância é mais lucrativa, porque permite cortar uma parte dos gastos e acessar um número muito maior de alunos. Então, do ponto de vista da educação como mercadoria, em que eles vão lá vender aulas, a educação à distância faz muito mais sentido”. Os fundos públicos já foram usados ​​para financiar a expansão maciça dos sistemas privados de educação digital.


Ilustração do dossiê "O CoronaChoque e a educação brasileira: um ano e meio depois", lançado pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social em agosto de 2021 / Reprodução

Nosso dossiê termina destacando três questões-chave: a necessidade de aumentar o investimento em infraestrutura educacional pública (garantindo que não haja privatização); a necessidade de valorizar, formar e apoiar o desenvolvimento profissional dos professores; e a necessidade de lutar por um novo projeto educacional. Este último é de grande importância. Indaga acerca da finalidade da educação, que prepara o palco sobre o qual os jovens aprendem a fazer perguntas sobre sua sociedade, seus valores, a discrepância entre seus valores e suas instituições sociais e sobre o que se pode fazer a respeito dessa discrepância. Há uma linha direta entre os protestos estudantis que convulsionaram o Chile em 2011, a África do Sul em 2015 e a Índia em 2015-16 com o sentimento presente em nosso dossiê. Esse novo projeto educacional precisa ser elaborado. É uma necessidade.


Sala de aula no acampamento Marielle Franco, 2021 / Setor de Comunicação / MST-SP

Quando passeamos pelo Acampamento Marielle Vive em 2019, duas moças, Ketley Júlia e Fernanda Fernandes, se juntaram a nós. Elas nos contaram sobre sua escola, incluindo as aulas de inglês que estavam tendo na sala de aula do acampamento. Nos últimos dois anos, Ketley juntou-se a outras mulheres no acampamento como uma importante liderança em sua comunidade. Ela coordena o jardim da mandala, ajuda no almoxarifado e organiza a doação de roupas e cobertores, tudo isso apesar de lutar contra os desafios da própria saúde.

“Em meio à barbárie”, disse-me Barreto, “a esperança sempre aparece”. Ketley agora está grávida, “uma alegria que nos encoraja em nossa luta”, disse Barreto. Fernanda agora mora no Acampamento Irmã Alberta, próximo a São Paulo, onde continua militando no MST enquanto cria dois filhos. Os filhos de Fernanda e o filho de Ketley fornecem esperança, mas também precisam de esperança para serem moldados em um mundo com um projeto educacional humano e esperançoso.

Em 1942, o poeta, socialista e pacifista inglês Stephen Spender escreveu “An Elementary School Classroom in a Slum” [Uma escola primária em uma favela]. As crianças na escola da favela, escreve Spender, têm um futuro “pintado com uma névoa”, seus mapas “favelas tão grandes quanto a tragédia”. Devemos quebrar as janelas daquela favela, escreveu Spender:

 

E mostre às crianças os campos verdes, e faça seu mundo
Correr azul em areias douradas, e deixe suas línguas
Correrem nuas para os livros com as folhas verdes e brancas abertas
A história é delas cuja língua é o sol.

 

Cordialmente,

Vijay.

 

*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano. Diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Leia outras colunas.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo