Coluna

Julgamento no STF sobre o Marco Temporal é ponto crucial na luta pela vida dos povos indígenas

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O Marco Temporal estabelece uma espécie de marco zero sobre as demarcações, descumprindo princípios constitucionais ao exigir que comprovemos a posse da nossa terra - Carl de Souza / AFP
Além de inconstitucional, a tese Marco Temporal é uma afronta a séculos de lutas e conquistas

O mês de agosto indígena iniciou sob forte ataque aos nossos direitos. Após as mobilizações ocorridas em junho para barrar o Projeto de Lei 490 - que permite o arrendamento das terras indígenas para garimpo, mineração e grandes empreendimentos - entra na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) a votação do Marco Temporal.

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O julgamento do Marco Temporal lança destaque para uma questão que desde 2009 tem nos preocupado. No dia 25 de agosto, irá a julgamento a ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra a demarcação da Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, onde vivem comunidades Xokleng, Guarani e Kaingang, com base no Marco Temporal.

O julgamento terá status de “repercussão geral", o que garante que a decisão servirá como diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios no país.

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O Marco Temporal estabelece uma espécie de marco zero sobre as demarcações, descumprindo princípios constitucionais ao exigir que comprovemos a posse da nossa terra até a data da promulgação da Constituição Federal, promulgada em 1988. Um tipo de condicionante que tem uma série de problemas.

Dentre eles, o de não garantir que as provas apresentadas pelo povo indígena em questão sejam realmente validadas nos julgamentos, o da interferência política e econômica que pode acontecer nas instâncias do Poder Judiciário e o de garantir posições desfavoráveis às demarcações, além de ignorar as expulsões forçadas em vários territórios originários ocorridas antes da promulgação da Constituição, como vemos acontecer em Mato Grosso do Sul, na Bahia, no Paraná e mesmo em inúmeras tentativas de derrubar a demarcação da TI Guarani no Jaraguá, em São Paulo.

Além de inconstitucional, o Marco Temporal é uma afronta a séculos de lutas e conquistas da população indígena

A letra da Constituição é clara e contundente quanto ao fato de que a posse e o usufruto da população indígenas sobre seu território é originário, e que ao Estado compete demarcar essas terras

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Mas de onde vem a tese do Marco Temporal?

Um breve histórico nos leva até o julgamento da ação judicial 3.388/2009, que versa sobre a Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, caso que ganhou destaque nos meios jurídicos e na sociedade, já que era área de extremo conflito e que teve seu pedido de nulidade da demarcação negada pelo STF, com base na tese de que povos indígenas só poderiam reivindicar o direito a suas terras se as estivessem ocupando na data da promulgação constituinte.

Diversas condicionantes foram debatidas para a demarcação e homologação da TI Raposa Serra do Sol, o Marco Temporal era uma delas. Em 2013, o próprio STF definiu que o tal marco não tinha efeito vinculante e não se estendia para o procedimento demarcatório de outras terras indígenas.

Porém, embora não aprovado pelo STF, o Marco Temporal já vem repercutindo em julgamentos de primeira e segunda instância em diferentes terras indígenas, baseados no parecer da Advocacia Geral da União 001/2017 - que impõe para toda a Administração Pública a observância do Marco Temporal -, colocando em xeque demarcações já realizadas, impedindo a demarcação de outras e garantindo assim o avanço da agenda e do pacote econômico dos grandes latifundiários e da bancada ruralista.

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A importância da luta por Demarcações de Terras Indígenas

A questão fundiária no Brasil é central na discussão sobre as desigualdades sociais. No país, 49% do território está concentrado nas mãos de 3% da população. De todo o território brasileiro, apenas 12% é hoje demarcado como terras indígenas.

Esta absurda concentração tem mais de 500 anos de história. Em 1755, o então Diretório dos Índios criou um dos primeiros marcos legais da questão agrária no país, com a previsão da expropriação de terras indígenas, ao rever o Tratado de Tordesilhas e garantir o disposto pelo Tratado de Madri, de 1750. Em 1850, a Lei de Terras reforçou a concentração fundiária, estabelecendo que apenas quem pudesse pagar pela terra teria direito a ela, modelo que se mantém até os dias de hoje.

Mesmo sendo 5% da população mundial, guardamos 80% dos direitos da natureza. No contexto de crise ambiental e climática que vivemos, a preservação dos nossos territórios é fundamental na luta contra a exploração capitalista e o agravamento da crise ambiental.

Lutar contra os retrocessos dos direitos indígenas é missão não apenas dos povos indígenas brasileiros, mas de toda a sociedade que não admite que direitos conquistados sejam usurpados, sejam da classe trabalhadora, sejam das populações negra e quilombola. É lutar pelo direito não apenas à terra, mas à vida de centenas de etnias que resistem no Brasil. O genocídio promovido contra nós, povos indígenas, é considerado o maior da História. A colonização tombou e ceifou a vida de 70 milhões de indígenas.

Por isso estamos em luta e convocamos para as mobilizações que acontecerão no Acampamento Luta Pela Vida em Brasília, a partir do dia 22 de agosto.

Sangue indígena, nenhuma gota a mais!

::Contribua com a Marcha das Mulheres Indígenas – 07 a 09 de Setembro em Brasília::

 

*Pagu Rodrigues é indígena, socióloga formada pela USP, estudante de Direito e membra da Comissão de Povos Indígenas da OAB/SP.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vinícius Segalla