Coluna

A impermanência e o amor pelos animais

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Asdrubal era, sem dúvida, meu melhor amigo e foi meu companheiro neste último ano e meio de pandemia do coronavírus - Arquivo pessoal
Aquele universo afetivo inteiro partiu de mim e da minha forma de expressar afeto nessa vida

Acabo de perder o meu cão, o Asdrubal, que tinha quase 17 anos idade. Asdrubal nasceu aqui em casa, era filho de uma cadelinha chamada Princesa, uma chau chau que era do meu filho Pedro mas quem acabou tomando conta fui eu.

Asdrubal era, sem dúvida, meu melhor amigo e foi meu companheiro neste último ano e meio de pandemia do coronavírus. 

Durante todo este período tomei conta dele, que já estava bem velhinho e começou apresentar problemas de saúde, me dando bastante trabalho. Esse trabalho, de alguma maneira, me empurrou para diante no momento em que não poderia sair de casa, por causa da pandemia e do perigo iminente de contaminação.

Foi minha escolha voluntária fazer esse retiro com Asdrubal, esse lockdown, que acho que deveria ter sido indicado pelos governos ainda em março de 2020, se houvesse alguma compaixão no Brasil.

Asdrubal andou com vários problemas de saúde devido à idade e, de repente, há uma semana nós descobrimos que ele estava com um câncer bastante adiantado. Segundo o que me disse a veterinária era um câncer com características muito agressivas, pois nós só o descobrimos poucos dias antes de Asdrubal vir a morrer. Se desenvolveu muito rápido.

Foi uma semana intensa de cuidados, eu fiquei ao lado dele e tive a oportunidade de assistir o momento mais dramático que um ser vivo passa - e todos nós passaremos: a hora da morte!

Fiquei muito impactada, mesmo sendo budista - no budismo a prática que mais fazemos é o treinamento da mente na hora da morte. "O livro tibetano do viver e morrer" do Sogyal Rinpoche treina as pessoas exatamente para passarem por isso, seja como acompanhantes ou assistentes, ou a própria pessoa que está morrendo.

Apliquei todos os meus poucos conhecimentos de prática: preces, orações e meditação durante todo o tempo que estive ao lado do meu cãozinho moribundo. Fiquei ansiosa para liberá-lo do sofrimento mesmo sem qualquer condição de fazê-lo.

Por fim, depois de vários dias e noites insones, grande sofrimento e eu determinada a não praticar eutanásia, neste último domingo, dia 15, no final da noite, ele partiu. 

E partido também ficou meu coração.

Fiquei refletindo sobre as relações que nós construímos com os animais nessa vida. Como é possível a gente amar tanto um animal? Creio que às vezes a gente ama mais um animal do que um ser humano. Uma vez a Xuxa me disse isso. Fiquei pensando no que o budismo pensa sobre essas relações karmicas. E fiquei pensando como a vida é breve e como é mágico o momento da morte.

De repente o que era até aquele instante já não é mais. Toda a energia aplicada durante anos, meses e horas, assim como nossa relação com o tempo, nossas expectativas, nossa maneira de fazer as coisas e de controlar a agenda... tudo deságua no sentimento de falta de controle, de impotência, fragilidade, vulnerabilidade, enfim, me descobri tão humana diante do cadáver do meu cãozinho depois de desejar tanto que ele partisse e fosse liberado de tanto sofrimento. 

Ao acordar no dia seguinte e olhando para o vazio que ficou a minha vida - que estava condicionada a cuidar dele 24 horas por dia, vendo se estava necessitando de mim pra alguma coisa - pensei também que era uma relação afetiva muito forte, muito grande. Ele foi das minhas maiores relações, das mais longas que tive nessa vida, foram 17 anos de afeto.

Isso me faz lembrar também de quando eu era criança. A história de um cãozinho que nasceu de uma ninhada de cinco filhotinhos na casa da minha mãe. Ela, traumatizada porque eu levava todos cachorros da rua pra casa pra cuidar, foi dando um por um. Eu, naturalmente, queria ter ficado com os cinco. Porém, só um eu batizei. O chamei de Gordo e eu pedia, por favor, para que não desse o Gordo para ninguém.

Ao voltar da escola vi uma mulher no portão de casa à espera de minha mãe. Ela tinha ido buscar o cachorrinho. Eu me pus a chorar e, olhando da janela do sobrado da nossa casa, vi a cena da mulher recebendo o Gordo e partindo.

Essa memória triste eu acabei usando muitas vezes para chorar quando fiz a Escrava Isaura, pois eu devia chorar muito em cena. Me lembrava da cena do meu cachorrinho Gordo indo embora de casa e eu destroçada. Funcionava para mim. É o que chamamos no teatro de método Stanislavski de memória emotiva.

Enfim, aquele universo afetivo inteiro partiu de mim e da minha forma de expressar afeto nessa vida, que vem pelo imenso amor à Natureza, aos animais e à floresta.

Todo esse sentimento foi potencializado e exponencialmente traduzido através de poucas lágrimas mas de um aperto no peito, uma dor brutal, uma trava muscular que só agora, dias depois, estou conseguindo dissolver pela prática de yoga e pela respiração.

Desejo que todos os seres sejam saudáveis e felizes e que todos tenham a oportunidade de se iluminar numa vida! 

Que todos possam se libertar do sofrimento e das causas do sofrimento. Todos, sem exceção!

 

*Atriz e diretora, protagonizou muitas novelas que hoje são clássicos da teledramaturgia mundial. Premiada no cinema nacional e internacional, é uma personalidade brasileira com influência internacional fundamental na luta em defesa do meio ambiente e dos povos da floresta há mais de três décadas. Siga Lucélia nas redes sociais: twitter.com/luceliaoficial | instagram.com/luceliasantosoficial 

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo