Ideologia

Fetiche da "liberdade absoluta" faz EUA retrocederem na pandemia

Reivindicando autonomia, milhões se recusam a tomar a vacina, usar máscaras e respeitar medidas de distanciamento

Brasil de Fato | Los Angeles (EUA) |
Centro de vacinação no Missouri. Apenas 4 em cada 10 habintates do estado dos EUA tomaram vacina contra a covid-19. - Spencer Platt/Getty Images via AFP

"Terra dos livres e lar dos valentes": os Estados Unidos têm na letra de seu hino um refrão para parte de sua população que insiste em não se vacinar e seguir orientações sanitárias para conter a nova fase da pandemia.

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Segundo o jornal The New York Times, mais de 150 mil casos de infecção pelo novo coronavírus foram registrados na última semana, e o número de mortos no país já passa dos 630 mil. 

"O que estamos vendo agora é uma combinação de fatores: uma variante mais contagiosa, que é a Delta, o relaxamento da população em relação às medidas de proteção e a resistência por parte das pessoas em não tomar a vacina", analisa ao Brasil de Fato o médico William Moss, diretor executivo do Centro Internacional de Acesso a Vacinas da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg. Ainda segundo ele, de 90% a 95% dos pacientes internados em estado grave, nos Estados Unidos, são indivíduos que não foram imunizados.

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A vacina contra a covid-19 parece não combater a ideia de que a liberdade individual de cada pessoa não é maior do que a saúde coletiva.

"Isso é parte de um pensamento bem individualista do conceito de liberdade, algo que aconteceu no século XIX", explica a professora Annelien De Djin, que leciona História da Política Moderna na Universidade de Utrecht.

Autora do livro "Freedom", publicado pela Harvard University Press, De Djin identificou em suas pesquisas que a individualização da liberdade foi uma invenção dos liberais. "Passamos a falar da liberdade como um conceito individual e não mais coletivo porque a elite temia a democracia. Assustados com o avanço dos sistemas políticos democráticos e de como isso poderia expropriar suas fortunas, ricos e poderosos passaram a combater certas lutas em nome da liberdade", afirma a estudiosa. "Isso lhes daria base para argumentar que, mesmo uma multidão pedindo pelo aumento dos impostos, seria um ataque à liberdade individual."

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Essa ideia, que persiste ainda hoje, alimenta protestos como os vistos nas ruas de Nova York na segunda semana de agosto. Dezenas de manifestantes foram até o City Hall Park, sede do governo local, com cartazes e megafones. O levante era contra a resolução governamental que torna obrigatória a vacina para determinados trabalhadores e exige que academias, restaurantes, bares e outros estabelecimentos verifiquem a vacinação de seus clientes. 

Vivemos em um país que respeita as leis individuais, mas isso não significa que somos livres para ferir os demais", desabafa o médico William Moss. "Volto a afirmar: aqueles que se recusam a usar máscaras, a tomar vacina e respeitar o distanciamento social são com certeza um risco para si, mas também são uma ameaça para todos os que lhe cercam.

Os Estados Unidos trabalham há anos com certas exigências de vacinação. Para uma criança ser matriculada no jardim de infância da rede pública, por exemplo, os pais precisam atestar que as doses de rubéola, meningite, hepatite B e outras doenças virais e transmissíveis estão em dia.

"Acho que as pessoas que dizem que essas novas medidas para conter a pandemia ferem sua liberdade individual não entendem que regras não são uma prisão ou ameaça", pondera a professora De Djin, "nós dirigimos de um lado da pista, paramos em semáforos vermelhos, abrimos nossas malas em aeroportos, passamos por detectores de metais e nos sujeitamos a inúmeras outras determinações que nos ajudam a viver melhor. Sem regras, não há como essa complexa sociedade industrializada funcionar. Acredito que essas novas medidas apresentadas na pandemia, para nos proteger, não sejam um ataque à liberdade de cada um."

A professora da Universidade de Utrecht avalia que nem toda resolução que parte de uma hierarquia é benéfica ou isenta de maldade, mas que é fácil saber distinguir as decisões que ameaçam ou não a liberdade de cada um.

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"A pergunta-chave é: quem está criando essas leis? Nós vivemos em uma sociedade cheia de leis e é inevitável que seja assim.Mas quem as determina e aplica? Se a resposta é que uma pessoa ou um pequeno grupo de pessoas que não pode ser responsabilizado toma as decisões, e a população não tem nenhum tipo de controle, então é para se preocupar, mas caso contrário, nossa liberdade está garantida."

Edição: Thales Schmidt