Rio Grande do Sul

SAÚDE

Porto-alegrense ganha salvo-conduto para cultivar maconha em casa para uso medicinal

Habeas corpus coloca em debate as dificuldades de pacientes acessarem remédios devido à proibição da cannabis no Brasil

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Derivados da maconha para tratamento da saúde ganham força no mundo, mas a proibição dificulta acesso no Brasil
Derivados da maconha para tratamento da saúde ganham força no mundo, mas a proibição dificulta acesso no Brasil - Foto: Tatevosian Yana

Uma ação conjunta da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares no RS (Renap-RS) e da Associação Vida Verde – ViVer garantiu na Justiça a um morador de Porto Alegre o direito de plantar maconha em casa para uso medicinal sem correr o risco de ser preso. A decisão foi proferida em liminar de habeas corpus preventivo pelo juízo da 11ª Vara Criminal do Foro Central na última sexta-feira (3) e permite ao paciente semear e cultivar plantas de cannabis sativa para extrair óleo rico em canabidiol.

M. J.* convive há oito anos com uma dor crônica de fundo neurológico e complicações como fibromialgia e atrofia muscular. Recentemente, foi diagnosticado com a síndrome de Asperger, um espectro do transtorno autista. Passou por diversos tratamentos e fez uso de uma variedade de medicamentos, todos com desagradáveis efeitos colaterais e sem proporcionar grande alívio.

Foi através das propriedades terapêuticas da maconha que ele encontrou alívio para sua condição. “Desde 2018, quando iniciei o tratamento com o óleo de cannabis, tive ótimos resultados, principalmente no controle da dor, na melhora do sono e na estabilização do humor. Tudo isso sem efeitos colaterais significativos”, conta.

Dificuldade do acesso no Brasil

O canabidiol, que melhora a saúde de M.J., tem propriedades relaxantes, ansiolíticas, anti-inflamatórias, entre outras. É utilizado no tratamento de diversas doenças psiquiátricas ou neurodegenerativas. Era proibida no Brasil, até 2015, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a retirou da lista de substâncias proscritas e autorizou sua importação controlada.

Outra substância encontrada na cannabis é o tetrahidrocannabinol (THC). Responsável pela maior parte dos efeitos psicoativos do consumo de maconha, também possui propriedades medicinais como redução do estímulo doloroso e de enjoos e indução de sono e de apetite. A substância ainda é proibida no Brasil, sendo tolerada em medicamentos que contenham canabidiol.

Apesar do avanço com relação ao canabidiol, ainda é difícil para os pacientes acessarem a esse tipo de medicação. Como o plantio e produção de maconha segue proibido no Brasil, mesmo para fins medicinais, o poder fica todo nas mãos da indústria farmacêutica. E além da receita médica, os pacientes precisam de uma autorização especial da Anvisa. Hoje, poucas empresas possuem autorização para comercializar os medicamentos à base de cannabis no país. Um frasco de 30 ml de óleo rico em canabidiol custa em média R$ 2,5 mil.

Para os que precisam de remédios à base de princípios ativos da cannabis e não tem condições de arcar com os altos custos, restam alternativas como plantar e produzir sua própria medicação, ou buscar o apoio de associações. Ambas as situações colocam em risco de serem presas as milhares de famílias que precisam dos remédios.

Anos de luta para ter o direito de plantar

M.J. afirma que ainda está assimilando esta liminar. “São quase quatro anos sonhando com essa possibilidade, e agora conquistá-la é um grande alento. Até porque, surgiram tantos entraves legais nos últimos anos que essa liminar traz uma luz ao debate deste tema, por parte do Judiciário.”

O habeas corpus aponta que “há indicativos de que o paciente efetivamente precisa do óleo de cannabis produzido artesanalmente para suportar as dores intratáveis e outros sintomas decorrentes de doenças que o acometem, já que, pelo alegado, não possui condições financeiras de arcar com o custo da medicação importada”.

O paciente conquistou a autorização de importação em 2019, que foi renovada em 2021. Mas nunca importou, já que dispenderia cerca de R$ 5 mil por mês. O caminho mais adequado à sua realidade foi buscar o apoio de outras pessoas que precisam de medicações feitas da planta. Segundo ele, desde 2017 vinha contatando associações, porém não conseguiu o suporte desejado, já que elas não eram do Rio Grande do Sul.

“Nessa busca, entrei em contato com ativistas que articulavam uma associação medicinal aqui em Porto Alegre. Foi quando me disponibilizei para auxiliar, da forma que me foi possível, participando de reunião com o coletivo. A partir daí passei a acompanhar o processo de fundação da Associação Vida Verde (ViVer), tornando-me um dos associados fundadores”, conta.

Segundo M.J., graças a essa aproximação, teve acesso à equipe jurídica da associação, em particular com o advogado da Renap-RS, Emiliano Maldonado Bravo. “Nesse ínterim, pude juntar toda a documentação necessária para dar entrada no pedido de salvo-conduto - como atestados e laudos médicos, além da minha autorização junto à Anvisa - que já me permitia importar produtos a base de cannabis”, aponta. Ele faz questão de citar também seu neurologista, Dr. Paulo César Bittencourt Trevisol, que prescreveu a medicação.

Uso medicinal da cannabis representa uma "revolução"

Professor de Neurologia do curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Paulo César Bittencourt Trevisol avalia a conquista do habeas corpus pelo seu paciente como uma decisão sábia. “Cria jurisprudência no país para que pessoas enfermas possam tirar proveito da cannabis - uma planta virtuosa e com notável ação terapêutica - sem correrem o risco de qualquer tipo de sanção”, afirma.

Ao falar dos potenciais terapêuticos da cannabis, o médico faz uma analogia. “De acordo com a mitologia grega, o pai da Medicina foi um homem chamado Esculápio. Ele tinha duas filhas, uma chamada Panacéia e a outra Higéia. Enquanto a primeira curava todas as doenças, a segunda fazia a prevenção delas. Dentre todos os medicamentos existentes na Terra, àqueles extraídos da planta Cannabis são os que mais se aproximam dos ideais das filhas do Esculápio. Assim, para que não paire dúvidas, diferentes formulações feitas através de extratos desta planta, poderão ser utilizados com sucesso nas mais distintas condições nosológicas, não importando como estas sejam classificadas. Muito claro que elas não se prestam a determinadas enfermidades agudas, como por exemplo meningites bacterianas ou apendicite, mas seriam uma boa indicação na maioria dos problemas de saúde apresentados por seres humanos ou não.”

Segundo Paulo César, no século passado a descoberta acidental da penicilina foi revolucionária, tendo enfim um antibiótico eficaz para o tratamento de doenças infecciosas. “Neste século a redescoberta do uso medicinal da cannabis representa uma revolução ainda maior na nossa prática. Esta será de fácil percepção - e em qualquer sociedade - nos próximos anos”, avalia.

Associação reúne pacientes, médicos e cultivadores

Também contatada pelo Brasil de Fato RS, a Associação Vida Verde – ViVer preferiu se manifestar coletivamente. Conta que começou a se organizar em meados de 2018, no Rio Grande do Sul, a partir de três pilares: pacientes, médicos e cultivadores. “A ideia era juntar os três grupos, que no caso poderíamos melhor definir como: pessoas que precisam da cannabis para sobreviver; pessoas que conhecem a cannabis de maneira mais ampla, cultivadores, pesquisadores, sociólogos, agrônomos; e pessoas que têm conhecimento de nível técnico sobre a cannabis enquanto tratamento de saúde e que podem prescrever a substância.”

O grupo destaca que a legislação brasileira tem sofrido contantes mudanças, que cada vez mais restringem as possibilidades de descriminalização da planta. Dessa forma, reúne pessoas que buscam “em comum a intenção de descriminalização da maconha, independente da condição em que essa pessoa se encontrar, se é médico ou se é paciente, primamos pelo consenso de que a maconha tem que ser descriminalizada. Que é absurda a condição de judicializar para ter direito de plantar seu próprio tratamento.”

A associação conquistou seu registro em janeiro de 2021, em meio a atrasos devido à pandemia, após um período discutindo um estatuto que possibilitasse estudar, acolher, tratar, produzir conhecimento e produtos sobre a maconha. “Nossa proposta é criar conteúdo informativo e educacional, realizar estudos e pesquisas sobre a maconha e seus derivados, possibilitar o acesso à saúde e redução de danos, promover discussões para a qualificação técnica, gerencial e profissional sobre a planta. Auxiliar pacientes e famílias, tanto nos tratamentos quantos nas questões jurídicas, enquanto seguimos com essa situação absurda de um tratamento que pode levar o paciente para a cadeia por querer viver, ou melhorar sua qualidade de vida”, afirma.

Interesses da proibição

“Desde a sua proibição no século XX, que se deu com o apoio de propagandas estereotipando grupos em foco, que historicamente já eram atacados, como os mexicanos nos Estados Unidos ou a população negra no Brasil, grupos estes que são maioria no sistema carcerário atualmente, muitos que ingressam nesse sistema pela lei de drogas”, afirma a associação. “O que nos faz compreender que não é um mero ‘acabar com o tráfico de drogas’ e sim uma política de Estado que visa o genocídio dessas populações culturalmente marginalizadas”, complementa.

“Acreditamos que promover o acesso a medicamentos a base de maconha traz consigo a responsabilidade de se estabelecer um processo de informação, debate e conscientização de que a proibição não tem lógica”, defende a associação.

O professor de Neurologia da UFSC destaca que países desenvolvidos do ponto de vista econômico-cultural não reprimem, mas descriminalizam primeiro, depois legalizam e estimulam sua plantação no ato seguinte. “Estas nações já estão cientes do grande potencial que esta planta única representa, seja por sua utilização como remédio, seja por suas outras virtudes como na Gastronomia/Nutrição e produção de ‘roupas e vestimentas que nunca acabam’”, pontua.

“Já os países subdesenvolvidos - e o Brasil por desgraça está inserido dentre estes - insistem na repressão através uma política antidrogas 100% fracassada e que urge ser revista. Definitivamente não é aceitável punir com qualquer tipo de sanção pessoas que fazem uso desta planta, não importando nem como nem qual a justificativa para tal”, opina.

Paulo César considera, por outro lado, “melancólico ver o consumo estapafúrdio de drogas legais em nosso país”. E vai mais fundo na crítica: “ele é o paraíso para as poderosas indústrias farmacêuticas, mas aqui, através de propaganda ardilosa elas são oferecidas como ‘remédios’ e nunca como drogas possuidoras de potencial tóxico nada desprezível. O ensino médico precisa ser revisto nas escolas de Medicina nacionais, e o quanto antes melhor”.

Para ele, médicos precisam ser informados de como tirar proveito medicinal da cannabis, bem como terem acesso facilitado a estudos sobre a planta. “É através dela que irão resistir às investidas da indústria farmacêutica para a prescrição de suas ‘maravilhosas hóstias farmacêuticas’, cujas prescrições anárquicas são a principal causa de doença entre nós. Enfatizo, para que não paire dúvida, formulações feitas a partir da cannabis substituirão a maioria delas nos próximos anos.”

“Desconfio, e fortemente, que a indústria farmacêutica já sabe disso, mas a sociedade ainda não. E informação de qualidade e em linguagem clara é o único antídoto que funciona na luta contra o preconceito que ainda grassa entre nós”, conclui.

* O nome verdadeiro do paciente foi oculto a pedido do mesmo


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Edição: Katia Marko