ESCALADA AUTORITÁRIA

Bolsonaristas intimidam Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília (DF)

Pelo 2º dia consecutivo, indígenas decidiram não sair do acampamento com receio de encontrarem apoiadores de Bolsonaro

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Acampamento Primavera Indígena reúne 4 mil mulheres de 150 povos de todas as regiões do país em Brasília (DF) durante votação do marco temporal - Carl de Souza / AFP

O clima de insegurança e de ameaça que cerca Brasília, por conta de apoiadores de Bolsonaro, impediu por dois dias a saída da 2ª Marcha das Mulheres Indígenas. Elas entenderam que seria melhor “resguardar vidas” do que partir para o enfrentamento. Os bolsonaristas que participaram de uma manifestação em favor do presidente no 7 de Setembro mantém concentração, nesta quinta-feira (9), em frente do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. Com discursos agressivos contra os povos originários e a própria Corte, eles pregavam ainda golpe militar e o fechamento do Congresso. No início da semana, circularam vídeos em que prometiam tirar sangue de indígenas em Brasília.

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Oficialmente, a 2ª Marcha das Mulheres Indígenas está programada para acontecer nesta quinta-feira, às 9 horas, no trajeto que sai do acampamento localizado entre a Fundação de Artes (Funarte) e o Planetário, no Eixo Monumental, e vai até a Praça dos Três Poderes, em cerca de 4 quilômetros de distância. As outras duas saídas prévias, de 7 de Setembro e desta quarta, seriam no mesmo trajeto. O movimento é promovido pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) e tem o apoio da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e suas organizações de base, do dia 7 até 11 de setembro. 

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Porém, até a marcha oficial desta quinta-feira está ameaçada. A coordenadora-executiva da Apib, Sonia Guajajara, informou que as lideranças das delegações com a Anmiga avaliariam o cenário, ainda instável depois das falas do presidente que amplificou a crise institucional entre os poderes. A reunião está prevista para o fim da noite desta quarta-feira.

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“As mulheres não saíram hoje em marcha como estava previsto porque decidiram que o mais importante seria resguardar vidas. Elas não deixariam as crianças no acampamento e principalmente por isso tomaram essa decisão”, afirma Braulina Baniwa, da Terra Indígena Alto Rio Negro, de São Gabriel da Cachoeira (AM), que é uma das coordenadoras do movimento na capital federal, onde está desde o dia 20.

O STF foi cercado no início da tarde de quarta-feira por uma massa verde-amarela, cores que identificam os apoiadores de Bolsonaro. A região esteve quase totalmente blindada pela via S2 que dá acesso aos anexos dos Ministérios. Esteve impedido o acesso pelos estacionamentos tanto da Suprema Corte como do Anexo 2 da Câmara dos Deputados, que manteve fechado o portão da entrada. 

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Diferentemente dos anos anteriores ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, que principalmente a Câmara dos Deputados era praticamente um território livre para visitantes, os portões de ferro têm sido fechados a todo instante em que os parlamentares sentem a possibilidade de aproximação dos grupos antidemocráticos. Na tarde desta quarta-feira, a Polícia Legislativa novamente foi acionada para estar em maior número em frente ao prédio e nas laterais. 

Os pedestres somente tiveram acesso às proximidades do STF por uma escada no estacionamento dos fundos do Ministério da Saúde que dá acesso à N1, pois a via fica em um nível mais baixo do solo. Muitos carros com bandeirinhas e adesivos alusivos a Bolsonaro circulavam pelo local. O trânsito de veículos foi impedido nas vias da Esplanada dos Ministérios, marcando o dia tenso em Brasília.


Indígena da etnia Xikrin aguarda votação do STF sobre marco temporal em Brasília nesta quarta-feira (9) / Carl de Souza / AFP

STF suspende julgamento

O julgamento da tese do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF) foi retomado nesta quarta-feira com a exposição do relator do caso, ministro Edson Fachin. Depois de mais de uma hora de apresentação inicial do relator, o presidente do STF, Luiz Fux, optou pela suspensão do julgamento e a retomada na quinta-feira para que não fosse fracionado o julgamento do mérito.

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Fachin dividiu o voto em quatro partes. Na primeira tratou do que chamou de “elucidações preliminares e questões preambulares”. Em seguida, abordou a questão sob o ponto de vista histórico. Numa terceira parte, analisará o exame do mérito das ações judiciais possessórias em áreas reconhecidas como indígenas, dos direitos indígenas, direitos fundamentais e da natureza jurídica da demarcação.

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Na quarta e última parte do voto, Fachin abordará temas como: posse indígena e dos direitos dos povos originários; esbulho e sua configuração; estudos antropológicos; usufruto exclusivo e a posse permanente; títulos particulares em terras indígenas e a proteção ao meio ambiente em áreas indígenas.

Fachin pinçou trechos das sustentações feitas pelos amici curiae, na semana passada. O primeiro argumento lembrado foi o da advogada indígena Samara Pataxó, que ressaltou a importância do julgamento da tese do marco temporal para o futuro da continuidade existencial dos índios como povos originários. Fachin lembrou ainda do trecho em que a pataxó apontou que após o julgamento do caso Raposa Serra do Sol, as comunidades indígenas passaram a vivenciar uma nova rotina de conflitos.

Outra sustentação mencionada pelo relator foi a da advogada indígena Cristiane Soares e Soares, que enfatizou que estudos demonstram que as terras indígenas são as que mais protegem o meio ambiente, e que a posse indígena em seus territórios “não possuem as mesmas características da posse civil e que exigir dos povos indígenas que demonstrassem resistência até 5 de outubro de 1988, é exigir que tivessem o próprio direito à vida violado”, lembrou Fachin.

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O relator do Recurso Extraordinário 1.017.365 também ressaltou a sustentação do procurador do estado do Amazonas, Daniel Pinheiro Viegas. Em sua fala contra a tese do marco temporal, Viegas rememorou que o aumento no desmatamento na região amazônica decorre em terras públicas, de propriedade da União, e não em terras indígenas reconhecidas. Outra crítica do procurador é que a defesa do marco temporal, tese empunhada pelos ruralistas, desconsidera a inovação normativa da Constituição de 1988, que garante a diversidade entre os povos e rejeita a integração forçada dos indígenas.

Resposta a Bolsonaro

O julgamento do marco temporal foi precedido por um aguardado pronunciamento de Luiz Fux logo na abertura da sessão do STF. A fala era uma resposta às ameaças golpistas proferidas pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em um ato em Brasília e outro em São Paulo no feriado de 7 de Setembro. Na primeira ocasião, Bolsonaro aconselhou Fux (chefe de um dos poderes) a enquadrar os ministros da Corte. E, de tarde na capital paulista, aumentou o tom, afirmando não cumprira ordens do ministro Alexandre de Moraes, do STF. Os discursos do presidente para os seus seguidores elevou a crise institucional a níveis mais altos.

Fux garantiu que o STF jamais aceitará ameaças à sua independência, muito menos qualquer intimidação. “Ninguém fechará esta Corte. Nós a manteremos de pé, com suor e perseverança”, discursou o magistrado. O presidente do STF reiterou que o não cumprimento de decisões judiciais “por iniciativa do chefe de qualquer dos poderes”, será encarado como um atentado à democracia, que resultará em “crime de responsabilidade, a ser analisado pelo Congresso Nacional”. Acrescentou, ainda, que incitar a população a propagar discursos de ódio contra o Supremo e incentivar o descumprimento de decisões judiciais são “práticas antidemocráticas e ilícitas”, que não podem encontrar tolerância em um ambiente democrático.

Rituais em vez de briga

Em meio a essa tensão na capital federal, o Acampamento Primavera Indígena virou um refúgio seguro. As mulheres capricharam nas cores das pinturas e dos colares, cocares, saiotes, com cantos em variadas línguas brasileiras. São 4 mil mulheres de 150 povos de todas as regiões do país. 

“Dá pra ver a força das mulheres nos cantos, nas danças, na cultura. Este é um reencontro pautado na vida, na cura, no afeto”, ressaltou Braulina Baniwa. Ela disse que diferentemente dos acampamentos anteriores, realizados em junho e agosto em Brasília, a 2ª Marcha das Mulheres Indígenas servirá para discussão de pautas específicas femininas. Claro, que essas pautas estão vinculadas diretamente com as questões que estão sendo discutidas no STF, como a tese do marco temporal, e no Congresso, o famigerado Projeto de Lei 490, que prevê alterações nas regras de demarcação de terras indígenas. 

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Braulina Baniwa explica que os assuntos que estão em pauta no acampamento se referem a temas como saúde, educação e saúde. “Foram muitas perdas na pandemia”, afirmou. O site Emergência Indígena, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), revela que são 1.197 mortos pelo Covid-19, de 163 povos indígenas, com 58.791 infectados. Esses dados são atualizados diariamente.

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“Queremos a valorização de nossas medicinas tradicionais”, cita Braulina Baniwa. “Essa rede de mulheres tem se colocado na pauta com muita velocidade, protagonizando em linhas de frente como em associações, nas comunidades e nas universidades. Desse modo, o diálogo com territórios tem se fortalecido muito. Hoje, elas têm orgulho de serem meninas indígenas.” A própria Braulina Baniwa é antropóloga, formada pela Universidade de Brasília, mas mora na Terra Indígena Alto Rio Negro.