Entrevista

Crise energética: "Culpa não é de São Pedro, mas é pra ele que governo precisa rezar"

Ex-presidente da Agência Nacional de Águas afirma que reservatórios vazios são resultado de busca por lucro e má gestão

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Ouça o áudio:

Imposição de nova bandeira tarifária pela Aneel provocará aumento médio de 6,78% nas contas de energia no país, segundo as previsões - Marcelo Camargo /Agência Brasil

Nesta quarta-feira (8), em audiência na Câmara dos Deputados, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) confirmou que a capacidade dos reservatórios das usinas hidrelétricas brasileiras deve ficar abaixo de 19%, patamar registrado na crise hídrica de 2014.

Continua após publicidade

As afirmações são mais um elemento de alerta para o futuro próximo da geração de energia no Brasil. Embora o governo venha dizendo que o problema é consequência da estiagem, especialistas no setor elétrico apontam que a equação é mais complicada que isso: carrega fatores ligados à gestão ineficiente e práticas empresariais questionáveis.

Entre esses nomes, está o ex-diretor presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Vicente Andreu, que rejeita de maneira contundente a justificativa da falta de chuva como causa da crise energética "Não dá pra colocar na conta de São Pedro de jeito nenhum", afirmou em entrevista para o programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato.

Saiba mais: Conta de luz tem taxa extra de R$ 14,20 e bandeira tarifária 50% mais cara a partir de setembro

"Essa crise é uma crise de energia. Criam essa coisa de chamar de crise hídrica para dar a impressão de que é uma coisa fortuita, de momento, que ninguém esperava", pontua Andreu. Durante a conversa, ele ressaltou que o governo e as empresas geradoras estão perdendo o controle da situação e que o país pode viver momentos ainda mais críticos até o fim do ano.

"Mais do que jogar a culpa em São Pedro, eles vão ter que rezar muito para São Pedro. Para que ele ajude trazendo as chuvas com antecedência. Se não nós vamos ter problemas no fim do ano, sem dúvida nenhuma", alertou.

Leia a conversa a seguir ou ouça no tocador de áudio abaixo do título desta matéria.

Brasil de Fato: O poder público tem afirmado que a crise energética é consequência de um problema hídrico, a estiagem, que estaria deixando os reservatórios em níveis muito baixos. Dá para colocar essa situação  na conta de São Pedro?

Vicente Andreu: Não dá para colocar na conta de São Pedro de jeito nenhum. Essa crise é resultado de uma operação recorrente, que acontece todo ano, do setor elétrico e que foi agravada no governo Bolsonaro. Tem como finalidade esvaziar os reservatórios no período chuvoso, para quando chegar o período seco, tendo pouca água nos reservatórios, o preço da tarifa explodir. Neste ano eles perderam o controle sobre essa operação, porque a seca na bacia do Rio Paraná, região de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Paraná, está sendo muito intensa. Com isso eles estão perdendo o controle dessa crise.

Na verdade São Pedro é a única solução que eles têm, que volte a chover. Porque todas as medidas que foram tomadas ou são resultado de falta de planejamento ou foram tomadas muito atrasadas. Inclusive, sem mobilizar a população, tentando esconder essa crise o máximo que eles conseguem. Mais do que jogar a culpa em São Pedro, eles vão ter que rezar muito para São Pedro para que ele ajude trazendo as chuvas com antecedência. Se não nós vamos ter problemas no fim do ano, sem dúvida nenhuma.

Isso quer dizer que o que estamos vivendo hoje está diretamente ligado à busca pelo lucro por parte das empresas geradoras no Brasil?

Sem dúvida nenhuma. Quando nós vamos olhar os gráficos a gente chega a essa conclusão com muita facilidade. Eu queria colocar aqui três questões que são importantes para a gente perceber isso. Primeiro é que essa situação de que é a maior crise hídrica em 91 anos é uma falsidade estatística. Não é verdade.

Eu sou estatístico por formação, se eu disser que em 2021 - em função da grande cheia que houve em Manaus e a Bacia Amazônica representa 70% da água brasileira  - que o Brasil está na maior cheia de sua história em 101 anos, é verdade estatisticamente, só que não quer dizer absolutamente nada. Quando eles falam em 91 anos, eles tentam confundir, tentam dar a impressão de que não era previsível.

A segunda questão é que os grandes reservatórios do setor elétrico brasileiro não são reservatórios anuais, ou seja, eles não esvaziam e enchem em um período de um ano. São reservatório plurianuais, suportam cerca de dois, três, quatro, cinco anos de seca. Então, se nós estamos vivendo uma seca agora em 2021, temos que olhar no passado. Vamos perceber claramente que eles vêm fazendo esse tipo de operação todo ano no setor elétrico, uma operação de altíssimo risco.

Quando você coloca as bandeiras tarifárias isso vai acrescentando transferência de renda, retira da população e vai para essas empresas.

Por que alguém faz isso? Aí vem a terceira premissa. A falta de água nos reservatórios faz com que se criem as bandeiras tarifárias e agora criaram mais uma. Eu estimo mais ou menos R$ 33 bilhões que eles vão tirar da população brasileira, do sociedade brasileira, da economia para levar para esses agentes que operam no setor elétrico. Se nós estivéssemos na bandeira verde, que significa reservatório com água, quanto que é essas empresas estariam faturando a mais? Nada, estariam faturando aquilo que está no valor do contrato. Quando você coloca as bandeiras tarifárias isso vai acrescentando transferência de renda, retira da população e vai para essas empresas.

Como essas empresas estão todas verticalizadas ou são grupos econômicos, elas não perdem na ponta da geração. Ao contrário, o governo baixou uma Medida Provisória que permite a elas recuperar todo dinheiro que elas eventualmente estejam perdendo em 2021. Na outra ponta, com essas bandeiras tarifárias, elas arrecadam esse recurso brutal, saindo da população, sacrificando principalmente os mais pobres que não tem mais onde economizar e que estão pagando tarifas absurdas. Na verdade, é uma operação que visa favorecer os operadores do sistema elétrico, os agentes do setor. 

Há outros elementos técnicos envolvidos que possam explicar a situação?

Algumas pessoas, tecnicamente, dizem que isso decorre do modelo computacional de operação - chamado New Wave, Nova Onda - que ficou obsoleto, porque ele não captura as mudanças climáticas, por que ele não tem preço para a água. Uma série de críticas técnicas que são verdadeiras. 

Agora, o setor elétrico é muito competente para saber dessas críticas. Não é em um ano só, são vários anos que isso vem acontecendo no nosso país. A conclusão a que se chega é de que a justificativa da computação ou da questão climática é apenas um pretexto. Tanto é que a única medida de fato que aconteceu no Brasil a partir de maio foi a explosão das tarifas, arrecadando dinheiro para o bolso do setor elétrico.

O primeiro escândalo do governo Bolsonaro foi em Itaipu, quando ele tentou fazer uma manobra que só não foi adiante porque do lado paraguaio quase caiu o presidente. Se a gente associa que não é problema de incompetência, que o problema é um ganho extraordinário desses agentes e muitos desses agentes apoiam o bolsonarismo, não dá para  acreditar que tudo isso está acontecendo por acaso.

É como se a população estivesse então pagando um multa por conta da prática das empresas?

É mais do que uma multa, são lucros extraordinários que esses agentes estão tendo. Se não tem crise, eles não ganham nada a mais. Fabricar a crise é o jeito de maximizar a renda dos agentes do setor elétrico. Maximizar a renda significa enfiar a mão nos nossos bolsos e transferir dinheiro para essas empresas.

Qual é o peso do processo de privatização da Eletrobras nesse problema?

Nessa crise diretamente não tem peso, porque obviamente a Eletrobras ainda não foi privatizada. Mas não vai ser só uma privatização, vai ser uma desnacionalização. É um passo a mais na perda da soberania em um setor estratégico para o país. Quem vai dizer, no futuro, como é que a coisa vai funcionar no Brasil são empresas fora no Brasil, que vão acabar comprando, como estão comprando todo o setor elétrico brasileiro.

A Eletrobras tem 40% da geração hidráulica no Brasil, que é a energia mais barata. Na hora que privatizar, o que é eventual, que eles têm que fabricar crises, vai explodir a tarifa e isso a gente já está constatando.

Com a privatização da Eletrobras, nós vamos voltar a ter donos de rios. Se o cara, para maximizar o lucro dele, achar que deve esvaziar o reservatório, ele vai esvaziar o reservatório.

Por último, o que é mais grave do meu ponto de vista, é que as hidrelétricas determinam o fluxo dos grandes rios brasileiros. No passado (os agentes do setor) eram donos dos rios. Nós criamos na ANA - na crise de 2014 durante o governo de Dilma Rousseff - uma série de regras que impediam que o setor elétrico fosse o dono dos rios. Essas regras agora estão sendo todas quebradas pelo governo Bolsonaro. Voltando a uma gestão absolutamente centralizada, que desqualifica o Ibama, desqualifica a ANA, desqualifica o Operador Nacional do Sistema (ONS).

Com a privatização da Eletrobras, nós vamos voltar a ter donos de rios. Se o cara, para maximizar o lucro dele, achar que deve esvaziar o reservatório, ele vai esvaziar o reservatório. Todos os outros usos, navegação, abastecimento, irrigação, lazer vão ficar subordinados aos interesses desses novos proprietários. 

Na disputa política que nós vamos travar em 2022 contra o autoritarismo e o fascismo, a questão da Eletrobras deve ser central. Temos que atrasar o processo de privatização, não deixar que ele aconteça e, se ele acontecer, reverter. Porque a privatização será dramática para a população do Brasil, para a economia do Brasil e, principalmente, para os mais pobres do Brasil. 

Esse estrago é reversível? Há algo que possa ser feito para escapar das consequências desse desmonte?

Primeiro tem que mudar a visão política, o papel do estado. As política públicas precisam retomar a terem um objetivo social, econômico e ambiental muito forte. Esse é um primeiro passo, o estrago é muito grande. Tem que, pelo menos, estancar, mudar o conceito político que vem sendo implantado e aí fazer mudanças, reverter decisões. Fazer mudanças que, como o Lula fala, coloquem o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda. Não vai ser fácil, mas dá e, principalmente, a gente tem que acreditar. 

Edição: Leandro Melito