América Latina

Reféns da água engarrafada, indígenas ocupam fábrica da Bonafont-Danone há um mês no México

Perfurações feitas pela multinacional baixaram níveis dos mananciais e vêm causando escassez nas comunidades vizinhas

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Não há prazo para a desocupação da fábrica, uma vez que os indígenas não pretendem negociar com o Estado nem com a empresa - Jair Cabrera Torres/La Jornada

Indígenas mexicanos da organização 20 Povos Unidos das Regiões Cholulteca e Volcanes ocupam há um mês uma fábrica engarrafadora de água mineral da empresa Bonafont, vinculada ao grupo francês Danone, no município Juan C. Bonilla, estado de Puebla, centro-sul do país.

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Os ocupantes são moradores vizinhos à fábrica e alegam que os mananciais estão secando devido às perfurações realizadas pela empresa em aquíferos da região.

Na parte do prédio que foi ocupada, os indígenas inauguraram um espaço chamado de “Casa dos Povos”, onde debatem o direito à água, fazem oficinas e decidem coletivamente os próximos passos do movimento.

Segundo os organizadores, ainda este mês deve ser instalada no local uma rádio comunitária.

Os indígenas acusam o Estado e a empresa de perseguições e intimidações, e afirmaram esta semana que pretendem acionar a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para apurar possíveis violações.

Os questionamentos presentes neste texto foram enviados ao Grupo Danone no México, que respondeu por meio de sua assessoria de imprensa. A empresa diz que considera a ocupação ilegal. Confira a nota na íntegra ao final da matéria.

Decisão coletiva

Nas entrevistas, os líderes da organização aparecem sempre com o rosto coberto, para evitar identificação.

O Brasil de Fato conversou com uma das ativistas, em condição de anonimato.

“O que a Bonafont está fazendo é parte de um grande problema da região, pois há quase 40 anos começaram a chegar aqui indústrias transnacionais. Elas expropriaram as terras de muitos camponeses, e hoje lançam águas tóxicas nos nossos rios”, relata.

“E isso acontece porque o governo e as instituições permitem a exploração de água de forma desmedida, sem estudos de impacto ambiental.”

Ela conta que a decisão de ocupar as instalações da fábrica foi tomada coletivamente, em uma assembleia que reuniu os 20 povos da região.

“Ocupar a fábrica foi a única forma de garantir que Bonafont, e qualquer outra empresa, não vão mais usar esse espaço para roubar nossa água e vendê-la para benefício de poucos empresários”, diz.

“As autoridades até vinham impondo multas, mas a empresa consegue pagar, porque tem muito poder.”

Não há prazo para desocupação da fábrica, porque os manifestantes não esperam negociar com a empresa ou com o Estado. A intenção não é reduzir o volume de água extraída pela indústria, mas frear definitivamente a exploração industrial do recurso.

Além de impedir a expropriação da água, os ocupantes pretendem usar o espaço para fortalecer vínculos e aperfeiçoar a formação dos indígenas que vivem no entorno.

“Queremos usar o espaço para reconstruir nossas comunidades. Além da água, a região tem outros problemas, como falta de educação, empregos mal pagos, as crianças já não sabem como trabalhar na terra. Então, será um espaço para se trabalhar saúde, ecologia, direitos das mulheres”, explica.


Coletiva de imprensa dos líderes da ocupação na última semana; eles evitam se identificar para proteger suas famílias / La Jornada

No primeiro mês de ocupação, o local foi palco de debates com pesquisadores internacionais sobre direito à água, encontro nacional de mulheres, oficinas de desenho, aulas de matemática básica e primeiros socorros.

“O objetivo dessa ocupação é construir vida em um espaço onde estavam nos tirando a vida”, completa a ativista.

Histórico

Presente no mercado brasileiro desde 2008, a Bonafont se instalou na região de Puebla há quase 29 anos. A planta de Juan C. Bonilla funciona desde 2004.

Segundo os indígenas, a empresa extrai 1,6 milhão de litros diariamente na região. Esse volume equivaleria a cerca de 20 garrafões de água por minuto.

A exploração de aquíferos por empresas privadas no México é regulada pela Lei Nacional de Águas, de 1992 – considerada um estímulo à mercantilização do serviço.

Desde então, estados mexicanos, como Puebla, privatizaram o fornecimento de água.

Há pelo menos um ano, indígenas que vivem no entorno da fábrica da Bonafont se veem obrigados a comprar água engarrafada para suas atividades diárias.

“Os rios e mananciais estão secando. Árvores frutíferas estão sendo perdidas, e muitas espécies de animais morreram em função da atuação dessas indústrias”, disse à reportagem a ativista que preferiu não se identificar.

Em junho de 2008, o então presidente Enrique Peña Nieto assinou dez decretos facilitando as licenças de extração de água por empresas em 300 bacias hidrográficas, que concentram 55% dos lagos e rios do país.

Hoje, cerca de 70% da população consome água engarrafada diariamente, tornando o México líder nesse quesito na América Latina. Globalmente, o país só está atrás da China e dos Estados Unidos.

A Bonafont foi a primeira empresa a fornecer água mineral engarrafada no mercado mexicano, em 1992. O sucesso de vendas no país atraiu os olhares da gigante francesa Danone, que dois anos depois comprou 50% da marca – hoje, detém 100%.

Reações e impactos imediatos

A baixa no nível dos poços e mananciais impactou dezenas de comunidades indígenas. Além de beber, cozinhar e tomar banho, elas dependem da água para criação de animais e para irrigação de colheitas.

Os indígenas afetados pela expropriação da água protestaram pela primeira vez em frente à unidade da Bonafont em 22 de março, Dia Mundial da Água, impedindo o acesso à fábrica desde então.

Na ocasião, houve a visita de um representante da secretaria de governo de Puebla, que se comprometeu a abrir diálogo com a empresa para resolver o problema de escassez de água nas comunidades.

Como não houve avanços, cerca de 30 manifestantes ocuparam parte da fábrica no dia 8 de agosto. A paralisação de operações da Bonafont já provoca impactos práticos na vida das comunidades.

“Nota-se muito claramente a diferença no nível da água. Desde março, os mananciais subiram até 50 centímetros”, disse um dos indígenas em entrevista ao jornal mexicano La Jornada.

Repressão

Em coletiva de imprensa na última semana, os líderes da ocupação informaram que vem documentando intimidações por parte da Guarda Nacional e da polícia mexicana.

Além de posicionar viaturas em frente à ocupação e gravar vídeos diariamente, as forças de segurança estariam sobrevoando a unidade da Bonafont com drones.

Circulam na imprensa mexicana informações de que já haveria ordens de prisão contra os ocupantes.

Fabrice Salamanca, vice-presidente de Assuntos Corporativos da Bonafont, afirmou publicamente que processou os “invasores”, e que estes terão que responder por supostos crimes.

“Sabemos que o Estado e as grandes empresas querem criminalizar quem defende a água, a vida, as matas, a terra. Isso não vai nos fazer parar. Vamos seguir lutando por aquilo que consideramos vital”, reafirma a ativista ouvida pelo Brasil de Fato.

Os ocupantes dizem que sequer receberam um decreto de expropriação do local.

“Até o momento, desconhecemos quem são os alvos destas denúncias, mas qualquer tentativa de criminalização afeta todos os povos. Para nós, essas afirmações violam nossos direitos, uma vez que somos defensores ambientais, não criminosos”, afirmaram na coletiva.

A Danone e as águas brasileiras

No Brasil, a Danone também já foi investigada por danos causados com a exploração de água mineral.

Em 2008, a empresa apresentou um pedido de ampliação dos níveis de exploração anual, de 9 milhões de litros por ano para 61,8 milhões. No ano seguinte, fez novos pedidos de licenciamento para explorar novas fontes, pretendendo chegar a uma captação de 147,6 milhões de litros de água mineral por ano.

O volume chamou atenção do Ministério Público de Minas Gerais, que apurou o caso e ajuizou uma ação civil pública.

“Não está havendo obediência à legislação reguladora das águas subterrâneas, além de não estar sendo efetivada dentro das conformidades técnicas preventivas, com a consequente criação de impactos socioambientais em face do escoamento da produção”, descreveu à época o promotor Carlos César Marques Luz.

Em 2015, a empresa assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e teve que pagar R$ 5 milhões pelos danos causados pela exploração de água em Jacutinga (MG), sul do estado – R$ 3 milhões por danos materiais e R$ 2 milhões por danos coletivos às comunidades locais.

A água mineral Bonafont comercializada no Brasil é extraída, em grande parte, da bacia hidrográfica do rio Mogi Guaçu, que abastece Jacutinga.

Outro lado

O Brasil de Fato não conseguiu contato com representantes do Estado para comentar as acusações.

A Danone respondeu que a unidade da Bonafont em Juan C. Bonilla possui um único poço de extração profunda, a mais de 150 metros abaixo da terra, e possui concessões da Comissão Nacional de Água (CONAGUA). 

Segundo a empresa, esse poço opera "desconectado das fontes de água na superfície" utilizadas pelas comunidades.

"Como empresa, permitimos extrair um máximo de 0,09% da disponibilidade de água do aquífero do Vale de Puebla e nunca excedemos esse limite. Essas permissões se baseiam em análise científica de quanto o aquífero precisa para se regenerar", diz a nota enviada pela assessoria da Danone.

A empresa diz ainda que possui relatórios recentes da CONAGUA atestando que o aquífero que a Bonafont utiliza tem uma "taxa de regeneração positiva" ao longo do tempo.

"Nossa planta está dedicada exclusivamente à produção de uma necessidade essencial: proporcionar garrafões de água potável e segura para os lares das comunidades e distribuidoras que hoje em dia não estão abastecidas em condições normais", prossegue a nota da empresa.

"Respeitamos a liberdade de expressão e o direito de todos a discordar, sempre e quando se respeite o Estado de direito. Confiamos no estabelecimento de uma mesa de diálogo com as autoridades e vizinhos da região para resolver o assunto."

Por fim, a Danone apela aos três poderes para "aplicar a lei e reverter o fechamento arbitrário da planta, para que possamos proporcionar água potável e segura e garantir renda às 600 famílias que dependem desse trabalho."

Edição: Leandro Melito