Rio Grande do Sul

SETEMBRO AMARELO

Pandemia agrava problemas de saúde mental

Diagnósticos de ansiedade, depressão e medo se tornaram mais recorrentes no Brasil

Isolamento social ampliou problemas associados à saúde mental e aumentou o uso de álcool e remédios - Foto: Anthony Tran/Unsplash

Depois de quase dois anos de pandemia e com a vacinação em andamento, a sociedade ainda sofre impactos na saúde mental. O Brasil registra quase 600 mil óbitos ocasionados pela covid-19, mas nem metade da população completou o ciclo de vacinação. Lidar com tantas perdas, assim como com a descoberta de novas variantes do vírus, potencializa a emergência de quadros de ansiedade e depressão.

Em dezembro de 2020, o Ministério da Saúde divulgou pesquisa que analisa a saúde mental do brasileiro. O resultado apontou que quase 30% dos entrevistados procuraram ajuda profissional motivados por questões relacionadas à saúde mental, sendo 20% em serviços particulares. Mais de 34% dos participantes informaram que não procuraram ajuda, mas que gostariam de ter apoio psicológico, principalmente para lidar com a ansiedade (78%) e o estresse (51,9%).

O estudo também revelou que 2,22% dos entrevistados começaram a ingerir álcool durante a pandemia, sendo que 16,6% indicaram aumento no consumo. O uso de medicamentos antidepressivos aumentou em 15,79%. Desses, 7,2% dos respondentes alegaram que iniciaram a ingestão durante a pandemia. O uso de ansiolíticos foi o que apresentou maior índice, chegando a quase 23%.

Em outubro de 2020, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) publicou outra pesquisa que confirmou o aumento do uso de álcool durante a pandemia. A OMS pediu, ainda no início do período de isolamento social, que os governos limitassem a venda de bebidas alcoólicas para evitar a piora nas condições de saúde, assim como o aumento nos comportamentos de risco, dos problemas mentais e dos casos de violência, inclusive doméstica.

Segundo a Agência Brasil, com base em dados do laboratório Pfizer, metade dos jovens sentiu impactos na saúde mental durante a pandemia e 50% das pessoas na faixa entre 18 e 24 anos disseram que a saúde mental teve piora no período. O levantamento foi realizado pela Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec) e ouviu 2 mil pessoas na cidade de São Paulo (SP) e nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba e Salvador.

No Rio Grande do Sul, a vacinação completa — duas doses ou dose única — já beneficiou 56% da população vacinável. Ainda assim, muitos ainda demonstram preocupação em relação à conduta de outras pessoas com a flexibilização das regras de isolamento, bem como com o fato de parte da população se negar a tomar a vacina.

O técnico em Instrumentação Industrial Juliano Oliveira, 35 anos, é hipocondríaco e se sente permanentemente inseguro em relação à covid-19, mesmo vacinado com as duas doses do imunizante. Antes do coronavírus se tornar uma realidade, ele já acompanhava as notícias sobre o alastramento da pandemia ao redor do mundo, o que contribuiu para a piora da sua saúde mental.

Em um primeiro momento, Juliano permaneceu trancado em casa, saindo apenas para trabalhar. Ele mora em Sapucaia do Sul e atua numa empresa distante 52 km da cidade que disponibiliza transporte para os funcionários, obedecendo todos os protocolos de segurança.

Depois de perder um amigo e um familiar para a covid-19, Juliano ficou ainda mais temeroso. “Durante a pandemia evitei ao máximo qualquer tipo de saída desnecessária. Até mesmo ir ao médico se tornou uma coisa que, realmente, só seria feita em casos extremos. Eu e minha esposa fizemos apenas o que era extremamente necessário, como ir no mercado e trabalhar, e nos mantivemos assim. Eu não busquei ajuda médica ou intervenção para tomar algum remédio ou calmante. Demorou para que eu procurasse um especialista”, explica.

O técnico alega que ir ao estádio de futebol acompanhar os jogos do Grêmio faz muita falta. Ele esteve presente na última vez em que a Arena recebeu público nas arquibancadas, em março de 2020, em partida histórica no primeiro Gre-Nal válido pela Taça Libertadores da América. Já se passou um ano e meio da data, mas voltar a frequentar o estádio ainda é uma realidade distante.


Torcedor tricolor, Juliano não tem expectativas de voltar a frequentar a Arena tão cedo / Foto: Arquivo Pessoal /Juliano Oliveira

Os jogos online contribuíram para que Juliano superasse os períodos mais rigorosos de distanciamento social. “O que ajudou, de certa forma, foram os vídeo games, os jogos digitais e a interatividade jogando com alguns amigos. Posso dizer que isso foi o que mais me auxiliou”, relata.

Com o ciclo vacinal completo, o técnico está mais tranquilo, mas segue isolado e evita ao máximo sair de casa. Ele conta que dificilmente visita amigos e parentes e que, quando isso acontece, é feito um estudo preliminar de como aquela pessoa lida com a pandemia.

“Depois desse tempo todo, vejo que a brecha maior para pegar o vírus acontece nas aglomerações familiares. Naquele ambiente a gente relaxa um pouco”, explica. Juliano salienta que, no seu local de trabalho, há muito respeito pela situação, o que o tranquiliza. “Na empresa eu tive muitos colegas que pegaram covid, mas por eu sempre me cuidar e ter a sorte de trabalhar com pessoas conscientes, facilitou para mim”, completa.

Sobre a sua saúde mental após a pandemia, Juliano indica que ainda irá demorar para lidar com a situação de forma mais natural. "Já faz quase dois anos que estamos convivendo em bolhas, então eu não sei se daqui pra frente eu vou ter que trabalhar isso, ou precisarei de um acompanhamento psicológico. Por enquanto, a minha cautela ainda é tentar não pegar o vírus, mesmo vacinado”, confessa.

Quem trabalha na área da saúde acompanhou de perto a evolução do vírus e precisou ficar ainda mais atento aos cuidados em relação à saúde mental. Agentes de saúde residem e trabalham num mesmo bairro e suas funções consistem em visitar a comunidade para avaliar as condições de saúde. Por terem contato direto com a vizinhança, a perda de pessoas próximas pesa ainda mais para esses profissionais.

A Agente de Saúde Neiva da Silva, 57 anos, trabalha na Estratégia Saúde da Família (ESF), localizado no bairro Boa Vista, em Sapucaia do Sul, e teve sua saúde mental comprometida na pandemia. Neiva é viúva e mãe de três filhos, dois com comorbidades. Devido ao emprego e aos problemas de saúde dos filhos, ela permaneceu mais de um ano sem conviver com parentes próximos, incluindo os dois filhos mais velhos e três netos, mesmo em datas especiais.

Segundo Neiva, a pandemia retirou dela momentos importantes ao lado dos filhos e netos. Contudo, a perda de uma sobrinha foi o momento mais pesado. “Eu não pude fazer nada por ela e nem pelos pais dela. Foi a coisa mais triste”, lamenta. Depois de perder a sobrinha, Neiva ainda acompanhou o falecimento de pessoas próximas em grande número, o que a fez entrar em choque.

Na semana em que recebeu a segunda dose da vacina, Neiva foi diagnosticada com covid-19, assim como a filha mais nova que reside com ela. Apesar de se recuperar bem, ela relata que precisou buscar ajuda médica para lidar com o contexto da pandemia, precisando inclusive fazer uso de remédios.

Sem poder ver os filhos e netos, a agente de saúde desenvolveu o hábito de assistir TV compulsivamente. “Acho que durante a pandemia eu olhei todas as séries que passaram na TV. Estou esperando novos lançamentos”, comenta Neiva.

Durante o isolamento social, ela também relata que passou a ingerir uma quantidade maior de bebidas alcoólicas. “Não tinha o que fazer, não podia ver meus filhos, não podia ver meus netos, não podia sair, isso me deixava louca, então eu bebia. Passei a entender um pouco mais os bêbados quando dizem que bebem pra esquecer”, explica.


Neiva ao lado do barzinho que adquiriu durante a pandemia / Foto: Arquivo Pessoal/Tainá da Silva

O enfermeiro William Alegre Lumertz trabalha na Estratégia Saúde da Família (ESF/UBS) Cohab/Feitoria, localizada na cidade de São Leopoldo, e relata que o número de pacientes que procuram ajuda para lidar com transtornos relacionados à saúde mental não aumentou na pandemia. “A procura não chegou aumentar em números, de modo geral, mas mudou um pouco o perfil do paciente”, explica. Segundo ele, devido ao medo de comparecer na unidade e contrair o vírus, muitas pessoas deixaram de procurar ajuda. Com isso, o número de pacientes se manteve na média verificada antes da pandemia.

Num cenário de normalidade, esclarece William, os pacientes buscavam a UBS não apenas em busca de tratamento com medicação, mas também ajuda por meio de escutas. No cenário pandêmico, os pacientes que procuram ajuda carregam a dor do luto e a sensação de culpa por não terem se cuidado e levarem o vírus para dentro de casa, assim como de impotência por ter um familiar no hospital e não poder ajudar. Essa sensação de medo e impotência, explica William, também é comum entre os profissionais na área da saúde que atuam na linha de frente da pandemia.

Já pensando em um cenário pós-pandemia, William conta que muitos pacientes passaram a entender a gravidade do cenário atual depois de terem contato com o vírus. Isso fez com que a saúde mental dessas pessoas fosse afetada, especialmente em decorrência do sentimento de preocupação permanente.

Segundo o enfermeiro, os pacientes da ESF demonstram confiança na volta à normalidade e as campanhas de vacinação oferecem esperança em relação ao retorno das atividades regulares. “Eles estão cientes de que não é de hoje para amanhã, é uma coisa que vai passar, que vai melhorar, mas vai levar um tempo ainda”, completa.


William em dia de trabalho na ESF/UBS / Foto: Arquivo Pessoal/William Lumertz

A psicóloga Géssica da Rosa trabalha no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II) Casa Azul, de Viamão, e relata que no seu local de trabalho a demanda por atendimento em saúde mental teve um aumento significativo. Em média, o número de atendimentos diários oscila entre 35 e 50. Antes da pandemia, contudo, o número de atendimentos era menor, variando entre 25 e 45.

Géssica comenta que quadros de ansiedade se tornaram mais recorrentes, inclusive em pacientes sem histórico de acompanhamento em saúde mental. Também há quem chegue com sintomas depressivos, situações de luto e de violência doméstica. Por outro lado, quem já era acompanhado por outros motivos, vivencia um aumento da intensidade de sintomas pré-existentes durante a pandemia.

A psicóloga explica que o retorno à normalidade, especialmente o uso do transporte público, tem gerado sintomas de ansiedade e pânico. Ela argumenta ainda que o retorno ao trabalho pode ser um fator gerador de ansiedade, "mas é uma nova adaptação que se faz necessária”.

Perspectivando um cenário pós-pandemia, a psicóloga acredita que o enfrentamento da covid-19 pode ter deixado importantes lições. Ela compara o que vivemos nos últimos meses a grandes eventos, como guerras e catástrofes, mobilizadoras de mudanças nos modos de organização da sociedade.


Géssica da Rosa, psicóloga no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II) Casa Azul, de Viamão / Foto: Arquivo pessoal/Dardo Produtora

“Para quem teve e ainda tem a saúde mental muito afetada pela pandemia, eu vejo que existe aí uma oportunidade de ampliar o olhar de uma questão localizada no indivíduo e na sua doença para a importância do coletivo em relação à saúde pública. E também a compreensão de que a saúde física e a saúde mental não são duas entidades separadas, mas dois aspectos da saúde intimamente relacionados”, reforça Géssica.

Edição: Beta Redação