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O racismo na Zara e a montanha do desespero

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Seis em cada 10 costureiras a serviço das grandes marcas da moda estão em situação de extrema vulnerabilidade. Isso dá mais de um milhão de mulheres - C. Meyer/DW
O mundo está doente e a Zara contribui para torná-lo ainda mais doente

Uma mulher negra foi impedida de entrar em uma loja da Zara em Fortaleza. Motivo: “questões de segurança”.

A loja diz que a impediu por estar tomando um sorvete, sem máscara de proteção. A alegação da loja é esdrúxula. A mulher foi vítima de racismo.

A loja se recusou a entregar as imagens das câmeras de segurança. Foi necessária uma operação policial, determinada pela Justiça, para a apreensão dos equipamentos.

Depois, a loja mandou dois advogados atrás da mulher, em seu local de trabalho, em uma injustificada e impertinente visita à vítima do caso, a parte vulnerável, a mulher, a negra.

A gênese do racismo

A pandemia e a crise econômica pegaram alguns setores de forma muito pesada. Um deles foi o de vestuário, que agora começa a se reerguer, com o arrefecimento da contaminação e a volta do comércio presencial.

As lojas estão esticando tapetes vermelhos aos consumidores. Fazem promoções, dão brindes, descontos, mimos. Colocam funcionários nos corredores, a convidar clientes para o interior das lojas.

Em um setor tão penalizado pela pandemia, seria sumariamente demitido o funcionário ou a funcionária que impedisse uma pessoa, tomando um sorvete, de entrar em uma loja. Pelo simples motivo de que essa pessoa ali deixaria dinheiro, em troca de alguma mercadoria. O básico da economia.

::Leia também: Delegada de polícia negra é impedida de entrar em loja da Zara no Ceará e instaura inquérito

Mas o racismo é forte. Está entranhado em corações e mentes. É mais forte do que a própria roda do capitalismo. A mulher do sorvete, sendo branca, não seria molestada. Ofereceriam a ela uma poltrona para que terminasse de se deliciar com o gelado. E depois, um copo de água gelada.

Mas a pessoa que entrava na loja era uma preta. Isso faz toda a diferença, em um país desigual, violento e racista. Além disso, a loja não disse que o problema era a ausência de máscara. Apenas alegou “questões de segurança”.

É toda a estrutura secular do racismo que movimenta as forças que boqueiam a entrada da mulher negra na Zara.

O crime de racismo ali cometido é a ponta de uma montanha escondida sob o manto da violência sistêmica que dizima minorias, populações vulneráveis, homossexuais, negros, indígenas, transgêneros, pobres e mulheres. Inclusive as brancas, assassinadas, violadas e violentadas por uma sociedade machista e recalcada.

Violência contra a mulher

O mundo está doente e a Zara contribui para torná-lo ainda mais doente. No Brasil, a Zara tem uma relação indelével com o trabalho escravo.

Condenada em segunda instância em 2017, entrou para a Lista Suja do Trabalho Escravo. Depois, foi novamente condenada por descumprir um termo de ajustamento de conduta, por conta de ocorrências de trabalho escravo em suas oficinas.

Apesar de gravíssimo e inaceitável, o trabalho escravo não é o maior problema na cadeia produtiva da Zara. Há uma questão gravíssima que afeta não apenas esta marca, mas todas as grandes marcas do setor do vestuário: a violência contra mulheres.

Seis em cada dez costureiras a serviço das grandes marcas da moda estão em situação de extrema vulnerabilidade. Isso dá mais de um milhão de mulheres.

O segmento têxtil, vestuário, couro e calçados emprega cerca de 2,7 milhões de pessoas. Mais de 70% são mulheres: 1,96 milhão de trabalhadoras. Dentre elas, 58% são informais, o que dá 1,1 milhão de mulheres. Destas, 80% não contribuem com a Previdência.

As costureiras informais ou escravizadas nunca trabalham menos de 14 horas por dia. Ganham menos que os homens, apenas pelo fato de serem mulheres. Boa parte delas dorme nas dependências das oficinas. Boa parte delas é formada por mulheres negras.

:: Para a maioria das paulistas, violência contra a mulher é a principal preocupação cotidiana::

Muitas relatam assédio moral e sexual por parte de contratantes ou chefes de oficina. Algumas transformam a própria casa em oficina e colocam filhos e filhas menores para ajudar no trabalho.

As doenças ocupacionais começam a aparecer logo nos primeiros anos de atividade. Também são comuns as doenças provocadas por insalubridade.

Toda a cadeia produtiva das grandes marcas do vestuário precisa ser investigada. Toda ela. É um dos setores da economia mais violentos contra as mulheres.

O nome dela é Ana Paula

O caso do racismo na Zara esconde uma montanha de problemas. Eles precisam ser investigados e os responsáveis, punidos.

A mulher negra, vítima de racismo nas dependências da Zara, é a delegada de polícia Ana Paula Barroso, diretora adjunta do Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis (DPGV) da Polícia Civil do Ceará.

Depois da ocorrência, homens da Zara a procuraram no trabalho. Advogados, queriam de volta as imagens das câmeras de segurança, em um comportamento indevido e que não deveria ocorrer. A delegada é parte na investigação que está em curso. E mais: é a vítima.

Quando o assunto é direitos humanos, a Zara, em sua atávica arrogância, tem a incrível capacidade de fazer tudo errado. O próprio descumprimento do ajustamento de conduta demonstra o descaso da empresa, controlada pela Inditex, grupo empresarial sediado na Espanha.

Escrevo o nome de Ana Paula apenas ao final do texto porque ela, neste momento, é mais do que um nome.

Ana Paula é uma causa de todos e todas contra o racismo. Ou como disse King, em seu antológico discurso de agosto de 1963: “Com esta fé nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança.” Estamos juntos.

*Marques Casara é jornalista especializado em investigação de cadeias produtivas. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Leia outras colunas.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Anelize Moreira