Extrema direita

ANÁLISE | O "Bolsonarismo" ganha força na Argentina

Com projetos conservadores exitosos na América Latina, Argentina vê versão própria da onda de direita

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A ex-ministra de Segurança de Macri, a "Bolsonaro argentina", em evento na Casa Rosada, em 2019 - Juan MABROMATA / AFP

Forças políticas e tendências ideológicas da extrema direita, que cresceram no início do século, especialmente na Europa, com fenômenos como o de Jean-Marie Le Pen, na França primeiro, e depois com a Liga do Norte, de Matteo Salvini, na Itália, fixou-se com suas feições xenófobas. Agora, elas espalham-se pelo velho continente e pela América Latina com características particulares, como um perigo para a democracia e aos direitos humanos.

Por volta de 2018, o empresário dos EUA, Steve Bannon, ex-assessor de Donald Trump, traçou e trabalhou a ideia de unir as opções políticas de extrema direita, primeiro na Europa e depois para a América Latina. Nesse caminho, assessorou o italiano Salvini, o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán e o início do partido Vox espanhol.


Sob liderança do premiê Viktor Orbán, Hungria limitou atuação de organizações de ajuda humanitária que auxiliam imigrantes / Foto: Ferenc Isza/AFP

Também manteve contato muito próximo com Eduardo Bolsonaro, filho do presidente do Brasil, a quem passou a assessorar a partir de 2017, quando seu pai tinha apenas 17% da intenção de voto. No fim, Bolsonaro chegou ao Planalto com sua política de extrema direita - escandalosa disputa judicial contra Lula da Silva - e hoje é um perigo para a democracia brasileira e para o continente latino-americano, como demonstra sua política em relação à pandemia de covid-19. 

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Com esses antecedentes, até certo ponto exitosos, há espaço político para uma tendência bolsonarista na Argentina, como aquela que Steve Bannon vem amadurecendo e trabalhando desde seus tempos na Casa Branca? 

Em princípio, o ex-presidente argentino Mauricio Macri e o atual brasileiro Jair Bolsonaro mantiveram uma excelente relação política e pessoal, expressa tanto bilateralmente quanto em organizações supranacionais, por exemplo, levando a aliança do Mercosul à absoluta inércia.


Ex-presidente daa Argentina, Mauricio Macri enviou munição à Bolívia para autoproclamação de Jeanine Áñez / Diario Uno

Da mesma forma, ambos compartilharam a operação que o ex-presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, Evo Morales, chamou de “Plano Condor do paletó e gravata”, com a participação ativa de seus governos no golpe de Estado de 2019.

A esse respeito, os processos judiciais na Bolívia e na Argentina avançam consideravelmente - com documentação confiável - sobre o envio de material bélico do governo macrista às Forças Armadas bolivianas, mesmo na forma de contrabando agravado, em verdadeira desgraça para a democracia argentina.

No caso do Bolsonaro, reuniões assíduas entre funcionários de seu governo e o governador do Departamento de Santa Cruz, Luis Fernando Camacho (o chamado Bolsonaro boliviano), foram corroboradas, pouco antes do cruel golpe que o teve como um dos principais protagonistas. 

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Enquanto Bolsonaro manteve uma atitude política de hostilidade constante para com o governo argentino de Alberto Fernández, a figura da ex-ministra da Segurança, Patricia Bullrich, emergiu com força das entranhas da administração anterior de Mauricio Macri, uma líder que pretende se tornar a "dama de ferro" argentina, emulando Margaret Thatcher.

Após questionada gestão de mão forte das demandas e protestos sociais durante o governo Macri e sua feroz defesa das forças policiais, Bullrich foi nomeada presidente do partido PRO e, a partir daí, com grande visibilidade na mídia hegemônica e anti- governo, ela não tem medo de ser chamada de "Bolsonaro argentina". 

A principal protagonista da coordenação do envio de material bélico para colaborar com o golpe na Bolívia assim descreveu seu modelo de segurança desajeitado de seu símile brasileiro: 

“Li e memorizei a lei anticrime que o Ministro de Justiça e Segurança Brasileira Sergio Moro apresentou . Nessa lei estão todos os conceitos que levantamos na Argentina. Há flagrância, isto é, julgamentos rápidos; legítima defesa para que não julguem mal a polícia; o endurecimento das penas para as organizações criminosas do tráfico de drogas; a lei de execução da pena, etc. (...) Quanto ao questionamento das pistolas Tasers como elementos de tortura, se o pensamento é  sempre de que as forças de segurança não vão fazer o que é certo, então não vamos dar nada a eles; não tenhamos polícia". 

Em meados de setembro, Patricia Bullrich, questionando ex-membros do governo macrista e do PRO por sua moderação, se lançou como candidata presidencial para as eleições de 2023 com um nível de exposição na mídia que poucos políticos exibem.

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Entre os movimentos políticos mais recentes de Bullrich, destaca-se a aproximação com o economista Javier Milei, candidato ultraliberal que, com um discurso extremamente violento e antissistema, acaba de ser votado por 13,66% dos cidadãos da Cidade de Buenos Aires nas eleições.

Mais um dos personagens que hoje percorre assiduamente os meios de comunicação da direita argentina proclamando sua vontade de ser presidente. Milei, um grande admirador dos economistas americanos Friedrich Von Hayek e Milton Friedman, lucrou durante a pandemia com as dificuldades econômicas do país e os necessários controles de mobilidade cidadã que ela exigia. Sob o lema da “liberdade”, agregou adesões inesperadas, mesmo em grupos jovens, para um personagem rotulado de “maluco” pelos argentinos comuns. 


O economista midiático: Javier Milei representa o movimento dos libertários, uma corrente "anarcocapitalista" que promete "romper a casta política". / Alfredo Luna / Telam / AFP

Assim, o sistema político argentino, por meio de seu sistema de comunicação monopolista que foi duramente questionado nos tempos do kirchnerismo, sofre a geração e a irradiação persistente de ideias e personagens de extrema direita a partir de duas grandes questões que unem e seguramente unirão Bullrich e Milei, como ambos já antecipam. 

Questões que não são novas e que mostram a incompatibilidade entre liberalismo, democracia e direitos humanos: de um lado, liberalismo econômico sem regulamentação e segurança nas mãos de um Estado autoritário e repressor; e, por outro lado, a indústria do ódio aos socialmente desfavorecidos e à diversidade, seja por nacionalidade, raça, gênero ou sexualidade. 

Desde a recuperação da democracia em 1983, a Argentina não vivia a formação de opções políticas de extrema direita tão afirmadas por sua irradiação social, com uma linguagem e práticas típicas de uma ditadura. É hora de tomar consciência desse quadro da situação, antes que seja tarde demais. 

* Historiador e jornalista argentino, autor, entre outros livros, de: "Macri & Durán Barba: globos, negocios, círculo rojo y guerra sucia" 

Tradução: Carmen Diniz