Direito das mulheres

Artigo | A luta por direitos reprodutivos é global

Mulheres em todo o mundo refletem sobre os diferentes obstáculos para obter este direito fundamental e autonomia

Tradução: Ana Paula Rocha

São Paulo (SP) |
Mobilização pelo aborto na Argentina - Rodrigo Buendía/AFP

A necessidade do capitalismo pela reprodução e cuidado da força de trabalho foi institucionalizada durante a criação do Estado moderno, que legislou o determinismo biológico da mulher para o lar, maternidade e esfera privada de reprodução social. Desde então, têm se organizado e lutado por um conceito de cidadania que não exclua mulheres, migrantes, LGBTQIA+ e pessoas racializadas. Nesta luta, elas vêm alargando o caminho para a democracia e causam revoluções, bem como ampliam a teoria e a prática que transforma o mundo.

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Este caminho tem sido de voltas e reviravoltas com bloqueios e resistência. Em homenagem ao dia 28 de setembro, Dia Global de Ação pelo Aborto Gratuito, Seguro e Legal, mulheres de diferentes regiões do mundo compartilham reflexões sobre esta questão crucial.

Este dia internacional de luta, como tantos outros, originou-se no Sul Global. Em 1990, o V Encontro Feminista da América Latina e Caribe foi organizado na Argentina e seu convite foi estendido a pessoas ao redor do planeta para trabalharem por uma agenda coletiva internacional de emancipação de mulheres e corpos de gênero diverso, para lutar contra mortes clandestinas, criminalização e pobreza que força muitas a terem filhos indesejados. Hoje, 28 de setembro, é dia global de ação que coloca no centro do debate internacional a necessidade de autonomia sobre seus próprios corpos e o acesso a cuidados básicos para que possam agir conforme suas escolhas.

Mundialmente, há significativa diversidade em relação ao acesso aos direitos reprodutivos e sexuais. Existem países com legislações que permitem abortos dentro de um tempo limite (até 14 semanas de gestação, 22 semanas etc.); outros possuem leis que permitem o procedimento em casos específicos (dependendo da viabilidade do feto, em caso de estupro ou risco para a vida da mãe). Há ainda lugares onde as pessoas que realizam ou ajudam alguém a abortar são totalmente criminalizadas e podem ser presas. Um terço dos países da América Latina e Caribe banem totalmente o aborto. Em El Salvador, Honduras, Nicarágua, República Dominicana e Haiti, mulheres enfrentam a prisão mesmo quando os abortos são espontâneos. O caso de María Teresa Rivera, salvadorenha residente na Suíça, é o primeiro caso conhecido de asilo relacionado ao direito ao aborto, expressando a extrema situação de perseguição e criminalização nas quais se encontram os corpos das mulheres.

Apesar de todas as diferenças, a realidade por trás de tudo isso é que o aborto e a justiça reprodutiva são questões de classe que carregam um enorme estigma social e permanecem no centro da luta contra tradições reacionárias, conservadorismo religioso e extrema direita.

Em muitos países, a luta por justiça reprodutiva tem se concentrado em torno da aprovação de lei que legalize este procedimento médico. Contudo, ativistas em todo o mundo insistem que a luta vai além. “Não é somente sobre a legalização do aborto, há algo ainda maior: o impacto do neoliberalismo nos direitos das mulheres”, aponta Nalu Farias, da Marcha Mundial das Mulheres.

Esta batalha acontece ao mesmo tempo em que o acesso a cuidados médicos e serviços públicos estão sendo minados. Programas para criação de creches, empregos e moradia decente estão sendo atacados diariamente, o que afeta diretamente as mulheres encarregadas de garantir a reprodução diária da vida familiar.

Barbara Tassoni, do Poder ao Povo (Potere al Pópolo, em italiano), organização de esquerda da Itália, explica que “a lei deve conceder cuidados públicos de saúde a todos, mas a privatização em curso do sistema de saúde torna inacessível a prestação de cuidados básicos. Essa situação condiciona nossa realidade enquanto mulheres jovens e nos impede de ter uma maternidade livre e desejada, sem precariedade”.

Luta por autonomia

Toda geração de mulheres luta contra o Estado e o lobby em defesa de leis, além de batalhar para aprovar legislação que garanta a autonomia feminina, com vistas a promover nossos direitos. Mas ao longo da história, todas essas conquistas são desafiadas a cada crise capitalista, como a acelerada pela pandemia de covid-19, mostrando a fragilidade de nossas vitórias.

O ataque internacionalmente coordenado da direita, extrema direita e dos grupos religiosos que são expressamente anti-escolha, têm atacado e tornado vulneráveis direitos antes conquistados. Em muitos países, a direita impede a educação sexual nas escolas e a aplicação de leis já existentes, cortam ou limitam o acesso legal a contraceptivos e ao aborto. Em muitos países, o discurso da direita postula as mulheres como ferramentas de mudanças demográficas, alimentando temores de superpopulação de “minorias indesejadas”. Isso tem influenciado a agenda da direita, de organizações religiosas e partidos conservadores em países como a Polônia. A separação entre o Estado e a religião é uma das questões-chave com a qual podemos analisar os direitos reprodutivos das mulheres. Em 1965, a Tunísia se tornou o primeiro país de maioria muçulmana a aprovar lei permitindo o aborto.

Atualmente, o estado do Texas, nos EUA, está no epicentro das políticas para o aborto por conta da lei SB8, que baniria a realização do procedimento após seis semanas de gestação. Na prática, isso significa o banimento quase que completo dos abortos, uma vez que a maioria das pessoas não sabe que está grávida até passadas as seis primeiras semanas. Layan Fuleihan, do Fórum Popular de Nova York, explica que “a legalização do aborto se baseia no conceito de privacidade, lidando com os direitos das mulheres como questão individual. Portanto, teoricamente, nós temos o direito pessoal de escolher ou não pela gravidez”. Nos Estados Unidos, a única base legal que existe para substanciar o acesso ao aborto é a sentença do caso Roe vs. Wade, de 1973. “Isto é muito problemático, pois permite a cada governo estadual uma interpretação aberta, resultando em acessos profundamente diferentes [ao aborto] no país [dependendo do partido eleito]”, Fuleihan destaca. Por exemplo, onde as leis são interpretadas de maneira conservadora e o aborto é permitido somente em casos específicos ou é proibido de todo, as organizações e clínicas que ofertam este serviço de saúde a mulheres e comunidades marginalizadas ou perdem financiamento, ou são fechadas.

Mesmo em localidades onde as leis em vigor garantem o direito à escolha, muitas das pessoas que procuraram pelo procedimento se deparam com “guardiões”, como administradores locais e médicos. Segundo Ada Donno, da Federação Democrática Internacional das Mulheres, na Itália, “a possibilidade de recusar-se a realizar o procedimento é chamada de ‘objeção de consciência’ e é usada no país por 70% a 90% dos ginecologistas”. A situação é similar na Espanha onde, segundo Nora García, “não temos nem mesmo números reais desses 'médicos conscientes' na região de Madri, que é governada pela direita há mais de 25 anos. O que sabemos é que dos 16.330 abortos que ocorreram em 2019, nenhum foi feito pelo sistema público de saúde”. Isso mostra que efetivar nossos direitos é uma questão de intenção política, porque a Espanha supostamente tem uma das políticas [para aborto] mais avançadas da Europa. Na Alemanha, a decisão de alguém realizar um aborto deve ser autorizada por um médico após avaliação psicológica da paciente.

Os “guardiões” não são somente ginecologistas religiosos, governos regionais e psicólogos, mas pode ser também o rei. No Marrocos, o rei Mohamed VI é o árbitro dos direitos e decisões relacionados às mulheres. Em muitos países, “cidadãos preocupados” e associações locais “pró-vida” exercem violência impunemente, montando piquetes em frente aos postos de saúde da mulher contra trabalhadores e pacientes, ao mesmo tempo que recebem financiamento público para agir contra a lei.

Quando o termo “gravidez na adolescência” é aplicado a meninas menores de 14 anos, o acesso ao aborto é algo que já chega tarde demais. A falta de educação sexual, o extremo desequilíbrio de poder entre gêneros (tornando discutível o conceito de consenso), o estigma social sobre os corpos femininos em geral e sobre a sexualidade em particular provam que a luta por autonomia é a luta por fazer escolhas baseadas em informações. Isto está muito claro no contexto de inúmeros países do continente africano, como explicado por Zikhona, integrante do Pan-Africa Today. “A educação sexual é um conhecimento fundamental muito básico, necessário às mulheres da classe trabalhadora. Necessário para todas as idades, na verdade. Nós precisamos conversar com as adolescentes sobre menstruação, precisamos conversar com as mulheres adultas sobre doenças sexualmente transmissíveis e menopausa. Nosso corpo não pode ser um mistério sobre o qual não se fala publicamente. Esta deveria ser uma prioridade governamental por meio de políticas públicas concretas em todos os países africanos.

Na América Latina, está havendo uma clara resposta da direita e da extrema direita após as vitórias que permitiram o aborto seguro no Uruguai (2012), Chile (2017), Argentina (2020) e México (2021). Laura Capote e Agostina Betes, do Movimento ALBA, comentam que “Elas [as reações de setores conservadores] são parte de uma estratégia empregada no território para frear ou extirpar as propostas emancipatórias. No continente americano, experienciamos diariamente situações tais quais a da menina brasileira de 10 anos de idade que ficou grávida após um estupro e a quem o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos do governo Bolsonaro tentou evitar que tivesse acesso ao aborto legal”.

Esta ampla gama de guardiões é apenas um sintoma da ideia difundida de que as mentes e corpos das mulheres precisam ser controlados sob uma ordem mundial capitalista e neoliberal. É por este motivo que os direitos das mulheres são tão perigosos para o sistema global atual. É por este motivo que muitos se uniram a esta luta global. E cada vitória pelo mundo dá forças a esta batalha, como na Argentina no ano passado, ou no México em setembro, países nos quais a nova legislação sobre o aborto garante que a “objeção de consciência” não possa invalidar nossos direitos; ou ainda em San Marino, na Itália, onde atingiu-se 77% de apoio ao referendo sobre o aborto.

Além do sistema clandestino

A falta de legislação permitindo o aborto não o impede de acontecer. Um exemplo é que entre 500 e 800 abortos clandestinos são realizados ilegalmente todos os dia no Marrocos e isso sob todos os riscos que uma operação como está apresenta. O slogan argentino “Educação sexual para decidir, contraceptivos para não abortar e aborto legal para não morrer” articula três das principais demandas das mulheres por todo o mundo. Todavia, faz-se necessária uma análise mais aprofundada para entender – e, consequentemente, confrontar – as raízes dos ataques aos direitos das mulheres e das pessoas de gênero diverso. Movimentos feministas em todo o planeta devem fazer parte da aliança global que luta para mover o centro da sociedade para longe dos mercados e em direção à reprodução da vida a partir da emancipação e da liberdade.

* Este artigo foi escrito em conjunto por mulheres de todas as regiões do mundo que fazem parte do Grupo de Mulheres da Assembleia Internacional dos Povos (IPA).

Edição: Thales Schmidt