Rio Grande do Sul

CULTURA

‘Quando a natureza terminar, os povos indígenas também vão terminar’

Documentário recém lançado conta a história da retomada kaingang na Floresta Nacional de Canela

Sul 21 |
Bastidores do filme "Konhun Mág – O caminho da volta à floresta de Canela” - Foto: Iury Fontes

O cacique Maurício Ven Tainh Salvador tem apenas 26 anos. Mentalmente, diz acreditar ter quase 60. A razão é o aprendizado e conhecimento obtido nos últimos anos, primeiro ao lado do pai, e depois junto aos indígenas mais velhos que o apoiam e o orientam desde que ele se tornou o líder da retomada kaingang na Floresta Nacional de Canela (Flona).

A retomada busca o reconhecimento da terra indígena kaingang na Flona, uma ação que remonta a mais de 200 anos de história, agora projetada na luta pelo direito ao território ancestral. A ação em Canela começou há cerca de 15 anos, comandada pelo pai de Salvador. Em setembro de 2017, com a morte do progenitor, o filho assumiu a missão de liderar seu povo na missão da retomada.

A história está contada no documentário Konhun Mág – o caminho da volta à floresta de Canela, lançado na última quarta-feira (29) e disponível na íntegra no YouTube.

“É uma responsabilidade muito grande, um compromisso muito sério. Consegui puxar os mais velhos pro meu lado e, com eles aconselhando, fazendo o benzemento com remédios, foi mudando meu espiritualismo, minha mente e emoções. Tenho 26 anos, mas minha cabeça e modo de pensar coloco como de um homem de quase 60 anos”, afirma o jovem cacique.

Atualmente há 10 famílias kaingangs dentro do território. Quando o processo de retomada começou, sob comando do seu pai, eram cerca de 50 famílias. Com o tempo muitas regressaram para outras aldeias e agora aguardam a garantia da posse da terra para então voltar a Canela.

“No momento em que ele faleceu, muitos parentes se reuniram, tivemos uma roda de conversa, e os mais velhos relataram a importância da luta e o exemplo que meu pai passou, e por causa disso mais um movimento deveria ser feito, em nome do meu pai”, explica Salvador.

Com os irmão mais velhos vivendo em outras comunidades indígenas em territórios já reconhecidos, coube ao jovem assumir a liderança. “Como acompanhei muito meu pai nas reuniões, nas rodas de conversa, nas apresentações, fiquei com esse conhecimento que tive com ele e os conselhos que ele me deu. Então no momento em que ele faleceu, assumi o posto de liderança.”

A Floresta Nacional de Canela é marcada por violentos conflitos entre os ancestrais kaingangs que habitaram a região e os colonizadores. Há relatos de lutas intensas travadas na serra gaúcha. Parte destas batalhas é contada no documentário quando os kaingangs visitam a área denominada de Poço dos Caixões, desfiladeiro onde teriam ocorrido três dias de conflitos entre os indígenas e os colonizadores, culminando com o massacre dos kaingangs.

Salvador ficou satisfeito com o resultado final do documentário. Acredita que o filme é importante para mostrar o que aconteceu e a história da retomada.

“A gente queria mostrar a importância da nossa luta, por um espaço que era reconhecido como território tradicional e mostrar a importância desse território que hoje está ameaçado. Queremos valorizar a nossa cultura do povo kaingang e fortalecer ainda mais. A gente vem lutando para deixar um futuro para os nossos filhos. Então é muito importante haver o documentário mostrando isso.”

Atualmente, a Flona é administrada pelo ICMBio e já foi local de muita extração de madeira, um dos motivos dos conflitos entre os indígenas e o homem branco.

Se para os colonizadores as árvores eram vistas como oportunidade de negócio, para os kaingangs a preservação da natureza está diretamente relacionada com a própria vida. “A gente não vem querendo conquistá-la, a gente é a natureza em si”, afirma o líder da retomada.

O tempo

O historiador Guilherme Maffei Brandalise se interessa pelo estudo dos povos indígenas faz algum tempo. Em 2019, seu trabalho de conclusão de curso na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) foi denominado “Eles se vangloriam de ser índios, e com esse nome querem ser chamados”: indígenas, capuchinhos e as colônias italianas no nordeste do Rio Grande do Sul (1895-1918)”.

Quando soube da retomada dos kaingangs em Canela, logo começou a acompanhar a ação e a gravar as primeiras imagens, feitas quando os indígenas ainda estava num acampamento provisório na beira da estrada. Em 2019, a retomada foi registrada em vídeos curtos, publicados no Instagram, no site e canal do Youtube do Coletivo Catarse. No ano seguinte, já em plena pandemia, o lançamento do edital Criação e Formação Diversidade das Culturas, realizado com recursos da Lei Aldir Blanc, foi a oportunidade para produzir um trabalho de mais fôlego.

Brandalise conta que filmar o documentário durante a crise do coronavírus foi um desafio, um pouco amenizado pelo fato dos indígenas estarem já vacinados e as cenas terem sido gravadas ao ar livre.

A proposta foi elaborar o filme com a maior colaboração possível dos kaingangs, inclusive no roteiro. Uma experiência, diz Brandalise, de muito aprendizado pela oportunidade de estar em contato com a cultura indígena. “São pessoas que têm outras referências que, às vezes, a gente acha que nem existem mais. É um aprendizado muito profundo conhecer essas diferenças, e o documentário deu a oportunidade de aprofundar essa relação.”

Entre as experiência marcantes, o realizador do filme destaca o ritmo de vida dos kaingangs, bem diferente da aceleração característica da rotina do homem branco.

“A gente tem o nosso ritmo de relógio, de horário, de compromisso. A gente chega na aldeia e o ritmo deles é outro. O Mauricio nos disse que a gente não podia estar nem na frente e nem atrás do tempo. É no ritmo da estação, como as coisas vão acontecendo. Isso é um aprendizado, porque vivendo na cidade temos um ritmo muito frenético. Na aldeia, às vezes a gente quer fazer uma coisa, mas tem que esperar o ritmo deles. Aprendi bastante a não querer impor um ritmo e entrar no ritmo dos outros, pra fazer essa construção coletiva.”


O cacique Maurício Ven Tainh Salvador quer fazer o homem branco entender a importância da preservação ambiental / Foto: Reprodução/YouTube

A natureza

O cacique Maurício Ven Tainh Salvador analisa com sabedoria e simplicidade as diferenças na relação de seu povo com a natureza, em comparação ao modo exploratório como o homem branco se relaciona com os recursos naturais.

A Floresta Nacional de Canela, ele alerta, está cada vez mais próxima da área urbana do município. Há empreendimentos imobiliários sendo erguidos em direção à floresta e ao território reivindicado pelos kaingangs. Salvador espera que a retomada sirva para esclarecer a população da turística cidade da Serra Gaúcha sobre a importância da preservação do meio ambiente.

“Tento ver como esse território vai estar daqui 50 anos. A gente vem mostrando a nossa luta, a nossa preservação e conservação da natureza, a identidade do povo kaingang e o modo de vivência que a gente quer. A gente quer preservar nosso modo de viver, mas também apresentar isso pro homem branco. A gente quer mudar o pensamento do homem branco de que a natureza é um negócio, mudar a visão que o homem branco tem da natureza. A visão dos povos indígenas também tem que ser mostrar pro homem branco quais são os impactos pra daqui a 50 anos. Acho que a visão do homem branco é pensar no hoje e no agora, nós povos indígenas não, a gente pensa no amanhã e no depois de amanhã”, afirma o jovem de 26 anos e cabeça de 60.

Ao assumir a liderança da retomada após a morte do pai, Salvador conta que sentiu o preconceito e a discriminação da população da cidade. Passou então a tentar entender os motivos desse sentimento, incluindo o receio do governo municipal com a chegada deles ao território. Cerca de quatro anos depois, diz que a relação melhorou. Hoje há moradores de Canela que se aproximam da área da retomada, procuram conhecer o manejo indígena com plantas medicinais, alguns relembram histórias da presença indígena na floresta e os incentivam a permanecer na retomada e não deixar que o território seja vendido ou devastado.

“Hoje o próprio município percebe o objetivo da nossa luta, que é a preservação e a conservação, para que não se termine com o pouco de mata nativa que ainda tem aqui. No diálogo a gente se entende. Tive muito diálogo com o pessoal ao redor pra explicar qual o objetivo da nossa retomada, o que queremos fazer, o que queremos mudar, e através disso temos uma relação boa com a sociedade do município. Hoje a Prefeitura também vem reconhecendo nossos direitos e nos ajuda de vez em quando com mantimentos”, explica.

A pandemia abalou um dos principais modos de sustento dos indígenas que é a venda do artesanato. Apesar das dificuldades impostas pela crise sanitária, somadas ao cenário extremamente adverso para os povos indígenas no Brasil de Bolsonaro, o cacique e líder da retomada kaingang na Floresta Nacional de Canela acredita ser possível um futuro melhor para seu povo. Um destino diretamente ligado à própria natureza.

“O homem branco tem a visão do individualismo e nós, povos indígenas, a gente atua no coletivo. A gente vem mostrando esse coletivismo que temos, e também juntos lutar por esse objetivo que é a natureza. Preservar o que tem aqui pra que não termine, e para que a gente também não seja exterminado. Quando a natureza terminar, os povos indígenas também vão terminar.”

Edição: Sul 21