Entrevista

“Em que país vivem os médicos que ainda apoiam o genocida?”, questiona ex-ministro Mário Mamede

Médico cearense defende que a direção do CFM renuncie diante das denúncias levantadas pela CPI da Covid

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Representantes do movimento "Brasil Vencendo a Covid" saúdam o presidente Jair Bolsonaro durante evento em Brasília (DF), em setembro de 2020 - Marcos Correa / PR

Médicos cearenses divulgaram, na última semana, uma carta aberta pedindo a renúncia da direção do Conselho Federal de Medicina (CFM) por endossar o suposto “tratamento precoce” com cloroquina e ivermectina durante a pandemia. Ambos os medicamentos comprovadamente ineficazes contra a covid-19.

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O documento foi elaborado por integrantes da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia no Ceará (ABMMD-CE), do Coletivo Rebento/Médicos em Defesa da Vida, da Ciência e do SUS, e da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMMP).

Entre os profissionais que assinaram a carta, está o ex-deputado estadual, ex-ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos (2005-2006) e médico cearense Mário Mamede.

Em conversa com o Brasil de Fato, Mamede analisa a ascensão do conservadorismo na categoria em um contexto de agravamento das tensões políticas no país.

“As entidades médicas passaram a adotar posições extremamente reacionárias. Elas se aproximaram cada vez mais do bolsonarismo, e pior: em notas oficiais, como fez a Federação Nacional dos Médicos à época do golpe contra a presidenta Dilma, dizendo falar em nome dos médicos brasileiros”, critica.

Na visão dele, as informações levantadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid demonstram os estragos causados pelo CFM ao tentar justificar o uso de medicamentos como cloroquina e hidroxicloroquina em nome de uma suposta “autonomia médica”.

“Diante das graves denúncias que envolvem a Prevent Senior e outras prestadoras de serviço, diante das experiências médicas que estão sendo feitas sem dar conhecimento ao paciente, aos familiares ou aos comitês de saúde, não podemos mais tolerar que o Conselho [Federal] de Medicina tenha se aproximado tanto do bolsonarismo. Não se trata mais de silêncio, omissão ou conveniência: agora é conivência e cumplicidade”, ressalta o médico.

Na última sexta-feira (1º), a Defensoria Pública da União entrou com uma ação contra o CFM por danos morais coletivos pela indicação do uso de cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes com covid-19. A ação foi protocolada na 22° Vara Cível Federal de São Paulo e é assinada por defensores de 10 estados e do Distrito Federal.

Eles pedem uma indenização coletiva de R$ 60 milhões, além de indenizações individuais a quem teve parentes afetados ou mortos em decorrência do uso indevido dos medicamentos. O CFM ainda não se posicionou oficialmente sobre essa ação e sobre as críticas que dizem respeito à sua cumplicidade com posições equivocadas durante a pandemia.

Mário Mamede enfatiza a dificuldade de se dialogar com colegas que ainda apoiam o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) ou não se indignam diante das milhares de mortes evitáveis.

“Os coletivos que assinaram a nota chegaram à conclusão de que não adianta ficar na tentativa de um diálogo, de buscar um convencimento. Porque a reação deles é quase sempre a mesma: ‘E o Lula?’ ‘E o mensalão?’ ‘E a corrupção do PT?’ Não tem uma linha argumentativa”, lamenta.

“Então, a gente concluiu que a situação está tão grave que devemos adotar uma posição de certo confronto, fazendo com que eles se sintam envergonhados de apoiar uma loucura dessas”.

Mamede afirma que os colegas que se mantém fiéis ao bolsonarismo devem se pronunciar sobre as múltiplas crises que o Brasil enfrenta.

“O que a categoria tem a dizer sobre a perda de nossas riquezas, a venda das nossas fontes petrolíferas, a negação dos territórios indígenas, a mineração desenfreada, a destruição do meio ambiente? Em qual país moram esses médicos?”, questiona.

“A categoria médica que abraçou Bolsonaro não pode se dar ao direito de ficar silente, porque o silêncio é terrível.”

Confira os melhores momentos da conversa:

Brasil de Fato: Em 2013, o Ceará foi palco de agressões a médicos cubanos, que desembarcavam no Aeroporto de Fortaleza (CE) para trabalhar em regiões periféricas. Mayra Pinheiro, a “Capitão Cloroquina”, participou daquelas ações e atuou no estado antes de entrar no governo Bolsonaro. A carta aberta de médicos cearenses no último dia 28 expressa um posicionamento importante em sentido contrário, denunciando o negacionismo. Qual deve ser o papel das associações e coletivos de médicos em defesa da democracia, diante das denúncias levantadas pela CPI da Covid?

Mário Mamede: O Ceará tem um histórico muito grande de lutas sociais, desde a luta contra a abolição da escravatura. Não é uma terra em que as pessoas sejam aquietadas ou se dobrem ao autoritarismo. Talvez por se tratar de uma região de semiárido, que lida com dificuldades permanentes, sobretudo os setores mais pobres, sempre tivemos essa característica.

Sou formado em 1971 e participei do Movimento Nacional de Renovação Médica, que se alastrou pelo país no final daquela década e ao longo dos anos 1980. Enfrentamos o autoritarismo, tivemos conquistas importantes do ponto de vista das condições de trabalho, conseguimos a reabertura dos sindicatos e o fortalecimento das instituições.

Foi algo magnífico na história brasileira, com expressão aqui no Ceará, mas também em outros estados.

No período seguinte, criamos aqui no estado um Movimento Médico pela Anistia e participamos das Diretas Já.

Apesar dessa história de luta, nos últimos anos as entidades médicas passaram a adotar posições extremamente reacionárias. Elas se aproximaram cada vez mais do bolsonarismo, e pior: em notas oficiais, como fez a Federação Nacional dos Médicos à época do golpe contra a presidenta Dilma [2016], dizendo falar em nome dos médicos brasileiros.

Diante das graves denúncias que envolvem a Prevent Senior e outras prestadoras de serviço, diante das experiências médicas que estão sendo feitas sem dar conhecimento ao paciente, aos familiares ou aos comitês de saúde, não podemos mais tolerar que o Conselho [Federal] de Medicina tenha se aproximado tanto do bolsonarismo. Não se trata mais de silêncio, omissão ou conveniência: agora é conivência e cumplicidade.

Então, nós queremos que essa direção renuncie, porque não tem mais sustentação legal para continuar.

A categoria médica é parte da sociedade, e não tem saída para ela se não houver saída para o todo social, com a garantia do Estado democrático de direito, o respeito às diferenças, ao meio ambiente, a proteção às populações vulneráveis.

Os coletivos que assinaram a nota chegaram à conclusão de que não adianta ficar na tentativa de um diálogo com colegas que ainda defendem o bolsonarismo. Porque a reação deles é quase sempre a mesma: ‘E o Lula?’ ‘E o mensalão?’ ‘E a corrupção do PT?’ Não tem uma linha argumentativa.

A gente concluiu que a situação está tão grave que devemos adotar uma posição de certo confronto, fazendo com que eles se sintam envergonhados de apoiar uma loucura dessas.

Afinal, onde estão os colegas que ainda apoiam esse genocida? O que eles têm a dizer?


Manifestação em frente à sede da Prevent Senior, na última semana / Guilherme Gandolfi

Antes de Bolsonaro, como se expressava ou se canalizava o reacionarismo da categoria médica? Podemos dizer que ele estava latente há décadas, e que o programa Mais Médicos trouxe à tona sentimentos que estavam represados?

Fui professor da Faculdade de Medicina [da UFC] durante cinco anos, como convidado, em uma cadeira chamada “Introdução à prática médica”. Era uma cadeira de primeiro semestre, com conteúdo muito bonito, que passa os ensinamentos básicos, os valores éticos, humanistas, a evolução da relação médico-paciente.

A moçada que entra [na faculdade] era extremamente sonhadora. Eles tinham uma visão muito bonita da prática médica, querem fazer o bem, melhorar a saúde do povo, trabalhar para as pessoas mais necessitadas. É uma visão muito romântica.

Não se trata só de um olhar subjetivo. A gente aplicava um questionário, para ver como eles enxergam sua vocação e a prática médica.

Mas, com os anos, isso vai mudando para uma visão elitista da prática médica, e nós tentamos entender por que isso ocorre. Uma das hipóteses é o modelo chamado flexneriano, que prevalece no Brasil, e que prioriza a formação de especialistas – em detrimento da medicina comunitária, voltada para a atenção básica.

Essa mudança na formação médica ocorreu nos últimos 30 anos.

O jovem médico, quase sempre, quer ter reconhecimento e prestígio social e uma condição de vida com alto nível de conforto e poder aquisitivo. Ou seja, ganhar dinheiro. Isso gera um distanciamento cada vez maior da realidade da população – além de um distanciamento político, dos problemas sociais.

Por isso, a categoria médica abraçou, em diferentes momentos, modelos políticos que se distanciam das necessidades do povo. E não só no Brasil.

Quando houve a revolução em Moçambique, na Nicarágua, ou a luta anticolonial em Angola, muitos médicos foram embora, e a população ficou abandonada. Após a Revolução Cubana, ficaram só 12 médicos no país – o resto foi para Miami, ou para outros locais.

Então, há uma tendência lamentável de fugir e abandonar a população quando as condições políticas e o modelo de governança se chocam com seu interesse de classe. Foi isso que aconteceu no Brasil: o ódio ao PT, o distanciamento dos valores democráticos, os valores elitistas.

O Conselho tem a sua responsabilidade, porque deu orientações absolutamente inadequadas e quebrou sua isenção, do ponto de vista político e ético.

O programa Mais Médicos foi, sim, um divisor de águas. Grande parte das entidades representativas da categoria médica criaram uma narrativa de que a presidenta Dilma estava tentando desmoralizar os médicos. O argumento era que estavam trazendo profissionais cubanos desqualificados para trabalhar no interior do país. Chegaram a dizer que não eram nem médicos – eram enfermeiros, técnicos, e até guerrilheiros. Uma coisa absolutamente insana.

O Mais Médicos tinha uma lista de prioridade, em os primeiros a serem chamados eram brasileiros que desejassem trabalhar no programa. Se as vagas não fossem preenchidas, seriam chamados médicos estrangeiros, que se submetessem às regras desse programa.

Por fim, o programa evoluiu para um convênio com a Opas [Organização Pan-Americana da Saúde], para que, através dela, fosse realizado um contrato com o governo cubano. A ideia era que médicos formados com uma visão comunitária, voltada para a atenção básica à saúde, viessem para cá atender comunidades desassistidas – quilombolas, ribeirinhos, locais de difícil acesso, áreas de fronteira, algumas das quais jamais tinham visto a figura de um médico.

Infelizmente, o médico brasileiro nem sempre tem formação para atuar nessas áreas.

A partir de então, criou-se uma relação de ódio ao PT, ódio a Dilma, de apoio ao golpe. Foi uma bola de neve.

O apoio de parte da categoria médica ao bolsonarismo reflete esse histórico, mas não pode continuar diante das denúncias levantadas pela CPI da Covid.

As entidades que assinam a carta aberta pedem a renúncia da direção do CFM. Na sua avaliação, para além das pessoas que hoje ocupam cargos no Conselho, existem problemas de organização interna da entidade, que deveriam ser enfrentados de modo a torná-la mais democrática?

Para falar em nome de uma categoria, é preciso ter grande representatividade e legitimidade. Ainda mais, em momentos delicados, como uma situação de golpe de Estado ou de quebra constitucional, jamais uma entidade poderia falar em nome dos médicos brasileiros.

Uma atitude como essa desrespeita aqueles que, na categoria, discordam dessa posição e não foram consultados.

É para isso que existem assembleias, reuniões extraordinárias e colegiados – que devem ser convocados em momentos de tomada de decisão.

A categoria pode e deve ser consultada, diretamente, dentro de determinado prazo, e é com base nessas respostas que deve ser formulado um posicionamento.


Presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Ribeiro, ao lado de Jair Bolsonaro (sem partido) / Marcos Correa / PR

As entidades médicas devem representar e defender o trabalho dos médicos, mas tudo em função do bem-estar da sociedade e da proteção ao paciente. Ele é o motivo do nosso trabalho.

Quando as entidades passam a desrespeitar esse princípio basilar, elas perdem legitimidade e credibilidade.

Na polêmica sobre o uso de medicamentos como cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina contra a covid-19, o CFM se posicionou pela “autonomia médica”. Como você encara esse argumento?

Os conceitos de autonomia médica e de “tratamento precoce” foram manipulados pelo Conselho Federal de Medicina e colocados, documentalmente, em resoluções da categoria.

Autonomia médica é quando, a partir do conhecimento médico, você decide por determinado procedimento terapêutico, no sentido de beneficiar o paciente. Se aquele procedimento pode gerar algum mal-estar ou complicação, isso deve ser comunicado ao paciente.

Ou seja, a autonomia médica pressupõe respeito à autonomia do paciente. A resolução do Conselho quebrou uma relação de respeito à dignidade do paciente, uma vez que estava se referindo ao “tratamento precoce” contra a covid-19 – outro conceito manipulado.

Tratamento precoce é quando estou diante de sinais e sintomas clínicos, tenho discernimento médico e acredito que aquela situação seja decorrente de um diagnóstico provável, ainda não confirmado. Nesse caso, o médico entende que a situação pode se agravar, causando mais sofrimento e complicação, e em comum acordo com o paciente opta por antecipar um tratamento, um procedimento ou uma internação.

Essa decisão precisa ser sempre compartilhada com o paciente – e aceita por ele. Tudo depende dessa premissa. Isso é tratamento precoce, e não o direito de impor cloroquina e ivermectina, medicamentos que há muito tempo se sabe que não tem qualquer efeito benéfico contra a covid-19. Pelo contrário, têm risco de complicações graves e até morte.

Na sua visão, todo médico que receitou cloroquina e ivermectina, sem respeitar a autonomia do paciente, deve ser responsabilizado? Ou quem deve ser punido é apenas a direção do CFM?

São dois movimentos. O Conselho tem a sua responsabilidade, porque deu orientações absolutamente inadequadas e quebrou sua isenção, do ponto de vista político e ético, ao colocar-se simpático ao bolsonarismo.

Bolsonaro disse para o mundo todo, na abertura da 76ª Assembleia Geral da ONU, que seu governo se baseou no conceito de autonomia médica, defendido pelo Conselho. Ele se referia à autonomia para prescrever cloroquina, ivermectina e aplicação de ozônio retal. Foi isso que o Conselho referendou.

Porém, a gente precisa diferenciar. Uma coisa é o médico, muitas vezes sem outras opções terapêuticas, diante de uma doença complexa e de difícil abordagem, com manifestações múltiplas, graves e diversas, que receitou cloroquina e ivermectina em comum acordo com o paciente, por boa vontade, quando ainda não havia estudos comprovando a ineficácia desses medicamentos.

Outra coisa, completamente diferente, é quem agiu de má-fé e impôs o uso de cloroquina e ivermectina – como fez a Prevent Senior. Eles negaram informação ao paciente e orientaram práticas que remetem ao nazismo. Por exemplo, subtrair oxigenação do paciente do 10º ao 13º dia de covid, como era o protocolo, para fazer rotatividade de leito, sob o chavão odioso de que “óbito também é alta”.

Não são práticas equivocadas: é crime.

Os conceitos de autonomia médica e de “tratamento precoce” foram manipulados pelo Conselho Federal de Medicina e documentados em resoluções da categoria.

Tudo isso precisa ser avaliado com muita seriedade, porque não nos interessa ver a classe médica ser alvo de desmoralização nem de perda de respeito junto à sociedade. Porque nós somos médicos também.

Nosso movimento é formado por médicos e médicas qualificados, respeitados. Somos pessoas preocupadas com a imagem da categoria e das instituições. Não nos interessa o confronto pelo confronto, mas sim, resgatar a respeitabilidade da categoria.

Ao mesmo tempo, queremos mostrar que somos diferentes: nós não aceitamos essas práticas.

No início da conversa, você se referiu a uma “posição de certo confronto” que deveria ser adotada em relação aos colegas bolsonaristas. Qual o limite desse enfrentamento?

O que eu chamo atenção é que não adianta mais chegar para o colega bolsonarista e dizer “é um erro continuar com esse pensamento”. Eles têm discernimento, são pessoas que têm uma formação acadêmica, são informadas, e não podem alegar que não sabiam.

Eu me refiro à não suportabilidade que um setor da categoria médica deve ter, em relação a outro setor que mantém apoio a esse genocida, esse sociopata, uma pessoa que tem causado sofrimento ao nosso povo.

O Estado brasileiro está sendo desmontado. Nossa credibilidade internacional também.

Quero saber onde está a parte da categoria médica que apoia o bolsonarismo. Calada? O que esses médicos têm a dizer sobre a perda de nossas riquezas, a venda de nossas fontes petrolíferas, a negação dos territórios indígenas, a mineração desenfreada, a destruição do meio ambiente? Em qual país moram esses médicos?

O silêncio é terrível. Estamos em uma encruzilhada, em um momento muito difícil da vida nacional. Há uma crise sanitária, política, institucional, social, econômica, diplomática e ambiental.

A categoria médica é parte da sociedade, e não tem saída para ela se não houver saída para o todo social, com a garantia do Estado democrático de direito, o respeito às diferenças, ao meio ambiente, a proteção às populações vulneráveis.

Esse tecido social precisa ser pensado com carinho. Não existe projeção de futuro para uma sociedade com 40 milhões de miseráveis, com pessoas mendigando alimento, atrás de osso para fazer sopa.

O diálogo que estamos tentando abrir, agora, não é mais aquele da tolerância, mas questionamento aos colegas: “O que você quer para o Brasil no futuro? Como você pensa que seus filhos e netos vão viver? Ou vão todos ao exterior para estudar, para trabalhar para viver?”.

Não podemos assistir calados a essa negação da cidadania, a esse abandono do projeto nacional, das perspectivas de construção de país.

Edição: Anelize Moreira