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Saiba mais sobre Anchieta, em SC, a capital nacional da produção de sementes crioulas

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Kit de Sementes Crioulas - Verão 2021 para distribuição - Assessoria de comunicação da Prefeitura Municipal de Anchieta
A experiência histórica do município também gerou o título de Capital Estadual do Milho Crioulo

Por Adriane Canan*

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Ostentar títulos tão importantes como o de Capital Nacional da Produção de Sementes Crioulas, instituído pela Lei Federal nº 13.562/2017, e de Estadual do Milho Crioulo, concedido através da Lei Estadual nº 11.455/2000, não acontece da noite para o dia. Anchieta, no extremo oeste de Santa Catarina, hoje com cerca de seis mil habitantes, tem uma história de décadas para contar sobre esse assunto. “Como camponesa, posso dizer que foi um processo longo, com barreiras, mas que a gente nunca pensou em desistir. Sabíamos que nossa proposta era a melhor para nosso município e seu futuro”, conta Zenaide Millan da Silva, do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). Em 2019, a história de resistência ao modelo do agronegócio conquistou a aprovação da Lei Municipal nº 2457/2019, de incentivo aos sistemas de produção agroecológica e orgânica e a conservação, uso, promoção e distribuição das sementes crioulas pelos agricultores familiares e camponeses do município de Anchieta/SC. Mas qual a caminhada por trás dessas conquistas? Vamos voltar um pouco no tempo.

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Estamos nos anos 1980. Anchieta tem 10 mil habitantes, mais de 70% na área rural, mas sua população diminuiu a cada dia. A chamada “revolução verde”, imposta e centrada no agrotóxico e na monocultura, traz para a agricultura familiar camponesa a fome, a depressão, o envenenamento da terra e das águas. Nessa realidade, movimentos sociais e sindicais do campo, ainda em reorganização no pós-ditadura, buscam caminhar no enfrentamento do também denominado “pacote verde”. 

Nos anos 1990, a crise social, ambiental e alimentar persiste, agravada pelo avanço do neoliberalismo no Brasil. Mas segue também, e mais forte, a resistência e a articulação em busca da construção de sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis. O Sindicato dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (SINTRAF) e o então Movimento de Mulheres Agricultoras (MMA), atual Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), planejam ações estratégicas para enfrentar a crise. Em um processo participativo, definiram-se prioridades como a construção de uma feira orgânica e o resgate das sementes crioulas, inicialmente uma forma de redução de custos da produção. Como descrevem as próprias sujeitas e sujeitos históricos deste trabalho, com fluxos e refluxos, foram dando conta de manter a caminhada, algumas vezes com apoio do poder público, principalmente em momentos de governo popular. Muitas variedades de sementes foram resgatadas, melhoradas, partilhadas e introduzidas nos sistemas locais de produção. Só de milho, foram mais de duas dezenas de variedades crioulas. “E é um orgulho para o povo que contribuiu”, conta Zenaide Millan da Silva, do MMC. 

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Conquista da Lei Municipal 2457/2019

Durante todo o percurso, as organizações sempre discutiram a necessidade de políticas públicas permanentes, com orçamento e recursos garantidos, para a promoção da agroecologia e a conservação das sementes crioulas. A partir de 2017, o Fórum Municipal das Entidades do Campo propôs um projeto de lei elaborado e discutido com a presença da prefeitura. O projeto foi protocolado na Câmara de Vereadores por representantes de quem construiu historicamente a luta. Era setembro de 2019. O projeto foi aprovado e, logo depois, sancionado pelo executivo.


Fórum Municipal das Entidades do Campo protocolando o projeto da Lei Municipal 2457/2019 na Câmara de Vereadores em 2019 / Assessoria de comunicação da Prefeitura Municipal de Anchieta

Dois anos depois da conquista da lei, com uma situação de pandemia causada pelo Covid-19 e com estiagem prolongada na região, como estão os reflexos no município? A agricultora Roselei Wille, presidenta da Cooperativa da Agricultura Familiar e de Economia Solidária de Anchieta, a chamada Cooper Anchieta, e também membro do Grupo Raízes Ecológicas, comenta que ainda é cedo para avaliar. “É bem recente e precisamos observar. A produção na agricultura depende sempre dos ciclos, dois ou três anos. Ainda vamos sentir e entender melhor com o tempo os impactos diretos”, explica. Para Zenaide Millan da Silva, do MMC, a aprovação da lei foi uma conquista histórica para o município de Anchieta. “Com certeza temos mais segurança quando produzimos nossas sementes e sabemos que temos como  comercializar ou fazer a troca”, aponta a camponesa, que é guardiã de sementes crioulas.

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Na avaliação do prefeito de Anchieta, Ivan Canci (PT/SC), administrador municipal no momento da aprovação da lei, o maior aprendizado é a certeza de que a construção coletiva da política pública compromete todos e amplia as possibilidades de implementação. “Não dá pra dizer que é tudo simples. Na política pública, nada está dado, nunca temos as condições ideais e não podemos parar ou deixar de estimular”, reflete. De acordo com ele, a materialização da lei começou com o kit sementes crioulas. A prefeitura adquire sementes de guardiãs e guardiões e faz a distribuição para quem não tem. “É preciso fazer disso um processo contínuo, espalhar, e o que tem pouco vai virar bastante. Aquela semente de melancia amarela que só poucas famílias tinham, agora já se espalhou mais… Apoiar o mais que podemos na garantia da manutenção das variedades”, aposta.

Outra questão que já ganha mais materialidade na implementação da Lei Municipal nº 2457/2019 é a compra de produtos orgânicos da agricultura familiar para a alimentação escolar, mais uma vez mostrando como políticas públicas podem apoiar o fortalecimento da agroecologia. “No ano passado tivemos dificuldade em função da pandemia, mas mesmo assim distribuímos. Houve até uma comparação entre o nosso kit e aquele que vinha do governo do estado, mostrando como o nosso tinha muito mais diversidade”, conta o prefeito. Pela lei, em 2021 são 30% do orçamento municipal previsto para alimentação escolar que devem ser investidos em alimentos orgânicos. Em 2020, foram 20%. Já para 2022, deve chegar aos 45%. “Já temos muita produção da nossa agricultura familiar camponesa local, mas ainda faltam alguns produtos. Nosso desafio é garantir e fortalecer a produção local, investir aqui”, explica Canci. Fomentar a formação continuada, com eventos, seminários e outros espaços de partilha de saberes, além das hortas urbanas, que podem gerar renda local, são temas em pauta. 

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Reneu Zortea, padre da igreja católica e ligado às lutas e pastorais populares, lembra que a lei foi construída com a participação das forças da classe trabalhadora e faz parte de um projeto de caminhada para uma sociedade do bem viver, do cuidado com o planeta, com a biodiversidade. “Colocar-se em defesa do resgate das sementes crioulas, da comida saudável e da agroecologia tem relação com outro jeito de construir a sociedade, um jeito que enfrenta o capitalismo que só destrói e mata”, reflete Zortea. E a construção coletiva destas tantas décadas teve, e tem, muitas organizações, movimentos, pessoas que pensam um mundo agroecológico a partir de seu território. São muitas “sementes crioulas” organizadas que geraram o Fórum Municipal das Entidades do Campo. E é principalmente no Fórum que segue a história e onde o debate sobre as incidências das políticas públicas deve continuar e ganhar mais força. 

 

Festa das Sementes Crioulas

Toda a articulação originou, em 2000, a Festa das Sementes Crioulas, um evento que cumpre papel de disseminação e melhoria da diversidade dos cultivos no município e região. Já foram sete edições.


Publicidade da 6º Festa das Sementes Crioulas de Anchieta / Assessoria de comunicação da Prefeitura Municipal de Anchieta

Por conta da pandemia, a oitava festa ainda não aconteceu. Mas, de acordo com a prefeitura, em 2021 e 2022, ainda vão ocorrer feiras menores, espaços de partilha e troca.

Em 2023, quando Anchieta completa o seu 60º aniversário, deverá acontecer uma grande festa. “A cidade aqui gosta demais da festa, já se apropriou. As sementes crioulas são o centro das atenções”, conta o prefeito Canci. 

 

*Adriane Canan é Comunicadora popular da Articulação Nacional de Agroecologia.

**Acompanhe a coluna Agroecologia e Democracia. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) é um espaço de diálogo e convergência entre movimentos, redes e organizações da sociedade civil brasileira engajadas em iniciativas de promoção da agroecologia, de fortalecimento da produção familiar e de construção de alternativas sustentáveis de sistemas alimentares. Leia outros artigos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo