Coluna

Educação jurídica, democracia e criminalização das lutas: as incompletudes da Constituição

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Mas não se pode deixar de denunciar os surtos de sabotagem explícita a conquistas civilizatórias alcançadas com resistência à opressão, perda de vidas e pelejas coletivas das forças populares - Lula Marques
Causa apreensão o ensino esvaziado de conteúdo social, histórico, crítico e humanista

É muito mais fácil criminalizar os negros do que reconhecer que a nossa sociedade cresceu às custas do sangue dos seus antepassados; criminalizar os indígenas e dizer que eles são uma ameaça à soberania nacional do que reconhecer que o Brasil de hoje está erguido sobre os corpos de etnias que simplesmente desapareceram da face da terra (José Carlos Moreira da Silva).

A Constituição de 1988 completou 33 anos, no dia 5 de outubro. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se manifestou sobre a importância da “Carta” “para o processo de redemocratização do país”.

Na linha otimista da preleção, “o Brasil vive o mais longo período de estabilidade institucional de sua história” com esse texto referenciado como “Constituição Cidadã” em razão dos “avanços em direção à cidadania e à dignidade da pessoa humana”. Nesse sentido, “deu voz à sociedade civil organizada e consolidou o Estado Democrático de Direito”.

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No timbre “animado” do TSE, a Constituição de 1988 “revolucionou” o Poder Judiciário brasileiro com a criação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), na perspectiva de dividir competências com o Supremo Tribunal Federal (STF).

O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do órgão, enalteceu o Documento Político, como “ponto culminante do esforço de inúmeras gerações de brasileiros contra o autoritarismo, a exclusão social e o patrimonialismo, estigmas da formação nacional”.

E vibrou o ministro: “Nem tudo foram flores, mas há muitas razões para celebrá-la”. Deixemos as flores perfumarem o encantamento dos ingênuos e a celebração para os ambientes silenciosos de culto e busca da paz.

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É verdade que a Carta Política de 1988 abriu sulcos para processos de afirmação de direitos, em especial, para as classes sociais desalinhadas dos projetos políticos do poder dominante, invisibilizadas e destituídas de cidadania diante de um aparato de Estado que reproduz a lógica da ideologia do sistema penal e criminaliza os socialmente excluídos e suas lutas libertárias.

Mas não se pode deixar de denunciar os surtos de sabotagem explícita a conquistas civilizatórias alcançadas com resistência à opressão, perda de vidas e pelejas coletivas das forças populares, bem assim, os assaltos à ordem política, ao patrimônio nacional, à dignidade de uma nação sob escombros, agonizante em sua cidadania, sobre a qual tripudiam as elites e as instituições que tem o dever constitucional de garantia do Estado Democrático de Direito.

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Eni Orlandi, em sua abordagem sobre os discursos, anuncia que “a condição da linguagem é a incompletude. Nem sujeitos nem sentidos estão completos, já feitos, constituídos definitivamente. Constituem-se e funcionam sob o modo de entremeio, da relação, da falta, do movimento. Essa incompletude atesta a abertura do simbólico, pois a falta é também o lugar do possível”.

Na hipótese da “aleluia’ pelo aniversário da Constituição de 1988, o que a retórica togada exulta, o universo de renegados pelo sistema de justiça chora a carência, a falta, o vazio do possível, impossibilitado pela condição de “não pessoa” que o Estado, incluindo o aparelho judicial e do Ministério Público, cravam no sujeito “sem rosto e sem cidadania”.

A memória das incompletudes constitucionais, ocultada na linguagem de ostensiva euforia, é mais viva e palpitante porque escancarada na fome, nas desigualdades, no extermínio de vidas negras, jovens, na barbárie da seletividade por raça, por sexo, por gênero, por condição social, econômica e agora, também por descaso com a pandemia e por escolha política.

Nesse lago de violência institucionalizada onde são cultivadas a manutenção dos privilégios de classe e das estruturas econômica, política, jurídica; e permitido que as relações de produção se mantenham intactas, se misturam destroços de um Estado Democrático de Direito gestado pela Constituição de 1988, migalhas de “objetivos fundamentais” republicanos de construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

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O esperançar da celebração de uma educação minimamente ajustada à prescrição constitucional se esvai diante da atitude nefasta de um governo federal que ressignifica a educação para aprisionar em um conceito medíocre, estreito e excludente, se apartando do pensar de Paulo Freire, que tanto inspirou gerações aqui e fora do pais, na perspectiva de uma “educação que liberta seres humanos da condição de oprimido e os insere na sociedade como forças transformadoras, críticas, politizadas e responsáveis por todas as pessoas que a integram”.

Nesse sentido de expectativa sobre o que a Constituição Federal de 1988 legou como desafio no campo da educação, inevitável marcar o desajuste do discurso hegemônico da educação jurídica, marcado pela mercantilização do ensino superior, proliferando cursos sem critérios de qualidade, despolitizando o ensino jurídico, alienando a massa de bacharéis.

Causa apreensão o ensino esvaziado de conteúdo social, histórico, crítico e humanista, substituídos por um autoritarismo normativista, tecnicista, com estudo de códigos e formalidades legais desconectados da ética e da política, reduzindo o jurídico à ordem estabelecida, o direito à lei, a legalidade estrita como fonte única do direito, a dogmática como expressão privilegiada de entender o direito.

A ideologia da escola, no expressar de Louis Althusser, “universalmente dominante por ser uma das formas essenciais da ideologia burguesa dominante” substituiu a igreja e hoje “desempenha um papel decisivo na reprodução das relações de produção”.

Vale lembrar, nesse sentido, a reflexão de Alessandro Baratta que o sistema escolar, no conjunto que vai da instrução elementar à média e à superior “reflete a estrutura vertical da sociedade e contribui para criá-la e para conservá-la, através dos mecanismos de seleção, discriminação e marginalização”.

Lutas populares são depostas de sua história de resistência, afrontosamente criminalizadas, no claro objetivo de “criar as condições legais e, se possível, legítimas perante a sociedade para: a) impedir que a classe trabalhadora tenha conquistas econômicas e políticas; b) restringir, diminuir ou dificultar o acesso às políticas públicas; c) isolar e desmoralizar os movimentos sociais junto à sociedade; d) e, por fim, criar as condições legais para a repressão física aos movimentos sociais”. (Via Campesina Brasil).

Os desafios estão postos. Urge a construção de um “cerco de práticas coletivas de indignação e de insurgência” declarado e aprovado pela insatisfação unificada do povo em luta, das Universidades, das forças políticas, populares e progressistas, na perspectiva de enfrentamento com aptidão para conseguirem pressionar o Estado e a sociedade para a mudança de comportamento, no sentido de empregar o discurso da valorização e consolidação dos direitos que a Constituição de 1988 apontou.

E vivas ao discurso (e não retórica) da Deputada Natália Bonavides ((PT-RN): “A direita nunca aceitou os direitos sociais, as garantias e as proteções mínimas previstas para o povo”.

*Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, Mestra e Doutora em Direito Penal, Professora aposentada da UEFS, Promotora de Justiça da Bahia, aposentada, Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos, membro do CDH da OAB/BA, da AATR, da RENAP e da ABJD.

**Leia outros textos da coluna Direitos e Movimentos Sociais. Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radicalmente nova e humanizada.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Leandro Melito