Descalabro

Após incêndio no centro de SP, prefeitura interdita quarteirão e 80 famílias dormem ao relento

Bombeiros interditaram área atingida pelo fogo, onde viviam 6 famílias; subprefeitura chegou depois e desocupou o resto

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Moradores de imóvel que pegou fogo e de casas vizinhas no centro de São Paulo passam a noite sob o céu na madrugada desta sexta-feira (22) - Maiara Marinho

São 3h da madrugada de sexta-feira (22) enquanto os jornalistas do Brasil de Fato redigem esta reportagem, de suas residências, em São Paulo. O termômetro marca 14 graus. Enquanto isso, crianças, idosos, homens e mulheres pertencentes a 80 famílias que foram retiradas de suas casas na última quinta-feira (21) pela Guarda Civil Metropolitana, por ordem da prefeitura municipal, dormem ao relento. 

Elas são - ou eram  - moradoras há 17 anos da chamada "Ocupação Carrefour", que ocupava um quarteirão inteiro na rua Alexandrino Silveira Bueno, no bairro do Cambuci, região central da cidade. Residiam todas em uma ex-sede de empresa e um galpão industrial onde já funcionou uma gráfica, tomada pela prefeitura em 2009, por dívidas tributárias.

::Incêndio atinge "Ocupação Carrefour" com 80 famílias no Cambuci, em São Paulo (SP)::

Em maio de 2010, a prefeitura tentou leiolar o imóvel e o terreno, conforme constou no Diário Municipal de São Paulo, e foi este o último documento público que a reportagem encontrou acerca de sua propriedade.

O local foi atingido por um incêndio na manhã da quinta-feira (21). As chamas consumiram uma pequena fração do imóvel, alguns cômodos transformados em casas separadas, onde viviam seis das 80 famílias, que perderam todo o pouco que tinham. O laudo que determinará a causa do incidente deverá sair nos próximos dias. Fala-se em curto-circuito na fiação elétrica, mas ninguém sabe ao certo.

Às 10h23 da manhã, os Bombeiros receberam um chamado e se dirigiram à ocupação. Antes da hora do almoço, o fogo estava apagado.

Os bombeiros interditaram apenas a área do imóvel atingida pelo fogo, não o quarteirão todo, somente a parte atingida pelo fogo, onde viviam seis famílias. Liberados pelos soldados que combateram as chamas, os moradores voltaram às suas casas, se alimentaram, passaram café, prestaram a assistência possível àqueles que tinham perdido tudo.

Horas depois, já no meio da tarde, chegaram as autoridades municipais. Eram funcionários da Subprefeitura da Sé, acompanhados de uma assistente social e escoltados por agentes e viaturas da Guarda Civil Metropolitana. Disseram que iriam interditar o imóvel todo, que ninguém mais adentrasse em suas casas, nem para pegar roupa, nem remédio, nem comida, nem nada. 

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Brasil de Fato chegou no local às 17h. Presenciou o momento em que os servidores municipais passavam faixas ao redor de tudo, determinando que ninguém mais entrasse no prédio. O próprio subprefeito Marcelo Vieira Salles também estava ali. Ele não quis falar com a reportagem, estava trabalhando, não tinha tempo para responder perguntas. Também ninguém mais da prefeitura tinha tempo, para falar com a reportagem ou com os moradores. 

Os atingidos pela tragédia, sim, tinham tempo para a reportagem, que ouviu e gravou uma série de relatos, todos de mesmo teor. Podem ser resumidos neste que segue: "Ele (o subprefeito) me disse: 'Faz o que você pode'. Depois, virou as costas e saiu", contou um dos moradores, que, assim como os demais, deu nome e sobrenome à repórter, que não serão publicados, para evitar eventuais retaliações.


Assim passaram a noite os ex-moradores da Ocupação Carrefour, após a prefeitura de São Paulo interditar o imóvel onde residiam há 17 anos / Maiara Marinho

Com todo mundo na rua e a Guarda Municipal garantindo a inviolabilidade da interdição, uma assistente social da prefeitura foi falar com as famílias. Disse que seriam todos removidos para um albergue, onde passariam a noite. Não poderiam entrar mais em suas casas. Iriam com a roupa do corpo. Seus pertences seriam reunidos, transportados e devolvidos posteriormente, por agentes municipais.

E depois disso, iriam para onde? E depois disso, poderiam voltar ao local onde moravam havia 17 anos? E enquanto isso, como fariam com os idosos e pessoas doentes, cujos remédios que tomam estavam ainda nas casas? E quanto aos objetos e pertences das crianças e necessários para seus cuidados, o que fariam quanto a isso? O que iriam comer nas próximas horas? Isso tudo a assistente social não respondeu.

“Não deixaram a gente entrar no prédio para pegar o remédio das pessoas, não consegui pegar meus remédios, não consegui pegar nem uma roupa”, disse uma moradora. "A assistente social falou o que tinha que ser, mas ela não perguntou para nós ‘vocês querem ir?’, não, nada”, disse outro. Também o Brasil de Fato quis falar com a assistente social. Fez uma série de perguntas. Ouviu uma só resposta: "Não posso dar informações".


Tarde de quinta-feira (21) em frente à Ocupação Carrefour: autoridades da prefeitura conversam entre si, moradores aguardam ao fundo / Maiara Marinho

Sendo assim, os moradores disseram que não arredariam o pé dali, não iriam ser transferidos com a roupa do corpo a "um albergue". Responderam por sua vez as autoridades que, se era assim, caminhões e viaturas da prefeitura e da GCM iriam ao local no dia seguinte, esta sexta-feira (22). Tudo seria removido do local. E os moradores que decidissem o que iriam fazer, onde iriam dormir, o que iriam comer e qual remédio iriam tomar.

Então, a assistente social foi embora, o subprefeito foi embora, todo mundo da prefeitura foi embora, menos os guardas da GCM e suas viaturas. 

Sobraram também os ex-moradores da Ocupação Carrefour, transformados em 80 famílias sem teto, a reportagem do Brasil de Fato e uma série de pessoas comovidas com a situação, que passaram a levar comida, barracas, colchonetes, mudas de roupa e cobertores para aquelas pessoas. A bondade de estranhos, não o poder público, conferiu-lhes as condições mínimas para passar a noite.

A Subprefeitura da Sé respondeu aos questionamentos feitos pelo Brasil de Fato por meio de nota na noite de sexta (22). Confira:

"O imóvel está em nome de Igarupa – Administração e Paarticipação SC LTDA. A Subprefeitura Sé tomou conhecimento do incêndio por volta das 10h30 da manhã do dia 21/10/2021, momento no qual determinou que suas equipes fossem ao local. Por meio de vistoria, os engenheiros da subprefeitura verificaram risco de ruina iminente, razão pela qual foi emitida nova interdição administrativa para o local. No tocante às informações e a assistências social às pessoas que residiam no imóvel, objeto de incêndio, informamos que desde o primeiro momento verificaram-se equipes de assistência social assistindo às famílias, inclusive com informações no tocante à disponibilização de equipamento público para o alojamento provisório das famílias, qual seja, Centro Esportivo Tietê. Ademais, membros da subprefeitura e da GCM auxiliaram de forma paulatina as pessoas que retiravam seus objetos pessoais. Dessa forma fixamos que não houve ausência de informação, diálogo ou atendimento das famílias, tampouco impedimento para que seus pertences fossem retirados. As ações da subprefeitura e dos demais órgãos da Prefeitura de São Paulo atuaram no estrito cumprimento de suas competências, visando mitigar riscos e evitar que a população adentrasse em local com iminente risco de ruína, evitando assim, um desastre. 

A pasta da Prefeitura que possui a prerrogativa de assistência social trata-se da Secretaria Municipal de Assistência Social - SMADS, a qual em todos os momentos atuou de forma detida, prestando informações e dialogando com as famílias desalojadas, colocando à disposição todos os serviços prestados por aquela digníssima Pasta, dos quais destaca-se o acolhimento Centro Esportivo Tietê e o traslado das famílias para aquele equipamento público. 

A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) informa que a equipe da Coordenação de Pronto Atendimento Social (CPAS) prestou atendimento às 52 famílias atingidas pelo incêndio no Cambuci e entregou 400 insumos, sendo 100 cobertores e 300 marmitas. A Supervisão de Assistência Social (SAS) Sé preparou acolhimento no Centro Esportivo Tietê, mas as famílias recusaram a oferta.
Demais informações devem ser requisitadas à Secretaria de Assistência Social – SMADS.

Os moradores das casas que não foram atingidas pelas chamas, residentes no local há 17 anos, não poderão voltar ao imóvel após vistoria.

A reintegração de posse é uma ação cuja legitimidade pertence ao proprietário do imóvel, objeto de esbulho possessório. Dessa forma, o poder público não é parte legítima para promover ação de reintegração de posse do presente imóvel. Tal prerrogativa compete à Igarupa – Administração e Participação SC LTDA. 

Cabe ao Corpo de Bombeiros Militar, por meio do Serviço de Segurança Contra Incêndios e Emergências - SSCIE, estudar, analisar, planejar e estabelecer normas complementares para a efetiva execução da segurança contra incêndios e emergências, e a fiscalização do seu cumprimento."

Edição: Vivian Virissimo