inflação às alturas

Opinião | Auxílio para libertar e não para manter o povo no cabresto

Auxílio Brasil não vai ser pago com a taxação das grandes fortunas, mas pelos impostos pagos pelos trabalhadores

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Aumento do auxílio prometido à população não nasce do coração, mas do interesse pela reeleição de Jair Bolsonaro - Foto: Isac Nóbrega/Presidência da República/Divulgação

Uma das experiências mais fortes na minha vida foi o encontro com Zé, um cortador de cana aposentado. Eu achava que tinha mais de 90 anos, mas não chegava nem aos 70. O rosto estava queimado pelo sol e enrugado pela fadiga. Não precisava de registro na carteira para comprovar seus anos de trabalho. Os calos nas mãos e as cicatrizes nos braços e nas pernas eram os comprovantes de seus longos e terríveis anos de duro trabalho. Sua aposentadoria era uma mixaria. Contou-me que pegava no pesado todo dia. Morava na fazenda junto com outras famílias, mas a moradia era uma covardia. A fazenda ficava longe de tudo. Para comprar o necessário para viver só existia o mercadinho do patrão. Os preços eram altíssimos.

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Aumentavam a cada semana, mas o salário permanecia o mesmo. E quando aumentava pela graça de Deus, o aumento era sempre inferior àquele dos preços do mercadinho. Ninguém dava conta. No mesmo dia em que recebia o mísero salário já estava endividado. Pagava as compras da semana anterior, mas nunca conseguia zerar o passivo. A dívida aumentava cada vez mais. Virava uma bola de neve daquelas que nem o sol quente daquela região conseguia derreter. A obrigação de ficar na fazenda era a garantia do pagamento. O regime era de escravidão.

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Lembrei-me dessa história ao acompanhar as discussões de economia destes últimos dias. O presidente prometeu o “Auxílio Brasil” de R$ 400. O mercado enlouqueceu, pois o teto dos gastos vai furar. Na realidade o buraco está mais em baixo. Não está no telhado, mas nos fundamentos dessa economia sem compaixão. Deus queira que esta torre que só dá acesso a uns privilegiados possa ruir para construir no lugar dela uma casa onde tem lugar para todo mundo. O povo acompanha com certa trepidação com a esperança que vai melhorar. Pura ilusão. O que vai acontecer é a mesma coisa que se passava na fazenda do Zé. Nessa economia de exploração essa miséria de auxílio nunca vai gerar proteção. Além do mais, o povo vai ter que gastar num mercado cujos preços são estabelecidos pelos patrões. Com essa inflação às alturas, os preços não vão assegurar a compra da mistura. R$ 400 parecem um bom aumento, mas quando chegarem no bolso do povo vão valer tanto quanto os R$ 150 atuais que garantem pouco mais do pão com ovo. 

O regime de exploração é sempre o mesmo. Veste o casaco da benfeitoria, mas só promove malfeitoria. Transferir renda para os mais pobres é urgente, mas não é dar esmola. É  garantir trabalho em condições humanas, salários justos, aposentadorias dignas e benefícios adequados conforme reza a Constituição. O que estamos vendo nestes dias é a perpetuação da cultura da escravidão, a mesma que humilhou seu Zé na fazenda do patrão. 


 / Foto: Roberto Parizotti

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O auxílio Brasil não vai ser pago com a taxação das grandes fortunas, mas pelos impostos pagos pelos trabalhadores e as trabalhadoras. Quem ajuda na partilha não são os marajás, mas a classe média e os próprios pobres. O assalariado trabalha duro, ganha mal e paga imposto sobre tudo, até sobre itens essenciais para sua sobrevivência. Além do mais deve endividar-se para comprar aquilo que ele mesmo produziu. É o fim da picada.

O dinheiro do auxílio Brasil, também, não vai ser tirado dos gastos exorbitantes da manutenção da máquina pública, dos salários escandalosos e dos penduricalhos, mas da verba destinada ao pagamento dos precatórios, isto é, do dinheiro público separado para pagar as pessoas que ganharam na justiça o direito a serem ressarcidas pelo Estado. Portanto, na fonte do auxílio há um calote. 

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Portanto, não venham com conversa fiada. O aumento do auxílio prometido à população não nasce do coração, mas do interesse pela reeleição. Não vem da compaixão pelo desespero dos pobres que não tem o que comer, mas do desespero de perder a eleição. Seu Zé estava preso na Fazenda no regime de escravidão, o povo hoje arrisca de ficar amarrado para sempre ao regime de opressão em nome da sobrevivência. Em tudo isso, não sinto o cheiro de solidariedade, mas o fedor de voto de cabresto.

 

*Padre Xavier Paolillo é da pastoral do Menor da Paraíba

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Fonte: BdF Paraíba

Edição: Cida Alves